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quarta-feira, 24 de abril de 2019

David Leffel, o artista da luz

Natureza-morta, David Leffel, óleo sobre tela
Todos os que me conhecem mais de perto, sabem da minha grande admiração pelo artista norte-americano, que hoje tem por volta de 85 anos de idade: David Leffel. Reproduzo abaixo o artigo introdutório ao livro "Oil painting, secrets from a master", de Lynda Cateura, que foi sua aluna. 

Neste artigo, de autoria de outro artista, Gregg Kreutz, podemos saber um pouco mais sobre o pensamento pictórico deste grande mestre.

LEFFEL, O ARTISTA
Autorretrato, David Leffel,
óleo sobre tela

Fui conhecer David Leffel pessoalmente, após ter visto suas pinturas. Para mim, esse momento descrevo como uma espécie de  choque... Suas pinturas parecem a princípio elegantes mas austeras - e uma das características pessoais mais marcantes de David é sua aconchegante simplicidade. Ele adora uma boa história, conta piadas maravilhosas e é essencialmente uma pessoa calorosa. Se houver alguma aparente disparidade entre David e suas pinturas, isso, no entanto, é uma ilusão. Elas são impressionantes, mas, como ele, também são acessíveis e tocantes.

Lembro-me de ir ao estúdio de David pela primeira vez. A sala estava tão pouco iluminada que, seu interior, incluindo meu anfitrião, mal se distinguia. Quando meus olhos se ajustaram, no entanto, vi armações, cavaletes, adereços de natureza-morta e pinturas espalhadas pelo estúdio. No centro de tudo, quase diretamente sob a clarabóia, havia uma velha mesa frágil com algumas cebolas e uma velha panela sobre ela.

Havia uma pintura ao lado da mesa e quando olhei para ela, fiquei chocado! Em vez de retratar a coleção aleatória de objetos que vi, a pintura forçou-os a desempenhar papéis em um drama convincente de luz. As cebolas emergiam de uma sombra escura, ficando mais claras e leves, de certo modo levando a luz ao ponto focal da panela amassada. Com rico impasto e cor quebrada, o pote destacava-se majestosamente contra o fundo escuro, amassado e enferrujado, quase um heróico sobrevivente. A pintura não alterara nada na configuração. Na verdade, parecia mais real. Mas de alguma forma, Leffel transformou o temporário em algo eterno.

Todas as pinturas de Leffel têm essa qualidade. Seja qual for o assunto, ele consegue encontrar algo para tirar a imagem do literal para o reino da poesia. Cada pintura é sobre algo muito diferente de suas simples aparência. Embora um autorretrato, por exemplo, possa ser incrivelmente fiel à aparência de David, também pode evocar uma resposta mais profunda. Estou pensando em uma que mostra David olhando atentamente para fora de uma escuridão sombria, seu rosto apenas parcialmente iluminado, sugerindo uma busca interior. A iluminação sombria descreve a busca interna. A obscuridade e intensidade de seu olhar sugerem a dificuldade de tal busca.


"A cegueira de Sansão", Rembrandt, 1636, Frankfurt, Alemanha
Esse tipo de busca do uso funcional da luz é uma das qualidades mais distintivas da pintura de Leffel. A luz leva o espectador em direção à imagem central. Quando atinge este ponto focal, ela é geralmente mais intensa, e assim o olho pode descansar naturalmente.

A luz, nas mãos de David, torna-se a ferramenta com a qual ele dirige o olho para o que é  significativo. Este conceito (ser conduzido através da pintura pela luz) é um dispositivo que Rembrandt empregou consistentemente. Rembrandt é um exemplo óbvio de um grande artista cujas pinturas sempre usaram a luz para ajudar a contar a história. Em sua pintura sobre a cegueira de Sansão, por exemplo, as lanças, os soldados e a luz estão todos voando em direção aos olhos dele com uma violência vertiginosa. A luz não apenas ilumina a cena - é um participante ativo no drama.

Leffel não faz segredo de sua admiração por Rembrandt, e em muitos aspectos pode ser visto como um herdeiro daquele grande mestre.

Uma pintura realista que combina precisão perspicaz com beleza, preenche uma das nossas mais profundas esperanças - de vivermos em um mundo harmonioso. As pinturas de Leffel consistentemente fazem essa afirmação, pois ele é um artista supremo.

