quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Pequena história do autorretrato - parte IV

"Festa de Caná", Paolo Veronese -
seu autorretrato se encontra no centro da cena, tocando um instrumento de corda
No mundo da arte, como diz Yves Calméjane, quando “uma estrela desvanece, outra se ilumina; quando um artista se apaga, outro nasce”. E tem sido assim ao longo da história da arte. Neste post aqui, vamos falar de alguns dos artistas que o autor do livro (“Histoire de moi - histoire des autoportraits”) destaca, tendo sempre como foco a história do autorretrato nas obras de arte.

ALBRECHT DÜRER (1471-1528)
Autorretrato de Dürer, feito em 1500
Nasceu em Nuremberg, Alemanha, em 21 de maio de 1471 e faleceu na mesma cidade em 6 de abril de 1528. É o mais conhecido dos artistas do Renascimento alemão, tendo sido pintor, desenhista, gravador e autor de diversos escritos teóricos sobre arte. Influenciou os artistas do século XVI na Alemanha e nos Países Baixos, mas causou admiração também entre os italianos, em especial, Rafael Sanzio.

Dürer pintou diversos autorretratos, sendo os mais conhecidos realizados quando ele tinha 22, 26 e 28 anos de idade. Neste último, feito em 1500, ele escreve: “Eu, Albrecht Dürer de Nuremberg, foi assim que me pintei com cores indeléveis à idade de 28 anos”. O autorretrato dele aos 26 anos está atualmente no Museu do Prado, em Madrid, Espanha.

Segundo Calméjane, Dürer é o primeiro artista que desde o princípio se afirmava como tal. Muito precoce, fez seu primeiro autorretrato com a idade de 13 anos, feito em desenho com Ponta de Prata sobre papel tonalizado. Ele possuía um talento raro. E tinha mania de escrever e fazer registros de tudo o que via, ouvia e aprendia. Nesse trabalho ele escreveu anos mais tarde: “Eu fiz esse retrato eu mesmo, me olhando num espelho em 1484, quando eu ainda era um menino”.

Dürer,
autorretrato nu
Albrecht Dürer fez algumas viagens à Itália, onde teve contato com as obras dos mestres italianos. Possuía um grande desejo de se tornar mestre em seu ofício, aprender tudo o que pudesse. Em seus registros, certa vez anotou: “Para ser um grande pintor, um eminente artista, é preciso copiar assiduamente as obras dos bons mestres, até que alcancemos uma completa liberdade da mão”.

Na Itália, lhe chamaram a atenção, em especial, as obras de Pollaiolo, Mantegna e Bellini. Se interessava em aprender sua técnica e apreciava muito as representações da figura humana nua e os estudos de anatomia. Por isso, foi ele quem fez o primeiro autorretrato nu da história da arte, por volta de 1505. Esta inovação foi imitada mais tarde, em 1525, por Jacopo Pontormo (1494-1557), que o fez em Sanguínea, mas não estava completamente nu.

Dürer trabalhava de forma intensa. Foi muito copiado por outros contemporâneos e por causa disso recorreu ao Conselho de Nuremberg diversas vezes, pedindo proteção contra estes copiadores. Por isso, passou a colocar uma espécie de “logomarca” sua em todos os desenhos e gravuras que fazia, uma espécie de atestado de autenticidade… Se queixava de certos artistas italianos que lhe “denegriam”, copiando-o: “muitos me são hostis e procuram copiar minhas obras nas igrejas e por todo lugar onde podem encontrá-las”.

GERLACH FLICKE (1545-1558)

Autorretrato de Gerlach Flicke. À direita, seu companheiro de prisão,
o pirata Henry Strangwish
Nasceu na Alemanha, mas ficou conhecido mesmo por seu trabalho de pintor em Londres. Foi lá que ele fez o primeiro autorretrato pintado em óleo na Inglaterra. De origem católica, ele foi obrigado a fugir de sua terra por causa da repressão exercida pela Igreja Reformada Alemã, que passou a perseguir os que não se convertiam ao protestantismo. Mas a Inglaterra também vivia período de turbulências por causa do mesmo motivo (a Reforma Protestante) e Gerlach foi levado preso para a Torre de Londres em 1554. Decidiu, antes de morrer, pintar seu autorretrato, mas fez também o retrato de seu companheiro de cela, o pirata Henry Strangwish.

