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quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

Andrei Rublev e os ícones russos



"A Trindade", Andrei Rublev, Galeria Tretyakov de Moscou

Fome, doenças, invasões de tártaros e mongóis foram uma constante na vida do povo russo na mesma época em que viveu o monge pintor de ícones, Andrei Rublev. O mais famoso pintor de ícones da história da Igreja Ortodoxa da Rússia é conhecido internacionalmente, especialmente após o lançamento, em 1966, do filme "Andrei Rublev", do diretor de cinema também russo Andrei Tarkovski.

Mas pouco se sabe sobre a vida de um dos mais famosos pintores russos, a não ser que nasceu na década de 1360 e faleceu em Moscou em 1430. Tarkovsi, em seu filme de três horas de duração, mostra como deveria ser a vida naqueles tempos do século XIV, na Rússia de Rublev… A religião oficial já era a Ortoxoda, originária diretamente dos áureos tempos de Bizâncio, e muito das práticas religiosas foram absorvidas diretamente dos monastérios de Constantinopla. Os primeiros pintores de ícones presentes em solo russo eram de origem bizantina. Com eles, os monges russos aprenderam a técnica da pintura de ícones, prática que atravessou toda a história daquele país, é parte profunda de sua cultura e ainda hoje é matéria ensinada nas escolas de arte, como em São Petersburgo.

OS ÍCONES

Fragmento de um  dos ícones
pintados por Rublev
O que é um ícone? Aqui nesta página, temos alguns exemplos de ícones pintados, mas há vasto material de pesquisa de imagens disponíveis na web, além de muitos livros publicados. O ícone que inicia este artigo (acima) “A Trindade”, pintado por Andrei Rublev é um dos mais importantes e dos mais conhecidos.

Na concepção da ortodoxia russa, o ícone (pintura da divindade ou de santos) é muito mais do que uma simples pintura, como ocorre na arte ocidental. Mais do que uma representação figurativa, o ícone era a incorporação mesma da energia da divindade feita pintura, uma espécie de Teofania (Revelação) do divino. Ou como uma janela que se abre para o céu, através da qual se pode contemplar o mundo espiritual, como me explicou há muitos anos atrás um monge ortodoxo aqui em São Paulo. Alguma coisa similar a isso, encontramos na tradição ocidental católica com as relíquias dos santos (pedaços de tecidos, pertences ou mesmo parte dos corpos de santos, como pedaços da cruz onde Cristo teria sido crucificado, ou mesmo o Santo Sudário, lençol onde estaria impressa a imagem de Jesus).

Em todo o território russo, os ícones fazem parte da vida e da cultura de sua população. Há ícones em todo lugar, nas paredes das casas, nos relicários domésticos… Os cristãos ortodoxos veneram seus ícones e persignam-se (fazem o sinal da cruz) diante deles.

Na história da iconografia russa encontramos a informação de que originalmente os monges foram os primeiros pintores de ícones. Eles jejuavam e oravam durante muitos dias antes de começar a pintar as faces de santos e anjos. Dizia-se que a mão do “Espírito Santo” é que movia o pincel do artista, num momento de completa união do humano com a divindade, numa Epifania de fato. Havia numerosas exigências para que um pintor se pusesse à disposição para este trabalho: oração, jejum, penitências. Pois o artista era apenas um instrumento através do qual se manifestava o Sublime. Além de se submeter àquelas regras, o pintor recebia a bênção de outro monge e pedia ao Espírito Santo que lhe inspirasse em sua pintura, que guiasse sua mão, que “benza e bendiga este ícone para que todos quantos se aproximem dele com veneração, obtenham saúde, santificação e bênçãos". Uma das orações era:

“Oh Tú, Dono Divino de tudo o que existe
Ilumina e dirige a alma, o coração e o espírito de teu servidor
Guie minhas mãos para que possa representar digna e perfeitamente
a Tua imagem, a de Tua Santa Mãe e a de todos os Santos.
Para glória, alegria e embelezamento de Tua Santa Igreja.”

Esta característica do ícone faz com que, na tradição russa, esta imagem não seja pura e unicamente uma pintura, mas um objeto de contemplação. Neste trabalho, não se dava importância alguma ao indivíduo que pintava. Sua personalidade e sua subjetividade estavam submetidas às fórmulas e técnicas que ainda são seguidas nos dias atuais, quando se pintam ícones quase da mesma forma que no século VIII.