Gregg Kreutz
Artista de Nova York, 1984

Natureza-morta, David Leffel, óleo sobre tela
Natureza-morta, David Leffel, óleo sobre tela
Autorretrato no ateliê, David Leffel, óleo sobre tela
Estudo em óleo sobre tela, David Leffel

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Pequena história do autorretrato - parte V

"A arte da pintura", Jan Vermeer, óleo sobre tela, 1666
Retomamos o assunto da história do autorretrato, após uma pausa longa da qual pedimos desculpas.

E com isso, chegamos até Caravaggio, o pintor “maldito”.

CARAVAGGIO

Detalhe de autorretrato
de Caravaggio  (ver abaixo)
A vida de Michelangelo Merisi da Caravaggio (1571-1610), que manejava a faca como o pincel, é um romance sombrio, diz Yves Calméjane, autor do livro “Histoire de moi”. Por causa disso, sua biografia inspirou o cinema, inclusive com a beleza dramática da luz que ele dava a seus quadros tenebristas.

Debochado, beberrão, briguento, trapaceiro, depravado, assassino e sedutor de mulheres e rapazes, este andarilho das noites a dentro, este solitário permanentemente em fuga, sabia fazer tudo com um pincel na mão e uma tela… E revolucionou a pintura de seu tempo, encontrando a Beleza na escuridão das noites e madrugadas! Ele também pintou seu autorretrato em várias de suas telas.

Mas nada de tranquilos autorretratos! Com Caravaggio, seu rosto apareceu pintado em cabeças cortadas e bocas abertas em gritos. Ele não fez nada como os outros pintores. Escolhia seus modelos nas ruas sujas de Roma entre mendigos, vagabundos e prostitutas. Com seus rostos ele pintou deuses, anjos, santos e virgens, mas guardando-lhes a verdade: suas falhas e sua sujeira. Uma verdade que fará o pintor clássico Nicolas Poussin uivar de desgosto…

Mesmo antes de completar 20 anos de idade, Caravaggio pinta seu rosto na cabeça da Medusa, ser mitológico com cabelos de serpentes. Um pouco antes de morrer aos 39 anos de idade, ele se pinta na cabeça do gigante Golias, cortada pelo pequeno Davi… Era um pobre pintor agoniado… (leia mais sobre Caravaggio aqui)

DIEGO VELÁZQUEZ

Detalhe de autorretrato
em "Rendição de Breda"
(veja abaixo)
Agora chegamos a um outro pintor que revolucionou toda a pintura: o espanhol de Sevilha, Diego Velázquez (1599-1660). O leitor pode saber mais sobre a vida deste grande pintor em outro artigo deste blog (clique aqui). Para este texto, vamos nos concentrar mais nele como um dos pintores que se interessaram em pintar o próprio rosto.

Velázquez era o pintor do rei Felipe IV, na Corte da Espanha do século XVII. Sua pintura “As meninas”, um dos quadros mais famosos do mundo, mostra um Velázquez à esquerda, com a palheta de tintas e pincel à mão, pintando uma tela que não vemos (ou vemos?).

Com 19 anos de idade ele pinta a “Adoração dos magos” onde seu sogro Pacheco é um dos magos idosos, enquanto que ele mesmo, Velázquez, se representa como um outro mago, mais jovem, ajoelhado aos pés de Jesus e da Virgem, que não é outra que sua própria esposa.

Mais tarde, e já na corte do rei, ele pinta o quadro histórico “A rendição de Breda”, a pedido do rei e nele também Velázquez se pinta como uma das testemunhas deste acordo de paz. (leia mais sobre Velázquez aqui)

VERMEER e REMBRANDT

Detalhe de autorretrato
de Vermeer em "O casamenteiro"
(veja abaixo) 
Rembrandt (1606-1669) e Vermeer (1632-1675), dois grandes mestres da pintura holandesa, são contemporâneos porém diferentes em muitas coisas, entre elas, no que diz respeito aos autorretrato. O primeiro foi um dos pintores que mais se autorretratou, enquanto do segundo conhecemos apenas um autorretrato, e de costas…

Vermeer pintou pouco na vida, menos de 40 obras. Quase não sabemos sobre sua vida, não conhecemos nem mesmo quem foram seus mestres, se é que ele teve um… Não deixou nenhum escrito e não teve alunos. Sabemos que ele se converteu ao catolicismo após se casar com Catharina Bolnes e que eles tiveram 15 filhos, sendo que quatro morreram ainda pequenos. Sabemos ainda que ele era membro da Guilda dos pintores de Delft, mas que, para manter sua numerosa família, ele tinha uma espécie de galeria onde comercializava as pinturas de outros pintores. (mais sobre Vermeer aqui)

Graças a alguns metódicos pesquisadores de arte, existe uma chance de que em um de seus quadros Vermeer tenha se pintado de costas.