As duas pinturas são em formato bem pequeno. Gerlach escreveu em seu autorretrato: “Aqui está o retrato de Gerlach Flicke enquanto pintor na cidade de Londres. Fui eu mesmo que pintei com a ajuda de um espelho, e pintei-o para meus amigos, para que eles possam ter alguma lembrança minha após minha morte”.

Que aconteceu quatro anos depois. Mas ele ainda fez alguns poucos retratos, incluindo um de Thomas Cranmen que, em 1545, foi o primeiro arcebispo protestante de Canterbury.

RAFAEL E MICHELANGELO
Rafael Sanzio (1483-1520), foi pintor, escultor e arquiteto, autor das famosas pinturas em afresco conhecidas como as “Stanzas do Vaticano”.

Detalhe do afresco "Juizo Final" de
Michelangelo, onde ele pinta seu autorretrato
Michelangelo Buonarrotti (1475-1564) também foi pintor, escultor e arquiteto. É o autor do famoso afresco pintado no teto da Capela Sixtina.

Ambos trabalhavam para a igreja Católica, em especial para o Papa Julio II.

Em seu quadro “A Escola de Atenas”, (veja abaixo) terminado em 1511, Rafael pinta a si mesmo num grupo de homens que representava as Belas Artes, e se pintou próximo de Perugino. Nesta mesma obra, representou Leonardo da Vinci como Platão, Michelangelo como Heráclito, segundo Yves Calméjane.

Do seu lado, Michelangelo pinta em 1541, quando tinha 60 anos de idade, um terrível autorretrato. “As óbritas vazias e escuras não nos olham mais, mas os cabelos encaracolados e castanhos, a curvatura do nariz quebrado por Torigiano, a barba e o bigode caindo, e molhados das águas do Styx, não deixam nenhuma dúvida de que é um autorretrato”, complementa Calméjane.

EL GRECO (1541-1614)
Autorretrato de El Greco em
A Sagrada Família e Maria Madalena
Domenikos Theotokopoulos nasceu em Candia, Grécia, e morreu em Toledo, Espanha, em 1614. Ficou conhecido como El Greco e foi um pintor do período renascentista que desenvolveu um estilo muito pessoal de pintar. Até os 26 anos de idade viveu em Creta, onde pintava ícones em estilo bizantino. Depois disso, morou por 10 anos na Itália onde, em Veneza, estudou os mestres italianos, especialmente Ticiano e Tintoretto. Em Roma, estudou a obra de Michelangelo. Depois disso, mudou-se para Toledo, onde viveu e trabalhou até o fim da vida.

El Greco se pintou diversas vezes em suas obras, como na “Sagrada Família e Maria Madalena”, de 1592. Se pintou na figura de São José. Para a Virgem, usou como modelo sua esposa Jeronima de las Cuevas e o Menino Jesus era seu próprio filho, Jorge Manuel. El Greco usou seu filho como modelo para diversas pinturas.

PAOLO VERONESE (1528-1588)
Filho de um pedreiro, nasceu em Verona, Itália, onde se formou como pintor. Em 1541 se tornou discípulo de Antonio Badille, que era pai de Elena, com quem Veronese se casou. Com 28 anos de idade mudou-se para Veneza, onde se desenvolveu ainda mais em sua arte, aprendendo muito com as obras de Ticiano e Tintoretto. Veronese e Ticiano são os grandes pintores da Escola Veneziana.

Após o Concílio de Trento, os severos padres da Inquisição decidem controlar absolutamente tudo o que dissesse respeito à fé católica.

No dia 18 de julho de 1573 se lançaram contra uma pintura de Veronese, cujo título era “A Última Ceia”. Ela tinha sido feita para adornar o refeitório do convento dos santos João e Paulo.

