terça-feira, 29 de março de 2016

O ferreiro

"A forja de Vulcano", Diego Velázquez, óleo sobre tela, 223 x 290 cm, 1630, Museu do Prado
O ferreiro aquece o ferro no fogo alto, o ferro se avermelha, ele o leva até à bigorna e martela ritmado, alternando a martelada com a martelada do companheiro. O trabalho na oficina é sempre intenso. Marcado pelo ritmo das marteladas alternadas. O som se propaga ao redor; a vizinhança já se acostumou à música que vem da oficina do ferreiro.

Mas um visitante chega na oficina de Vulcano, o ferreiro. Lhe faz uma revelação terrível!

Velázquez estava na Itália, em sua primeira visita àquele país. Tinha ido adquirir obras de arte para o rei Felipe IV e aproveitado para conhecer a arte pictórica dos italianos. Em algum momento mais tranquilo, deve ter lido as “Metamorfoses” de Ovídio e deve ter parado, quieto, com alguma ideia pairando no ar e lhe trazendo vontade de fazer algo com aquele instante em que os homens sabem da notícia chocante que o deus Apolo lhes trouxe. Era preciso captar o instante, pegá-lo com as mãos, fazer dele uma pintura.

Há quase um ano, em Madrid, eu parei diante deste quadro, pura poesia. Poesia pintada pelo maior de todos os pintores, Diego da Silva Velázquez. Ele se colocou no lugar de Vulcano? De Apolo? De cada um dos homens que fazem parte da cena? Sim, com certeza! Era preciso dar realidade e poesia àquele momento revelador.

Na atitude de cada um dos componentes do quadro, vê-se o impacto da surpreendente revelação. Conta Ovídio em suas “Metamorfoses” que Apolo, resplandecente de sol, foi até o ateliê do ferreiro dos deuses do Olimpo, Vulcano, para lhe dar a humilhante notícia de que sua mulher, Vênus, estava traindo-o com o deus Marte. No quadro de Velázquez vemos o ar estupefacto e atordoado de Vulcano, assim como de seus solidários companheiros. Na história contada por Ovídio, os colegas de trabalho de Vulcano eram ciclopes míticos, seres meio monstruosos, gigantes com um único olho na testa. Mas Velázquez os pintou como operários comuns. Ele resolveu abrir mão dos elementos sobrenaturais da história de Ovídio para dar a esta cena o realismo que desejava. A ele interessava muito mais captar um momento crítico de alta carga emocional e com isso dar a estes personagens uma variedade de atitudes e gestos.

Velázquez - segundo radiografias feitas recentemente nesse quadro - modificou as cabeças de Vulcano e de um de seus ajudantes, intensificando sua atitude de surpresa e ira de marido enganado. Este quadro é um grande exercício de expressão pictórica das paixões humanas: os efeitos do ciúme e da traição sobre um ser humano, o poder da palavra sobre nossos sentimentos e ações e, como também dizem alguns estudiosos desta pintura e de Velázquez, o poder e superioridade da mente sobre o trabalho manual, teoria que movia Velázquez a defender a nobreza da pintura acima dos outros ofícios artesanais e mecânicos.

Em “Vida y obras de don Diego Velázquez” Jacinto Octavio Picón, um estudioso do século XIX, diz que esta cena aparece disposta de uma forma em que vemos a “graciosísima ironía muy andaluza”  que tinha pouco respeito aos deuses imortais. Velázquez, como dissemos acima, ao invés de figuras mitológicas colocou quatro robustos rapazes que foram testemunhas da cena. Eles estavam trabalhando em seu ofício de ferreiros quando surge Apolo, também representado por Velázquez como um jovem bonito, coroado por um laurel e em cuja cabeça está circundada por uma claridade “intensa reveladora de su celeste orígen”. 

Apolo, o deus da Poesia, procura o deus do Inferno, Vulcano, para lhe dar uma notícia muito desagradável: enquanto o ferreiro se esmera em forjar uma armadura para Marte, este está “pegando” sua mulher, Vênus. Apolo conta isso sem nenhum rodeio e sem nem mesmo levar em conta que há mais quatro pessoas em volta que irão ouvir a história. No rosto de todos os homens, há estupefação e assombro. O trabalho é suspenso. Os ajudantes de Vulcano parecem mais curiosos do que surpresos. O olhar de Vulcano demonstra tremenda raiva. “Cada figura y cada parte de ella esta iluminada según el sitio que ocupa, ya por la claridad del día a que da entrada un ventanón abierto a la izquierda sobre cuyo vano destaca Apolo, ya por el resplandor que aureola la cabeza de éste” ou por causa das brasas vermelhas do fogo que arde. O local é uma humilde oficina, e pelo chão podemos ver peças de armadura e instrumentos de trabalho.