Vermeer pintou pouco na vida, menos de 40 obras. Quase não sabemos sobre sua vida, não conhecemos nem mesmo quem foram seus mestres, se é que ele teve um… Não deixou nenhum escrito e não teve alunos. Sabemos que ele se converteu ao catolicismo após se casar com Catharina Bolnes e que eles tiveram 15 filhos, sendo que quatro morreram ainda pequenos. Sabemos ainda que ele era membro da Guilda dos pintores de Delft, mas que, para manter sua numerosa família, ele tinha uma espécie de galeria onde comercializava as pinturas de outros pintores.
Graças a alguns metódicos pesquisadores de arte, existe uma chance de que em um de seus quadros Vermeer tenha se pintado de costas. Ou até pode ser que uma figura masculina que aparece em outra pintura seja ele mesmo, já que está vestido com a mesma roupa e o mesmo chapéu que na tela “A arte da pintura”. Na verdade, em um leilão realizado em 1696 em Amsterdam, o catálogo apresentava, entre outras, 21 telas de Vermeer. No terceiro lote esta assim escrito: “Retrato de Vermeer em um interior com diversos acessórios, de uma rara beleza, pintado por ele”. Era o quadro “A arte da pintura”, que atualmente está exposto no Kunsthistoriches Museu de Viena, Áustria. Nesta tela, há um pintor em pleno trabalho.

A moça que aparece nesse quadro, à esquerda, representa Clio, a musa da História, que carrega um trompete e tem na cabeça uma coroa de heras, símbolo da vitória. Também carrega um livro de história. Seria graças a Clio que não nos esquecemos os momentos de glória. Seus olhos vêem uma mesa onde estão postos uma máscara de teatro, uma partitura musical e um caderno de desenho. Ela parece pronta a proclamar que estas artes conheceram tempos gloriosos… Este tempo seria o de antes da revolta religiosa e política contra os Habsbourg que, por Felipe II e seu pai Carlos V, descendiam dos duques de Bourgogne, que eram grandes mecenas das artes.

Nesse quadro, Vermeer realizou uma alegoria onde cada elemento evoca uma ideia. A obra “A arte da pintura” seria então não só um manifesto político, como artístico.

REMBRANDT

Autorretrato de Rembrandt, 1628
Ao contrário de Vermeer, Rembrandt pintou inúmeros autorretratos, da juventude à velhice.

Em seu retrato de 1628, quando estava com 22 anos de idade, Rembrandt resume o que seria sua arte. Este estudo de claro-escuro que caracteriza toda a arte do mestre, já anuncia os profundos autorretratos de sua fase madura. Sobre um fundo luminoso, a cabeça pintada quase em silhueta, iluminada por um raio de luz sobre o lado direito da face escondida também pelos vastos cabelos, surgem na sombra os dois olhos que parecem dialogar com o espectador…

Em 1961, o estudioso dos autorretratos Manuel Gasser observou que, no caso de Rembrandt, os autorretratos "eram um meio dele se conhecer melhor, e no final da vida tomaram a forma de um diálogo interior: um velho homem solitário se comunicando consigo mesmo enquanto pintava”.