Chamado imediatamente pelo Santo Ofício, Veronese teve que responder aos padres indignados. Eis o diálogo que teria ocorrido:

Padres: - O que você faz?
Veronese: - Desenho e pinto figuras…
P - E o que significa a figura cujo sangue sai do nariz?
V - É um servo, que um acidente qualquer lhe fez sangrar o nariz…
P - E o que significam essas pessoas armadas e vestidas à moda alemã?
V - Nós pintores nos damos as mesmas licenças poéticas que poetas e loucos se dão e por isso eu quis representar esses boas-vidas aí, um bebendo, outro comendo embaixo da escada, prontos para cumprir seus serviços. Porque parece possível, e desejável, que o dono de uma casa rica pudesse ter tantos servos.
Padres: - E aquele vestido de bobo da corte com um papagaio na mão?
V - Está lá como um ornamento…
P - Que faz o terceiro personagem?
V - Ele limpa os dentes com um garfo…
P - E vos parece conveniente, na Última Ceia de Nosso Senhor, representar bobos da corte, alemães bêbados, anões e outras bobagens? Por isso, nós, os julgadores pronunciamos que o supracitado Paolo Veronese seja obrigado a corrigir e emendar seu quadro em um prazo máximo de três meses!

As modificações exigidas pelos padres da Inquisição nunca foram feitas. Veronese apenas mudou o título do quadro para “Jantar na casa de Levi”.

Paolo Veronese pintou numerosas telas em refeitórios de congregações religiosas usando sempre temas bíblicos, mas que eram muito mais profanos do que religiosos. Na tela “Festa de Caná”, ele pintou Tintoretto tocando violino, Bassano na flauta e Ticiano no contrabaixo. São 132 figuras na cena! Ele mesmo se pinta um autorretrato tocando um instrumento de corda. Calméjane observa que naqueles tempos, era comum pintores também serem músicos, como é o caso de Tintoretto, que teria sido também um talentoso violinista.

"Escola de Atenas", Rafael Sanzio - abaixo seu autorretrato
"Escola de Atenas", detalhe
Rafael é este jovem à direita, olhando
para a frente
"Sagrada Família com Maria Madalena", El Greco
Autorretrato de Albrecht Dürer aos 13 anos 
"Juízo final", Michelangelo
"Jantar na casa de Levi", Paolo Veronese 
Autorretrato de Albrecht Dürer aos 26 anos

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

Pequena história do autorretrato - parte III

Autorretrato de Adam Kraft
Os primeiros retratos realistas e claramente identificáveis foram executados em três dimensões, ou seja, esculpidos. Os escultores do final da Idade Média eram tanto pintores como escultores, e até mesmo arquitetos, como o alemão Peter Parler (1330-1399) a quem foi confiada a construção da catedral Saint-Guy em Praga, em 1353. Seu atelier fez 21 retratos para a decoração da igreja, entre eles um autorretrato.

Autorretrato de Nikolaus Gerhaert
O gênero do autorretrato onde o artista se integra a uma cena, religiosa ou profana, será uma prática de numerosos pintores da Renascença, como Andrea di Cione Arcângelo (1320-1368), conhecido como Orcagna, também arquiteto e escultor. Junto com seus irmãos Jacopo, Matteo e Nardo, mantinha seu ateliê em Florença, e era bastante requisitado. Sua obra foi marcada pela influência do também pintor italiano Giotto e seu realismo. Ele esculpe em mármore uma representação da “Morte e Assunção da Virgem” para a capela de Orsanmichele em Florença, no ano de 1355, em cuja cena ele esculpe seu autorretrato.

Nikolaus Gerhaert de Leyde, escultor holandês que viveu ente 1420 e 1473, também se autorretrata na escultura “Busto de homem debruçado”, ele aparece em “melancólica meditação”, com seu corpo colocado em elegante movimento, voltado sobre seu eixo vertical e tendo o queixo apoiado sobre a mão direita (foto ao lado).

Adam Kraft (1460-1532), virtuoso escultor alemão nascido em Nuremberg, se representou de joelhos, ferramentas à mão, ao pé do imenso tabernáculo de pedra de mais de 18 metros de altura que ele esculpiu para a igreja São Lourenço de sua cidade (foto acima deste post).