"Cristo Pantocrator", ícone do séc. XIII
Os ícones não poderiam ser uma representação realista, uma vez que estava se desenhando ao próprio Deus e seus santos, e não à Natureza ela mesma. Enquanto observamos a Natureza (o Real) com nossos olhos físicos, não se dá o mesmo com a “realidade” espiritual, que se vê com os “olhos” da alma. Nos ícones, a figuras sempre são vistas de frente, com reduzidíssima profundidade, ou seja, pintadas de forma plana, sem muita expressão que as humanizaria e lhes tiraria o caráter sagrado.

O fundo dos ícones devem ser dourados, feitos com lâminas muito finas de ouro que se aplicam sobre o suporte. Com isso, não há paisagem no fundo, mas essa luminosidade que o ouro reflete. Essa forma de pintar irá influenciar toda a arte bizantina até a chegada do Renascimento, que descobriu a paisagem.

Após o Renascimento, mesmo na Rússia se vêem os efeitos das novas formas de pintar, que a partir de então muda um pouco os ícones russos, no sentido de que foram incluídas paisagens nas pinturas e muitos pintores de ícones aplicaram sobre suas figuras a técnica do sfumato, que até então não acontecia. O sfumato dá ideia de tridimensionalidade ao quadro, de profundidade. Imita a Natureza, coisa que nas regras iniciais da pintura de ícones não era permitido.

Fragmento de pintura da
Catedral da Anunciação, séc. XVIII
A pintura era feita sobre tábuas de madeira levemente curvadas para dentro e cobertas com uma tela de tecido onde se aplicava uma camada de gesso. A pintura era feita em têmpera, técnica onde se misturam os pigmentos com ovos. Também se adicionavam materiais e pedras preciosas para alguns detalhes. Além disso, o que é uma característica da pintura de ícones daquele período, havia o uso da perspectiva inversa, onde as figuras em primeiro plano podem ser menores do que as dos planos subsequentes. Neste caso, o Ponto de Fuga está invertido, encontra-se no olho do próprio espectador, pois o ícone é um “lugar” intermediário entre o espectador e a divindade. A perspectiva inversa exige que os pés das figuras não estejam apoiados no solo, fiquem como se flutuassem no quadro, o que dá ainda mais o caráter espiritual a elas. Além disso, se o Ponto de Fuga se encontra no olho do espectador, que contempla através do ícone o mundo espiritual, isto também traz uma mensagem: o espectador é muitíssimo pequeno diante da grandiosidade daquele mundo contemplado.

A Perspectiva Inversa aparece também nas pinturas orientais da China e do Japão e foi objeto de muito estudo, assim como a Perspectiva Ocidental cujos estudos mais inaugurais aconteceram no Renascimento italiano. Para nossa cultura, influenciada pela europeia, a perspectiva inversa cria um certo estranhamento, como se as coisas estivessem fora de lugar e sem proporção. São simplesmente modos de perceber o mundo. Em algum momento traremos aqui alguns estudos sobre o assunto da perspectiva inversa.

Os ícones russos, então, adquiriram muita importância naquele período, de tal forma que acabou gerando uma enorme disputa, causa de batalhas e guerras no Império Bizantino, uma querela que durou do ano 726 ao 843. Foi um período onde se destruiu muitas imagens e muitos ícones. Mas este é um assunto para o próximo artigo, que deixamos em separado, pois essa "Querela Iconoclasta" ainda traz muita reflexão...

ANDREI RUBLEV

Ícone de Andrei Rublev
Como dissemos antes, pouco se sabe da vida do maior pintor de ícones russos, a não ser por informações dispersas e através do próprio filme de Tarkovski, que fez uma vasta pesquisa sobre este artista russo. Sua vida, no entanto, faz parte de crônicas e vidas de santos, já que ele foi canonizado em 1988 e passou a ser chamado de "Santo André Iconográfico", cuja festa se celebra no começo de julho. 

Sabe-se que ele foi famoso por toda a Rússia, conhecido por príncipes e monges, pois ele trabalhou em igrejas e mosteiros de Moscou, Vladimir e Zvenirogod. Em um manuscrito do século XVII, “A lenda dos pintores de ícones”, Andrei Rublev é chamado de santo-pintor. Redescoberto no século XIX, Rublev se tornou uma referência da pintura icônica e tradicional russa. Mesmo no período da Revolução Soviética, seu nome era símbolo da cultura antiga russa. Em 1960, foram celebrados os 600 anos de seu nascimento e antes disso foi criado o "Museu de Cultura Antiga Russa Andrei Rublev". 

No tempo em que Rublev viveu, a Rússia passava por terríveis invasões de tártaros e mongóis que, por onde passavam, destruíam cidades, saqueavam igrejas e mosteiros, levavam pessoas cativas. Ao mesmo tempo, uma guerra sangrenta entre Moscou e Tver tornou muito perigosa a vida entre 1364 e 1366. Moscou foi incendiada em 1365 e em 1638 foi atacada pelos lituanos. Além disso, a partir de 1371 a fome assolou a cidade.