Da juventude à velhice, os autorretratos de Rembrandt parecem os de um homem que queria acompanhar os efeitos do passar do tempo em seu próprio rosto… O autorretrato do final de sua vida, além de tudo, é uma verdadeira metáfora do homem e do tempo que ele viveu. (mais sobre Rembrandt aqui)

Abaixo as obras mencionadas:


"David com a cabeça de Golias", Caravaggio, 1609-1610


"Cabeça da Medusa", Caravaggio, óleo sobre tela, 1598
"Adoração dos magos", Diego Velázquez, óleo sobre tela, 1619 
"A rendição de Breda", Diego Velázquez, óleo sobre tela, 1634-35

"As meninas", Diego Velázquez, óleo sobre tela, 1656

"O casamenteiro", Jan Vermeer, óleo sobre tela, 1656
Um dos últimos autorretratos de Rembrandt

Autorretrato de Rembrandt

Autorretrato de Rembrandt

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

O pintor holandês Carel Fabritius

Autorretrato, Carel Fabritius, 65 x 49 cm, 1645-50
Carel Fabritius é um artista holandês pertencente ao prolífico período em que viveram também outros dois gênios da pintura, Rembrandt e Vermeer. Fabritius foi discípulo de Rembrandt e teria sido o mestre de Jan Vermeer. O século XVII ao qual eles pertencem, passou para a história como o “Século de ouro” da Holanda.
Carel nasceu na cidade holandesa de Midden-Beemster, em 1622, numa família de muitos filhos. Dois de seus irmãos também se tornaram pintores: Barent Fabritius e Johannes Fabritius. De família de carpinteiros, ele, como seus irmãos, aprenderam desde cedo o ofício da carpintaria. Seu sobrenome Fabritius deriva da palavra latina “faber”, que pode ser traduzida por “artífice”.
Autorretrato com boné, Carel Fabritius,
70 x 61 cm, 1654
Com 19 anos de idade, Carel Fabritius casa-se com uma vizinha, filha do pastor da cidade. No ano seguinte, foi estudar no atelier de Rembrandt van Rijn, juntamente com seu irmão Barent. Nessa época, Rembrandt estava pintando seu célebre quadro “Ronda Noturna”. Em 1643, apenas dois anos após seu casamento, sua esposa morre no parto.

Diz-se que dos alunos de Rembrandt, Carel era um dos mais talentosos e muito estudioso. Todos os aspectos técnicos da pintura lhe interessavam muito.
Em 1650 Carel Fabritius se muda para Delft, cidade de Jan Vermeer. Lá, ele se associou à Guilda de São Lucas, a cooperativa dos pintores da cidade. Em 1651, casa-se com Agatha van Pruyssen, que também era da cidade de Delft.
Já com um estilo de pintar diferente do de seu mestre Rembrandt, Carel Fabritius desenvolve um estilo mais luminoso, criando, inclusive, harmonias de cores frias em seus quadros. Também se interessava pelos efeitos espaciais que ele tornava mais complexos, como pode ser visto em sua tela “Visão de Delft”. Mais tarde, seu discípulo Vermeer pintou a sua própria “Vista de Delft”.
Ágar e o anjo, Carel Fabritius, 157 x 136 cm, 1643-45
Fabritius se torna um retratista e logo começa a receber encomendas para pintar os príncipes da Corte, assim como cenas domésticas e quadros de história.
Seus primeiros trabalhos são bastante influenciados pelo estilo de seu mestre Rembrandt. Mas em seu processo de amadurecimento como pintor, Fabritius foi abandonando as cores escuras e começou a empregar cada vez mais cores claras em seus trabalhos. 

Na fase final de sua curta vida, sua grande capacidade de investigação do processo da pintura aparecia em seus quadros, incluindo uma harmonização maior de cores, sua bela composição e criação de perspectivas, que teriam influenciado bastante seu aluno Vermeer. O pintor holandês Pieter de Hooch também teria sido seu aluno e foi bastante influenciado pelo mestre Fabritius. Especialmente o seu tratamento pessoal da luz, fascinou esses dois alunos.
Sentinela, Carel Fabritius, 68 x 58 cm, 1654
No dia 12 de outubro de 1654, o armazém de pólvoras de Delft explode, destruindo o bairro onde vivia Fabritius, assim como seu ateliê e muitas de suas pinturas. Transportado para o hospital local, o pintor não resistiu aos ferimentos e morreu. Tinha só 32 anos de idade. Somente umas doze pinturas suas sobreviveram ao incêndio de sua oficina.
Pouco mais de 20 pinturas suas são conhecidas e foram conservadas. Entre elas, dois autorretratos, um dos quais se encontra atualmente no Museu Boijmans van Beuningen, na cidade de Roterdam e o outro na coleção da National Gallery de Londres. Um terceiro autorretrato pertence à Pinacoteca de Munique, Alemanha.
Carel Fabritius ficou escondido da história da arte até o século XIX, quando foi descoberto pelo crítico de arte e jornalista francês Théophile Thoré-Bürger, que também foi o descobridor da obra de Jan Vermeer.
Vista de Delft com o vendedor de instrumentos musicias, Carel Fabritius, 15,4 x 31,6 cm, 1652