Autorretrato de Van Eyck
Os poderosos daqueles tempos antigos, colocaram a seu serviço inúmeros artistas. Um deles foi o artista flamengo Jan van Eyck (1395-1441). Ele teve o título (que na época era honroso) de “Criado de quarto” ("valet de chambre") do Duque de Borgonha, Felipe o Bom, de quem era homem de confiança. Van Eyck deu uma grande contribuição ao desenvolvimento do retrato na pintura. É bem conhecida sua obra “O casal Arnolfini”.

Mas a grande novidade introduzida por Jan van Eyck ao retrato é o olhar. A partir dele, os olhos do retratado fixam o expectador. Seu autorretrato com o turbante vermelho é considerado, segundo Yves Calméjane diz em seu livro, o primeiro verdadeiro autorretrato da era moderna. Van Eyck assinou este quadro e escreveu a frase “Als ikh kan” ("como eu posso"). Calméjane acrescenta: “... Van Eyck não deixa de jogar com duplos sentidos e essa fórmula assinala de qualquer maneira uma falsa modéstia, aquela do artista demiurgo que se surpreende com seu próprio poder."

Na pintura mundialmente conhecida “O casal Arnolfini”, há um verdadeiro jogo de perspectivas e modos de ver a obra. No espelho convexo do fundo do quadro ele se pinta a si mesmo e escreve: “Jan van Eyck estava lá”. Ele espia o expectador do fundo do espelho, assim como acontece em outros de seus quadros. Diz Calméjane que nenhum detalhe de suas pinturas era sem importância para Van Eyck, cujos quadros são repletos de símbolos. O pesquisador de arte Pierre-Michel Bertrand diz ver no “O casal Arnolfini” uma quantidade grande de possibilidades de investigação, onde ele tenta provar que na verdade este homem seria o próprio pintor em companhia de sua esposa Margarita. Em 1934, o historiador da arte Erwin Panofsky lembra que antes do Concílio de Trento (1545) era possível se casar de forma mais simples e sem a presença de um padre, apenas através de um juramento onde a noiva colocava sua mão direita sobre a mão do noivo. Então “trata-se de um casamento ao qual assistimos”, observa Calméjane… 

"O casal Arnolfini", Jan van Eycke

Na Itália, aprofunda-se o estudo da perspectiva (do latim “perspicere”, que significa “ver através” ou “ver claramente”). A perspectiva enriquece a pintura.

Autorretrato de Alberti
E é na Itália que vamos encontrar Leone Batista Alberti (1404-1472), o autor do tratado sobre pintura “De Pictura”, que dedica a um dos primeiros estudiosos da perspectiva, Brunelleschi.  Alberti observa que Brunelleschi desenvolvia o método para representar os objetos em relevo sobre uma superfície plana utilizando um ponto de fuga. Alberti possuía muitos talentos em domínios variados: Pintura, Desenho, Escultura, Arquitetura, Matemática, Estética. Muito atraído pelo conceito da "Regra Áurea" e pelos filósofos antigos como Pitágoras, Alberti desenvolve sua própria teoria da Beleza exprimível através da harmonia regida pelas regras matemáticas. Para ele, a "Regra Áurea", ou a "proporção divina", seriam os fundamentos da Beleza. É nesse espírito que ele trabalha em seu autorretrato em bronze, inspirado na arte romana, por volta de 1435. Feito apenas dois anos após o autorretrato de Van Eyck, “ele testemunha a consciência individual do artista nos albores da Renascença”, observa Yves Calméjane. 

Van Eyck, com seu autorretrato, nos presenteia com o olhar, enquanto Alberti com sua paixão pela perspectiva.

Autorretrato de Jean Fouquet
Na França, surge Jean Fouquet (1420-1478), considerado um dos grandes renovadores da pintura francesa no século XV. Fouquet também realiza seu autorretrato por volta de 1451. Para ele também, a geometria estava presente em tudo. Ele adorava - diz Calméjane - traçar linhas e situar nelas alguma figura da natureza. Ele se colocava na confluência entre a arte flamenga e a italiana, herdando dos primeiros a força de seu realismo, a ciência dos detalhes, o gosto pelos materiais; dos italianos ele herdou a construção rigorosa de sua arte, o gosto pelas formas puras e a maestria da perspectiva.