Para criar “A forja de Vulcano”, Velázquez usou como modelo a oficina de um ferreiro humilde dos subúrbios de Roma. Ele dava seu recado: já que os deuses imortais se comportavam como os comuns mortais, haviam que ser tratados como homens. Com exceção da cabeça de Apolo rodeada de um halo de luz, o resto da cena nada tem de divino ou de heroico. “Velázquez respirando a atmosfera da Roma papal do Renascimento, rodeado por concepções pictóricas onde prevaleceram o elemento literário, como resultado de uma cultura clássica extraordinária”, ao invés de tomar o caminho do tratamento grandioso que dariam a esta cena artistas como Dominichino, Guercino, Poussin, Albano e Guido Reni, preferiu reafirmar sua abordagem realista. Era como dizer: na simplicidade das coisas habita o sublime e o belo. Todos aqueles artistas poderiam ser mais poetas que Velázquez, mas “ninguno tan pintor”, afirma Jacinto Picón!

Era um tempo em que o humanismo do passado remoto era retomado. Os valores clássicos podia ser avaliados na obra de inúmeros artistas da época, entre eles o mais radical de todos Nicolas Poussin. Mas Poussin não era realista. Seu amor aos conceitos clássicos, fazia com que ele pintasse as cenas bucólicas dos tempos idos da velha Grécia, com seus heróis e deuses. Velázquez não. Velázquez preferia aproximar esses conceitos clássicos do homem comum de seu tempo. Se havia que abordar os temas em voga, baseados na relação entre os deuses e os homens, havia que lhes dar uma poesia nova, numa nova abordagem pictórica. 

Em seu senso de humanismo, Diego da Silva preferiu pintar pessoas comuns, os trabalhadores da Corte como ele, as pessoas mais simples, feias, os anões, os bufões, as serventes. E lhes deu um tremendo valor, o valor mais alto, ao colocar essas pessoas humildes como personagens centrais de seus quadros.

A oficina do ferreiro romano que lhe serviu de modelo está expressa nessa obra diante da qual a gente se cala, respeitosamente, diante da grandiosa humanidade desse pintor andaluz e sevilhano.

terça-feira, 15 de março de 2016

Thiago de Mello

"O galo da madrugada", Mazé Leite, óleo sobre tela, 70 x 50 cm, 2016

"Faz escuro mas eu canto", diz o poeta Thiago de Mello, que será homenageado hoje em São Paulo, em seus 90 anos de vida. Pediram-me um quadro para dar de presente a ele. Quase instantaneamente a composição do quadro inteiro me ocorreu: tinha que colocá-lo declamando um poema, numa noite de lua cheia, ao lado de seu amigo, o outro poeta, Pablo Neruda. Foi o que fiz e consegui fazer em três dias apenas. Trabalharia nele ainda mais uns dias, mas gostei do resultado. A energia do momento me moveu o tempo todo: vivemos tempos nebulosos e é bom saber que alguém canta, que alguém declama poemas, que alguém pinta, que alguém ensaia em algum canto do mundo...

Esta é minha homenagem a você, poeta do Amazonas do meu Brasil!

Abaixo, fotos do momento em que entregamos o meu quadro a Thiago de Mello, que ficou emocionado e reconheceu seu amigo Pablo Neruda: "o Paulinho está tão bonito aí".









E ganhei de Thiago de Mello seu livro "Os Estatutos do homem", que ele autografou carinhosamente

terça-feira, 8 de março de 2016

O galo da madrugada

“Devo acomodar a minha história à hora; eu mesmo
poderia mudar um outro tanto, não só de fortuna, 
mas também de intenção. (...) 
Se a minha alma pudesse ganhar pé, eu não faria experiências comigo, 
resolver-me-ia; mas ela está sempre em aprendizagem
e sendo posta à prova”.
(Montaigne, em A condição Humana)


Eu era uma menina em 1978, quando já havia me encantado a companhia de poetas, de artistas, de humanistas. Aquele mundo era belo, profundo, pura vida! Enquanto eu ia descobrindo o mundo, mundos vinham até mim. E com ele - numa noite em que nos juntamos um tanto amedrontados com a presença de espiões da ditadura militar - veio o poeta Thiago de Mello e sua poesia. Eu morava em São Luís do Maranhão, terra de poetas imensos!