Exposição em Nova Yorque, EUA

O museu novaiorquino Frick Collection acaba de inaugurar uma exposição de dar água na boca em qualquer amante de pintura. Intitula-se “Vermeer, Rembrandt and Hals: masterpieces of Dutch painting from the Mauritshuis”. Entre as obras-primas, estará lá também o “Moça com brinco de pérolas” de Vermeer, do qual fiz um estudo em óleo em 2001, no Ateliê Vermeer em Paris.

Essas obras, em número de 14, fazem parte da coleção do museu holandês Real Academia de Pintura Mauritshuis e estarão expostas em Nova York até 19 de janeiro de 2014. Entre elas, a pintura de Carel Fabritius “O pintassilgo”, de 1654.
O Pintassilgo, Carel Fabritius, 33 x 22 cm, 1654

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

A alma do mundo

Gustave Courbet: A onda, óleo sobre tela, 1870
Acabei de ler o texto “Sobre a relação das artes plásticas com a natureza”, do filósofo alemão Friedrich Wilhelm von Schelling (1775-1854). Esse texto foi escrito para seu discurso de entrada na Academia Bávara de Ciências, em Munique, Alemanha, e foi proferido no dia 12 de outubro de 1807. A repercussão do texto foi grande, e até Goethe o felicitou. Schelling foi contemporâneo de Hegel, um dos filósofos que mais escreveu sobre Estética e sobre Arte.


Schelling
Pela atualidade do tema e por descobrir grande convergência entre a visão de Schelling sobre a pintura e minhas próprias convicções pessoais sobre arte Realista, faço abaixo uma tentativa de expor um resumo dessas ideias.


A arte realista busca beber na fonte inesgotável da realidade do mundo, realidade em permanente mudança, buscando ir além das aparências até alcançar o movimento interno que gera a vida. A pintura realista considera que expressar a forma de um objeto ou figura significa também expressar seu movimento interno, sua alma pulsante na alma do artista, num jogo dialético que abrange espaço, tempo, forma, cor, luz, valor, mas também conceito e visão de mundo.


Vale lembrar que a pintura realista sempre esteve presente nas artes plásticas desde tempos imemoriais. No período da Idade Média, incluindo o Renascimento, os artistas eram obrigados - por força das circunstâncias da época (econômicas, políticas, culturais e filosóficas) - a pintar o mundo idealizado do reino celestial com suas figuras de anjos e santos, além de ilustrar as histórias bíblicas e seus diversos personagens. Ticiano e Caravaggio inovaram a pintura de seu tempo, incluindo como modelos pessoas reais (Caravaggio) e uma forma de ver o mundo através do movimento das cores que rompiam as linhas do desenho (Ticiano). Depois deles, gerações de artistas se voltaram para o mundo concreto, para o Real e seu sentido de inesgotabilidade, de permanente mudança e movimento contínuo. Esse Real do qual não se vê mais do que a aparência, que é fugidio, se desnuda para a observação profunda e a contemplação silenciosa dos artistas.


Neste ponto, nos encontramos com Schelling, e com ele prosseguimos.


Logo no começo do seu discurso, ele traça uma diferença entre formas de descrever o mundo. Uma delas é por meio do discurso, da eloquência, da exposição oral. “Mas a arte - diz ele - possui essa vantagem de ser dada visualmente”, apresentando de uma maneira diferente - para os olhos - aquilo que é difícil de ser apreendido por palavras. E neste sentido a arte plástica se torna Poesia, “poesia muda”, como ele acrescenta. Silenciosa, a arte plástica cria um vínculo, uma ponte entre a alma humana e a Natureza, o Real.