Fouquet se especializou em fazer retratos e, com isso, sua fama se espalhou, chegando até o Papa Eugênio IV, que lhe encomendou um retrato. Mas também se dedicou às iluminuras, aos vitrais, à tapeçaria, à miniatura. “Em seus quadros como em suas mais finas miniaturas, seus tecidos brilham, as folhas das árvores se mexem, os reflexos da chuva e do sol se mostram”, observa Calméjane. 

Fouquet resumiu, então, sua arte em seu próprio autorretrato, feito em couro, com esmalte negro e dourado. Apesar do pequeno formato de 6 cm, ele é monumental, diz o autor do livro. O olhar se dirige ao espectador, o de uma figura localizada na sombra, centralizada no quadro e modelada com cuidado. “A expressão do artista, tão intensa quanto aquela de Van Eyck, lança uma reflexão um pouco mais humana e profunda, de forma direta” (Calméjane). Esta pequena obra de arte testemunha que, naqueles tempos, o artista tinha plena consciência de sua presença e seu papel no mundo.

On dirait que l’art sort de la nuit”... A arte se iluminava com os novos tempos que chegavam.


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continua no próximo post
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Referência bibliográfica:

Histoire de moi - histoire des autoportraits, Yves Calméjane, Thalia Editions, Paris, 2006

sexta-feira, 26 de agosto de 2016

Pequena história do autorretrato - parte II

Adicionar legenda
No final da Idade Média, especialmente entre os séculos XI e XV, grandes mudanças foram acontecendo em todas as áreas da vida humana. Houve um excepcional desenvolvimento econômico, demográfico, social e cultural em toda a Europa. O período expansionista europeu se intensifica com as Cruzadas e o avanço dos reinos cristãos reduzem o espaço do islamismo na Península Ibérica e pelo interior da Ásia. Se desenvolve o modo de produção feudal e surgem as primeiras cidades e seus primeiros burgueses, que crescem com aumento da demanda de produtos artesanais, e o comércio alcança largas distâncias. Nascem as feiras livres, as rotas comerciais terrestres e marítimas.

A Cruz de Mathilde, feito por Matilda,
abadessa de Essen (973-1011)
A arte românica e as primeiras manifestações da arte gótica são protegidas pelas ordens religiosas. A Europa se enche de mosteiros e nascem as primeiras universidades europeias: Oxford, Sorbone, Cambridge, Bolonha, Salamanca, Coimbra. A Filosofia retoma novo impulso com as traduções dos textos antigos, como os de Aristóteles e Platão, feitas pelos árabes, e com isso surge o filósofo Tomás de Aquino. O Direito Romano é redescoberto a favor dos reis, que se passam a considerar como “imperadores” em seus reinos. Os conflitos também crescem, com as revoltas camponesas contra os altos impostos que deviam pagar aos senhores feudais, e as guerras feudais são constantes.

Eram essas as primeiras manifestações do capitalismo comercial que se desenvolvia, em especial na Itália e nos Países Baixos. O comércio marítimo com o Oriente enriqueceu cidadãos italianos e europeus do norte. Novos ricos, negociantes, banqueiros, transportadores e grandes proprietários de terras criaram uma demanda que incentivou também a criação de ateliês. A arte já não estaria mais ao serviço exclusivo de reis e religiosos. O burguês também passou a encomendar suas pinturas.

As mulheres pintoras

Mas, neste post, nos voltaremos a dar um destaque especial para o papel das mulheres, que já então exerciam atividades variadas, desde a tecelagem, fiação, gastronomia e cuidados com os doentes. Mas o mundo das artes era interditado a elas, porque era considerado domínio dos homens.

