terça-feira, 1 de março de 2016

A beleza salvará o mundo

"O artista em seu ateliê", Rembrandt van Rijn
“Um dia frio… um bom lugar pra ler um livro…” Hoje São Paulo amanheceu cinza, com garoa e frio, apesar do verão. A música de Djavan amanheceu cantando dentro do meu cérebro, independente do meu controle. Os tempos atuais também são um pouco cinzentos e muitas vezes chove dentro de mim… Lá fora, o mundo em movimento: as crises, todas; as lutas diárias da vida. Mas é preciso respirar, seguir em frente! Falar de arte.

Terminei de ler há pouco tempo o livro do filósofo húngaro radicado em Paris Tzvetan Todorov, “A beleza salvará o mundo”. O título é chamativo, a frase pode ser enfática demais, mas o conteúdo do livro é bastante denso. O autor analisa a vida e obra de três escritores: Oscar Wilde, Reiner Maria Rilke e Marina Tsvetaeva, que fizeram opções radicais de viver intensamente sua arte. Desde o começo a questão é: em que consiste uma vida plena de sentido?


"Madona Sistina", Rafael,
Gemäldegalerie Alte Meister, Dresden,
Alemanha
“A beleza salvará o mundo” é uma frase dita por um personagem do romance “O idiota”, de Fiodor Dostoievsky, que li quando tinha uns 16/17 anos de idade e que marcou muito a minha adolescência. Diz-se que para Dostoievsky a questão da Beleza era um dos grandes temas ao qual ele dedicava suas reflexões. Conta-se também que todo ano o autor russo viajava para a cidade de Dresden, na Alemanha, para contemplar a “Madona Sistina” de Rafael, pintor renascentista italiano, uma Nossa Senhora humana, sem a auréola dos santos, de pés descalços com seu menino no colo. Diz-se que ele ficava longo tempo em frente a esta imagem, contemplando-a.

Talvez foi esta pintura que inspirou esta frase em Dostoievsky? Não sei, mas sabemos que homem culto que era, ele devia conhecer a tríade filosófica que inspirou pensadores desde os tempos da Grécia antiga: o Verdadeiro, o Bom e o Belo. Todo ser possui dentro de si uma espécie de atração por estes aspectos da alma, que lhe conduzem na existência. O grande Umberto Eco, falecido há poucos dias, desenvolveu estes temas em seu esplêndido livro “Arte e Beleza na Estética Medieval”.

Mas voltemos a Todorov e por enquanto fiquemos com sua ideia de Beleza.

Bem no começo de seu texto ele dá um exemplo: há momentos em que nós, diante de uma música linda nosso espírito se eleva a um estado de consciência no qual parecemos participar de um evento excepcional, que nos leva a um lugar sem nome, mas que sabemos que é absolutamente essencial, um local de plenitude. “Nesses momentos não aspiramos mais a um além - já estamos nele”, diz Todorov. Nos sentimos em arrebatamento, nos sentimos inteiros, como se não pudesse haver separação entre nós e todo o universo. Estes momentos, para quem tem a sorte de ter acesso a eles, é uma absoluta necessidade para o ser humano.

Eu mesma passei por um momento desses: quando um dia, há uns cinco anos atrás, me deparei sozinha sentada num banco numa sala do Museu do Louvre, em Paris, literalmente rodeada por pinturas de Rembrandt. Naquele momento parece que o teto da sala se abriu, aquele espaço onde eu estava se deslocou para alguma imensidão e minha alma parecia não caber dentro do meu corpo… Um silêncio absoluto se fez, eu nem respirava. Uma sensação de infinito tomou conta de mim, o tempo parecia pausado… Não sei quantos minutos aquilo durou, mas quando dei conta eu estava em lágrimas… Havia tocado, roçado talvez, o Absoluto!