O verdadeiro modelo e “fonte primordial” da arte plástica é a Natureza. Mas Schelling aponta os questionamentos que dizem que isso já é feito pela ciência e que há “tantas representações” da natureza quanto “os diferentes modos de vida”. Sim, mas mesmo aí há também diferentes tratamentos para o mesmo tema e isso é o que cria a enorme diferença de visão de mundo a partir das artes plásticas, o que se torna ainda mais claro nos dias atuais.


Schelling já falava daqueles (incluindo pintores) para quem o mundo não passa de um amontoado de eventos e objetos e coisas sem vida, como “uma imagem muda”, “completamente morta”:

“Um esqueleto oco de formas a partir do qual uma imagem igualmente oca
deveria ser transportada para a tela.”


Observa Schelling que esse era o modo rude de ser dos povos antigos e que somente com os gregos é que o mundo pulsante passou a ser visto como tal. E com isso, admitiu-se que “o perfeito está misturado ao imperfeito, bem como o belo àquilo que é destituído de beleza.” Em outras palavras: o mundo como ele é, ou como aparenta ser. Pois também aqui há que se ter mais acuidade: uma coisa é ver as formas do mundo separadas do todo, ou mesmo vazias, abstratas. Outra é enxergar através da forma a sua essência, acessível ao nosso espírito (mente). E Schelling adverte: àquele que enxerga do mundo somente a sua casca “jamais será facultado atingir o processo profundo”.


Mas sem idealização, pois as “formas ideais” estão tão mortas quanto aquelas que parecem sem vida a um observador sem alma. Portanto, é preciso - para apreender o Real - “acrescentar o olho do espírito, para penetrar sua casca e sentir a força que nelas se efetua”. Entenda-se esse “olho do espírito” como o olho da mente. O entendimento, portanto, não é fruto de uma observação passiva de um dado evento ou objeto, mas surge da interação entre a mente que observa (a inteligência) e a coisa observada efetivamente. Este é um tema muito antigo e para o qual Karl Marx também atentou: o mundo objetivo tem precedência sobre as ideias. Mais Schelling:


“... os artistas decerto mantiveram, desde tal época, um certo ímpeto idealista, bem como representações de uma beleza que se eleva acima da matéria, mas tais representações assemelhavam-se às belas palavras que não correspondem aos atos.


Há duas questões a se levar em conta: a beleza presente no conceito emanado da alma e a beleza da forma. O que une esses dois elementos numa pintura? Ele responde: “Se a arte não fosse capaz de estabelecer tal vínculo, tal como o faz a natureza, então, em geral, ela não estaria apta a criar nada.” E ele aponta que o artista que somente foi capaz de tomar como ponto de partida a forma em si, mesmo que tenha alcançado o mais alto refinamento de seu trabalho como pintor, ainda assim sua obra será a expressão do vazio. Pois não é possível CRIAR através “da mera forma”.


“Antes de mais nada, a natureza vem ao nosso encontro de modo hermético e sob uma forma mais ou menos rígida. Assemelha-se à beleza sóbria e serena, que não chama a atenção por meio de sinais gritantes e nem atrai o olhar vulgar. Como podemos fundir, digamos, do ponto de vista espiritual, aquela forma aparentemente rígida a fim de que a força mais clamorosa das coisas flua juntamente com a força de nosso espírito, transformando-as num só molde? Temos que ultrapassar a forma, para, aí então, readquiri-la como algo inteligível, vívido e verdadeiramente sentido. (grifo meu)


Leonardo da Vinci: Dama com arminho,
1485-90
Mais à frente em seu discurso, Schelling felicita aquele pintor que consegue, em seu espírito criador, nos mostrar uma obra em que a atividade consciente do seu espírito se une à força inconsciente presente na Natureza. Complementa: “a arte transfere à sua obra, com a mais elevada claridade do entendimento, aquela realidade inescrutável mediante a qual ela termina por se assemelhar a uma obra da natureza.”


Mas nada disto significa copiar. O filósofo alemão criticava aqueles que apenas copiavam o que viam, com “fidelidade subalterna”: “talvez lhe fosse dado produzir larvas, mas de modo algum obras de arte”, diz ele. Pois o critério para definir uma obra de arte é que ela possua em si aquela dupla união entre a forma e o conceito. Que, diga-se de passagem, vai muito além da simples discussão entre “forma e conteúdo”, temas que despertaram calorosos debates nos últimos cem anos. Em muitas pinturas dos mestres não só chama a atenção a sua qualidade técnica, mas também seu “pensamento”. É o que Schelling afirma, junto com outros estudiosos: “Esse espírito da Natureza, que atua no interior das coisas e fala por meio da forma e da figura como que através de imagens-sentido, decerto deve ser emulado pelo artista, haja vista que só quando este o captura com uma vívida imitação lhe é dado criar algo verdadeiro.”