Em muitos momentos da minha vida ligada à arte, me questionei sobre os motivos que fazem termos um domínio tão grande do sexo masculino sobre as artes. Muito pouco se conhece e se fala sobre mulheres artistas (já escrevi um artigo sobre isto, que pode ser visto aqui). Claro que isso merecia um estudo aprofundado, mas basicamente este fato não se deve à incapacidade intelectual da mulher em ser artífice de qualquer coisa; pelo contrário, durante muitos séculos era simplesmente proibido às mulheres o ofício de artistas, o que dá para se constatar a profunda cultura machista do mundo em que vivemos. Para o qual a Igreja Católica deu grande contribuição, com sua eterna política de relegar o papel da mulher ao mais subserviente lugar. Lembre-se que até a década de 1960 (!!!) era interdito, em muitos lugares, às artistas brasileiras (apenas para ficar no Brasil) a participação em aulas com modelo vivo nu, matéria altamente importante para a formação de qualquer artista. Vera França, uma senhora de cerca de 75 anos hoje, foi uma das primeiras mulheres a encarar a profissão de modelo vivo como forma de ganhar a vida.

Voltemos ao livro de Yves Calméjane, que abre um capítulo especial para as mulheres artistas.

Na Idade Média, mesmo no auge do período de florescimento cultural e de reforma educacional implementada por Carlos Magno (como vimos no post anterior), era proibido às mulheres também o acesso à Educação. Eram raras, portanto, as que sabiam ler; as que sabiam, aprenderam sozinhas e de forma escondida. Por isso os conventos se revelaram para elas lugares de relativa liberdade, onde elas tinham acesso a alguma formação intelectual e onde sua autoexpressão se manifesta.

As mulheres foram as grandes ausentes dos processos de criação artísticos e dos meios intelectuais em geral, por longos séculos… Mas mesmo assim, houve as que se rebelaram contra este sistema machista e excludente, e a elas vamos dar todo o destaque deste artigo atual.

Iaia de Cysique foi uma artista que trabalhou em Roma no século I a. C. Quem fala dela é o pensador romano Plínio, o Velho (ano 23 a 79 a.C.), que escreveu o texto “Mulheres também pintam”, onde ele cita vários casos de mulheres pintoras, entre elas Iaia de Cysique, célebre por seus retratos de mulheres, cujas obras eram vendidas por preços mais altos do que os de seus contemporâneos homens. Ela também teria feito seu próprio retrato, provavelmente o primeiro autorretrato da história... Plínio fala também de Marsia, “a mais célebre retratista de seu tempo” e de uma “certa Olimpia”, que teria sido professora de pintura. Iaia de Cysique foi redescoberta em 1361 graças a Giovanni Bocaccio, poeta e humanista italiano, em seu livro intitulado “As claras e nobres mulheres”.

Uma iluminura da monja Ende, séc. X
Por volta do século X, na Europa uma freira espanhola chamada Ende surge como autora de uma série de miniaturas que ilustram, em estilo moçárabe, a “Visão do Apocalipse de São João”, no Livro das Revelações. Ela assina em seu trabalho, por volta de 975: “Endre pintora e servidora de Deus”. Outras freiras, Diemud, Guda e Claricia, que viveram um pouco depois de Endre, tinham como referência a Iaia de Cysique, a artista romana.

Diemud ou Diemudis (1057-1130) era freira no Claustro de Wessobrun, na Alemanha, era ilustradora das iluminuras que enfeitavam os textos religiosos e se autorretratou numa letra “S”. Assim como ela, as freiras Guda e Clarícia, foram também luministas. Guda se retrata na letra “D” e escreve “Guda, pecadora, escreveu e pintou este livro”. Já Claricia não hesita em se desenhar em movimento, segurando a letra “Q”.

Hildegard von Bingen (1098-1179), abadessa, foi uma das grandes figuras intelectuais do século XII, dotada de muitos talentos, particularmente para a música e a ciência. Ela escreveu uma História Natural, dirigiu um hospício e diz-se que possuía dons de cura. Ela também era interessada em política e mantinha correspondências com poderosos da época.

Herrad Von Landsberg (1167-1195) era uma abadessa que dirigia o convento de Santa Odila em Hohenbourg, na Alsácia. Ela participou da realização da enciclopédia Jardim das Delícias, sobre conhecimentos bíblicos, morais e teológicos para o uso das freiras e ilustrado com centenas de miniaturas onde se encontra um autorretrato dela rodeada de freiras.