Ilustro este texto com esta imagem de um folheto que eu mesma escrevi e diagramei em 1978, convidando para o encontro com o poeta. Resgatei esta e outras imagens de coisas que eu tinha feito, nos arquivos do famigerado Departamento de Ordem Política e Social, o Dops. Eles nos seguiam ameaçadores o tempo inteiro naquela época. E eu era só uma menina…

Lembro muito bem da sensação que minha alma inteira sentiu ao ouvir aquele senhor de branco, de estatura baixa, olhar e modos firmes; daquele homem que trazia em sua aura a aura de um outro grande poeta, o chileno Pablo Neruda, de quem era amigo. Um momento singular na minha vida se fez e minha alma cantou ali naquele momento e em muitos outros que vieram a seguir (porque decorei este poema):

Quero dizer teu nome, Liberdade
Quero aprender teu nome novamente 
para que sejas sempre em meu amor
e te confundas ao meu próprio nome.


Deixa eu dizer teu nome, Liberdade
irmã do povo, noiva dos rebeldes,
companheira dos homens, Liberdade.


Teu nome em minha pátria é uma palavra
que amanhece de luto nas paredes.
Deixa eu cantar teu nome, Liberdade 
que estou cantando em nome do meu povo.



Ao ouvir Thiago de Mello em 1978 vi um poeta enorme e eu me fiz enorme com ele. Me juntei ainda mais aos companheiros daqueles tempos, e a gente cresceu junto. E derrubou uma ditadura inteira!

Mas, como diz a frase de Montaigne no início deste texto, “minha alma está sempre em aprendizagem”, “sempre posta à prova”. E o ano agora é 2016 e novamente estarei diante de Thiago de Mello no dia 15 de março, 38 anos depois.
"O poeta da madrugada", em andamento, óleo sobre tela

Jeosafá e Adalberto me encomendaram uma pintura para presentear o poeta amazonense, o poeta da noite, o galo da madrugada. Imenso desafio! Era preciso internar-me em casa durante três dias para dar conta de produzir um quadro em tempo récorde. O ano de 1978 se encontrou ali entre eu e meu cavalete, no meu ateliê em casa. 

Mas de repente desabou, pesada e tenebrosa, a sombra da mais temerosa pata do monstro fascista, mais uma vez. Lula foi arrastado a depor na manhã do primeiro dia da minha pintura. Mas não era Lula: era o Brasil dos enjeitados secularmente, o Brasil dos confins do Brasil, com sua cara de miséria, com seus pobres, com seus pretos, com seu povo que vinha melhorando um pouco mais de condição. Era o Brasil da senzala sofrendo o renovado arresto da Casa Grande!

Ato contínuo, fui também arrastada para o aeroporto de Congonhas, local escolhido para as mais infames intenções do ícone maior da direita atual, o juiz Moro. Larguei meus pinceis ali e corri para me juntar aos companheiros de agora. Era imperativo nos juntarmos, pois vivemos num país de liberdade, conquistada a muito custo e que mais uma vez se vê ameaçada gravemente. Em 2016!

Não sei o que vai acontecer com o Brasil, poeta! Os tempos de novo se obnubilaram… Aquelas velhas nuvens pesadas e densas de 1978 surgem ameaçadoras sobre o céu do Brasil de 2016… Mas a pintura que lhe presentearemos no próximo dia 15, poeta, - tenha certeza! - está sendo feita de pinceladas firmes, nenhum pouco serenas, resistentes, dispostas a cantar de novo 

Faz escuro mas eu canto, 
porque a manhã vai chegar. 
Vem ver comigo, companheiro, 
a cor do mundo mudar. 
Vale a pena não dormir para esperar 
a cor do mundo mudar. 
Já é madrugada, 
vem o sol, quero alegria, 
que é para esquecer o que eu sofria. 
Quem sofre fica acordado 
defendendo o coração. 
Vamos juntos, multidão, 
trabalhar pela alegria, 
amanhã é um novo dia.

A menina de 1978 é a mulher de 2016, mas a alma é a mesma. E com Montaigne ela grita tão alto quanto pode ser possível:

“Devo acomodar minha história à hora!”