Pois obras que emergem de uma composição de formas, ainda que belas,
seriam destituídas de toda beleza, já que a única coisa que concede beleza à
obra ou ao seu todo já não pode ser a forma. Trata-se de algo que está além 
da forma; é a essência, o universal, vislumbre e expressão do imanente
espírito da natureza.”


As imitações, inclusive levadas ao nível da ilusão, continua Schelling, sempre aparecerão falsas. “Ao passo que uma obra na qual vigora o conceito, termine por lhe arrebatar com a plena força da verdade, transpondo-o de saída ao mundo legitimamente efetivo”.


Michelangelo: Tondo Doni
Avaliando a evolução histórica da arte, desde sua tenra juventude dos tempos mais remotos até os dias atuais, Schelling destaca que a arte suprime algo que não é, segundo ele, essencial: o Tempo. Não “tempo” no sentido histórico humano, mas no sentido mais amplo do tempo como movimento que não se repete. O tempo daquele instante único capturado pelo pincel do artista e que o torna eterno: o instante em que a leiteira derrama o leite dentro de um recipiente e que foi eternizado por Jan Vermeer; aquele momento em que o velho Tiziano, com o rosto já marcado com os sofrimentos da vida, decidiu pintar seu autorretrato; ou o instante do olhar do filho Titus que foi marcado para sempre numa tela por seu pai Rembrandt; ou o momento de angústia de Gustave Courbet detido por sua participação ativa na Comuna de Paris…


Outra das grandes ideias defendidas por Schelling e que deve sempre nos nortear é a da percepção da totalidade das coisas, tendo consciência de que nada no mundo se encontra em separado. Tudo existe em relação. Eu me relaciono com o mundo em que vivo, sofrendo todo o tempo as influências do tempo presente, com sua cultura pulverizada, que tem pregado, nestes tempos pós-modernos, o reino da individualidade e do particular. A “maioria considera o particular em chave negativa”, diz o filósofo, ou seja, o particular como algo que não é parte do todo. Mas o particular só existe em face da totalidade: “morta e insuportavelmente rígida seria a arte que tencionasse expor a casca vazia ou a limitação daquilo que é individual.”


Jan Vermeer: A leiteira, 1658-1661
Nada pode ser separado de nada, nem o sólido do frágil, nem o determinante do determinado. Uma coisa pressupõe a outra e só pode existir em conjunto. Por isso, mesmo aquilo que não é belo, torna-se belo “mediante a harmonia do todo”. Por outro lado, Schelling faz uma admoestação ao artista: na distribuição do espaço, da luz, da sombra e do reflexo, há que se levar em conta as gradações da beleza, para que o quadro não se revele uma “antinatural monotonia”. Há que se particularizar um ponto da obra em que a beleza plena se destaca. Não é possível dar a todo o conjunto a mesma medida de beleza, mas, como Rafael, saber romper sua regularidade para que a expressão mais bela possa brilhar no centro do quadro. Schelling disse também que o “caráter” de uma pintura é aquilo que se extrai do ritmo interno, da “unidade de múltiplas forças” que agem em conjunto para “lograr uma certa harmonia e uma determinada medida”. Somente é possível criar uma unidade viva “se as forças, levadas à sublevação por meio de alguma causa, saírem do equilíbrio.” É a necessária assimetria que cria vida.


Ou seja: o edifício teórico que sustenta uma boa pintura é pleno de conceitos, de movimentos dialéticos entre o olhar do artista e sua observação do mundo.


Ticiano: Autorretrato, óleo sobre tela, 1550
Isto é fácil? Não, dificílimo! Por isso, essa postura tem sido não somente esquecida, mas deixada de lado pela arte dita contemporânea. Pois é melhor atender ao pragmatismo exigido pelo sistema de artes atual (que inclui o Mercado capitalista), mesmo que para isso seja feita uma mutilação no conjunto da teoria, que vem sendo enriquecida ao longo de toda a história humana. Esquece-se o rico legado teórico que herdamos e que poderia nos levar ao lado e além dos mestres do passado, em troca do utilitarismo pragmático que nada cria, a não ser fumaça. Ou que corta um pedaço do pé, para que caiba no sapato da teoria acadêmica atual...