"Cristo Pantocrator",
ícone mais recente, pós-renascentista
Em meio a esse caos, Andrei foi crescendo e se desenvolvendo como pintor. Infelizmente nada se sabe sobre sua família, nem o ambiente do qual ele veio. Mas seu sobrenome parece sugerir sua origem, segundo estudiosos. Em primeiro lugar, somente os nobres, naqueles tempos, tinham um sobrenome. Em segundo, ele indica um ofício, que pode ter sido o do seu pai ou de um antepassado próximo. A palavra Rublev vem de “rubel”, um instrumento para enrolar couro, o que pode indicar que sua família era de curtidores de couro. Também não se sabe com quem Rublev teria aprendido a pintar. A primeira e mais antiga menção ao seu nome se encontra nas crônicas de 1405, onde foi relatado que três monges teriam pintado a Catedral da Anunciação: Teófanes o Grego, Prokhor o Velho e Andrei Rublev. Nesse escrito se dizia que Rublev era um mestre respeitado. Seu nome ter aparecido em terceiro lugar significa que ele era o mais novos dos três.

Provavelmente ele teria feito seus votos monásticos no Monastério da Trindade, como discípulo de Sérgio de Radonezh, futuramente canonizado como São Sérgio. Sobre isso se fala também em manuscritos do século XVIII. Sérgio desempenhou um grande papel no renascimento espiritual da Rússia e foi ele quem teria passado a Andrei Rublev a experiência da oração permanente e do silêncio como prática contemplativa hoje conhecida com o nome de Hesicasmo. Assim, Andrei estava completamente mergulhado em seu mundo como pintor de ícones…

Catedral russa do século XV
Nas crônicas de 1408 ele é mais uma vez citado como o pintor da Catedral de Vladimir, cidade a leste de Moscou, fundada em 1098. Este trabalho, Rublev dividiu com Ikonikov Daniel Cherny, de quem se tornou grande amigo. Daniel pode ter sido grego ou sérvio, e seu apelido era “Preto”. A amizade entre Daniel e Andrei durou até o fim da vida deste. A Catedral de Vladimir havia sido construída no século XII e suas pinturas foram muito prejudicadas com as invasões mongóis. Daniel e Andrei, chamados para renovar as pinturas da igreja, pintaram um “Juízo Final” em suas paredes. Pouco resta destas pinturas, mas seus estudiosos dizem que eles conseguiram transformar o que poderia ser uma cena terrível em um festa de Justiça, onde afirmavam pictoricamente o valor moral do ser humano.

Em meados da década de 1420, Andrei e Daniel Preto trabalharam na pintura da Santíssima Trindade na Catedral do Mosteiro da Trindade. Essas pinturas não sobreviveram, mas somente algumas que fazem parte do iconostasis (local intermediário entre o altar principal e a nave central, onde se reunem diversos ícones). Foi lá que Andrei Rublev pintou seu famoso quadro “A Trindade”, o que foi considerado um feito altíssimo do ponto de vista espiritual, pois apenas um pintor que estivesse profundamente envolvido em sua vida de hesicasta seria capaz de uma tal demanda…

Rublev também era um leitor de livros, coisa rara naquela época. Somente os mosteiros possuíam bibliotecas e seu acesso era restrito aos monges. Rublev também pintou iluminuras nos livros. Além de ícones de madeira, também pintava afrescos.

Os últimos anos de sua vida ocorreram enquanto pintava a Catedral de São Salvador, em Moscou. Foi acometido de uma praga que assolava a cidade desde 1428. Tendo conquistado reconhecimento em vida, coisa incomum para artistas, ele não foi esquecido após sua morte. No século XV o local de seu sepultamento já era lugar de peregrinação. Mas somente em 1988 é que foi oficialmente canonizado e reconhecido como santo russo.

Seu trabalho como artista teve grande reconhecimento fora dos círculos religiosos. Redescoberto no século XIX, era enaltecido como artista da cultura medieval russa. Como aquele que incorpora o Sublime e a Beleza Espiritual, assim como o potencial humano de alcançar altos níveis intelectuais. Sua criatividade representa um dos pináculos da cultura russa em toda a sua história. Grande parte de seu trabalho se encontra exposto nos salões da Galeria Tretyakov de Moscou, onde desperta a atenção de multidões de visitantes de todas as origens.

Cartaz do filme de Andrei Tarkovsky