Pintura de Christine de Pisan
Christine de Pisan (1364-1431), que foi uma pioneira e uma das primeiras “intelectuais”, deplorou a situação de inferioridade das mulheres em seu livro “A cidade das mulheres”, escrito em 1405. Ela havia recebido uma efetiva educação, pelo fato de ser a filha do astrólogo de Carlos V. Em sua obra, Christine fala de uma utópica cidade onde as mulheres eram independentes e viviam em pé de igualdade com os homens. Ela fez menção também às pintoras, como Anastácia, uma ilustradora de luminuras parisiense que possuía grande reputação pela qualidade de seus desenhos, mas cujo trabalho não foi conservado.

Em 1528 na Itália, foi publicado o texto “O cortesão” escrito pelo humanista italiano Baldassare Castiglione, grande amigo do pintor Rafael. Este foi um livro que se popularizou bastante e nele o autor dizia - e recomendava - que os homens e mulheres deviam ser educados nas Artes Liberais em pé de igualdade e enfatizava que as mulheres deveriam participar ativamente do mundo das artes plásticas, literárias e musicais. Por causa deste texto, várias mulheres da nobreza puderam estudar. E claro que, por consequência, malgrado os freios sociais, houve uma floração importante de talentos femininos. Como elas não podiam, mesmo assim, participar de seções de estudos com modelos junto com os homens, todas elas passam a pintar seus autorretratos.

Autorretrato de Catarina van Hemessen
Sofonisba Anguissola foi uma das mais brilhantes aristocratas que soube aproveitar bem esta abertura. Junto com ela, Lavinia Fontana e Catarina van Hemessen começaram igualmente a se dedicar às Belas Artes e a se autorretratar. Mas elas não se retratavam sozinhas, mas sim como pintoras, musicistas ou leitoras, mostrando assim sua alta educação.

Mas havia ainda um grande entrave ao desenvolvimento e evolução da carreira feminina na pintura: a vida artística se dava nas Academias ou nos ateliês dirigidos por mestres, onde os aprendizes adquiriam conhecimento nas artes liberais, mas também aprendiam geometria e perspectiva, e sobretudo o estudo do corpo humano, seja com modelos vivos seja com cadáveres que se dissecavam. Mas às mulheres não era permitido participar… Uma ou outra mulher, quando era a filha de um desses mestres, participava dessas aulas, se fosse aceita pelos colegas.

Artemísia Gentileschi foi uma destas (leia post sobre ela aqui).

Ao norte da Europa também as mulheres pintavam, como as artistas Clara Peeters e Judith Leyster.

Então algumas conseguiram ter algum êxito, contornando de alguma forma os obstáculos, deixando para a posteridade retratos de mulheres que testemunharam a difícil participação ativa da mulher na sociedade, mostrando de forma clara que, apesar de tudo, eram mulheres de grande talento artístico.

Clara Peeters (1589-1657), nascida em Anvers, pintava desde seus 17 anos de idade. Se especializou em pintar a natureza e estudos de objetos, frutas e flores exóticas, compostos em naturezas-mortas. Mas também pintava retratos e fez autorretratos.

Judith Leyster (1609-1660), nascida em Harlem (atualmente faz parte da Holanda), era a filha de um cervejeiro local e não resta dúvida de que estudou com o pintor holandês Franz Hals (leia sobre ele aqui). Judith pintava paisagens, cenas do cotidiano e retratos. Ela foi uma das raras mulheres pintoras que participaram de guildas de artistas, em seu caso a Guilda de Harlem. Judith também teve diversos alunos em seu ateliê, prova de seu sucesso. Acabou casando-se com o pintor Jan Miense Molenart e se mudou para Amsterdam. Teve cinco filhos e com isso sua produção caiu bastante. Muito conhecida e prestigiada em seu tempo, ela foi progressivamente esquecida ao longo do tempo e da história da arte dominada por uma visão machista. Foi redescoberta em 1893 num quadro onde sua assinatura estava dissimulada sob uma falsa assinatura de Franz Hals. Mas ela foi uma grande pintora holandesa do século XVII...

Autorretrato de Judith Leyster (1609-1660)
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continua no próximo post
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Referência bibliográfica:
Histoire de moi - histoire des autoportraits, Yves Calméjane, Thalia Editions, Paris, 2006