Mas, diz Schelling, a pintura enobrece, modela as almas ou pelo menos indica o poder da alma que nela existe. Ao criar sua obra, o artista leva ao público observador uma possibilidade de mergulho na unidade do mundo, que eleva e dignifica. Mas que também lhe mostra seu potencial e capacidade de criador de seu próprio mundo. Também podemos lembrar do que pensava seu contemporâneo, o filósofo Hegel, que considerava a obra de arte como o meio privilegiado “através do qual o espírito humano se realiza”.


Ao final do seu discurso, Schelling faz menção a alguns dos grandes mestres do passado:


Rafael: Retrato de Agnolo Doni, 1505-06
- Michelangelo, “aquele espírito gigante”, atraído “pelos fundamentos mais recônditos da forma orgânica e, em especial, da figura humana, ele não evita o assustador, senão que o procura intencionalmente, despertando-o de seu repouso nas obscuras oficinas da natureza”;


- Leonardo da Vinci e Correggio apaziguam a violência inicial e “o espírito da natureza transfigura-se em alma” (entenda-se “espírito da natureza como a vida das coisas”). “A expressão geral dessa alma sensível é o claro-escuro (...) pois aquilo que o pintor põe no lugar da matéria é o escuro; sendo esse o estofo no qual ele deve afixar a fugidia aparência da luz e da alma”;


- Rafael “toma posse do sereno Olimpo e, consigo, conduz-nos da Terra à assembleia dos deuses”. “O florescer da vida perfeitamente formada, o perfume da fantasia e o tempero do espírito exalam, juntos, de suas obras. Ele já não é pintor, mas sim filósofo, sendo, a um só tempo, poeta.”;


Abaixo, destaco algumas questões colocadas por Schelling naquele 12 de outubro de 1807 e que até hoje rondam as cabeças de muitos artistas:


- “Como ainda seria possível contemplarmos essas obras dos antigos mestres, de Giotto ao professor de Rafael, movidos por uma espécie de devoção, inclusive por uma certa predileção, se a fidelidade de seus esforços e a grande seriedade de sua serena e espontânea limitação não nos impusesse respeito e admiração?”;


- “(...) temos de recriar a arte seguindo o mesmo trilho que eles seguiram, mas com nossa própria força, para nos igualarmos a eles.”;


- “Tudo o que cresceu a partir de inícios árduos e pequenos, mas terminou por adquirir vasto poder e altura, tornou-se grande por intermédio do entusiasmo. Isso vale tanto para impérios e Estados quanto para as artes e ciências. Não é porém a força do indivíduo que leva isso a efeito; tal tarefa cabe apenas ao espírito, o qual se espraia pelo todo.”;


- Ao artista, ninguém “pode ajudá-lo, já que ele mesmo deve ajudar-se; tampouco pode ser gratificado com algo que esteja fora de si, pois tudo aquilo que viesse a produzir sem vontade própria tornar-se-ia, de imediato, nulo; justamente por isso ninguém pode comandá-lo ou prescrever-lhe o caminho que deve peregrinar. Se é lamentável que tenha de lutar contra sua época, é tanto mais desprezível se com ela for indulgente.”


- “Apenas uma mudança operada nas próprias ideias é, pois, capaz de erguer a arte de seu esgotamento; somente um novo saber e uma nova crença estariam aptos a incitá-la ao trabalho por meio do qual ela revela, numa vida rejuvenescida, uma opulência semelhante àquela do passado. Com efeito, uma arte exatamente igual, em todas as suas determinações, à arte dos séculos precedentes jamais retornará; pois a natureza nunca se repete. Não haverá um Rafael como aquele de outrora, mas um outro a quem, de maneira particularmente similar, será facultado atingir o vértice da arte. Desde que se atenda àquelas condições básicas, a arte revitalizada mostrará o objetivo de sua determinação, tal como mostrara, em suas primeiras obras, a arte que a antecedeu”.
Rembrandt: Titus, óleo sobre tela, 1655