"O beijo", Rodin
Todorov fala exatamente sobre isso em seu livro e disse que foi esta a sensação do músico italiano ao ouvir uma música de Monteverdi: ele “dá a possibilidade àqueles que o escutam de tocar a beleza com o dedo”. É uma sensação que nos leva a “habitar plena e exclusivamente o presente”, observa Todorov. São momentos que nos tocam e nos fazem pressentir de forma fugidia algum estado de perfeição…

Historicamente, esta necessidade de momentos de plenitude foi interpretada e orientada para dentro da experiência religiosa. Umberto Eco mostra, em seu livro citado acima, como Deus poderia conter em si todos os atributos do Bom, do Belo e do Verdadeiro, e que quando atingimos estes estados, nos fundimos com Deus. Essa fusão seria esse momento de epifania. E esse momento é belo, e foi isso que Dostoievsky pode querer ter dito: a beleza salvará o mundo. Beleza, a harmonia perfeita.

Mas… “arte é a continuação do sagrado por outros meios”, aponta Marcel Gauchet, segundo Tzvetan Todorov. A obra de arte é capaz de nos dar esta sensação de plenitude, este estado de perfeição e realização que buscamos em nossas vidas. Como acontece sempre que nos abrimos para ouvir uma música, contemplar uma obra de arte, ou até mesmo o por do sol… Ou quando temos a sorte de enxergar no olhar de uma pessoa amada este além ao qual o amor nos leva… Além de nós mesmos, a um estado de unidade que é completamente perfeição.

Todorov fala que uma imensa mudança ocorreu na história da modernidade quando se deu a passagem de um mundo estruturado pela religião a outro, organizado inteiramente em torno dos seres e valores humanos e terrestres, abrindo espaço para mais autonomia do poder terrestre. Nas guerras religiosas do século XVI, período em que também nascia o capitalismo, crescia a necessidade do poder, independente da igreja. A Ciência começa a se afastar da Religião. A Arte passa a elogiar o ser humano. O auge dessa ruptura iniciada aconteceu na Revolução Francesa de 1789, que transferia poder para as mãos do povo. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, observa Todorov, substituia a Bíblia. Na Alemanha, Friedrich Schiller escreve sua “Carta sobre a Educação Estética do Homem”, onde ele valoriza as belas artes. A Razão se sobrepõe à Fé. Outro alemão, Schiller, afirma que a arte é uma atividade livre que encontra sua finalidade nela mesma e só se submete a ela mesma, pois reune em si o sensível, o inteligível, o material, o espiritual. Ela representa o infinito. Schiller diz mais, diz que a arte e a política se estreitam, e com isso ele dá as bases para o movimento romântico alemão.


Rodin em sua oficina
Há duas formas de “atingir e compreender todas as coisas do céu em sua plena potência”, segundo Wackenroder (em 1797): a contemplação da natureza e a prática artística (em “Fantasias sobre a arte por um religioso amigo da arte”). A prática artística faz o homem semelhante a Deus. Schopenhauer, por seu lado, afirma em “O mundo como vontade e representação” (1844): “Quanto mais viva é a luz com a qual o intelecto é iluminado, mais esse intelecto percebe a miséria de sua condição”. E fala do gênio, aquele que busca o conhecimento e a representação por eles mesmos, sem outro interesse; ele é contrário à natureza das normas sociais: o gênio se sacrifica pessoalmente por um “fim objetivo” e por isso é essencialmente solitário: “não sabe ser feliz à maneira dos outros”.

“Trabalhar - sempre!”, dizia o escultor Rodin a seu secretário o poeta Rainer Maria Rilke, querendo dizer que esta é a máxima daquele artista que verdadeiramente queira se abrir “para o absoluto”. “Sinto que trabalhar é viver sem morrer”, dizia Rodin.

Não se pode separar a vida em dois rios, o da existência e o da criação - continua mostrando Todorov, no capítulo sobre Rilke, o poeta nascido em Praga. Na linha dos filósofos românticos alemães, ele mostra como o artista que se assume em seu verdadeiro sacerdócio, em sua dedicação quase exclusiva a seu ofício de criador, ele se torna essencialmente um solitário: “a grande vítima, aqui, são as relações humanas: seu lugar deve ser limitado, o criador é condenado à solidão”. Por isso Rodin não teve amigos; foi o preço a ser pago para o êxito dele como criador. “Para aceder ao absoluto, deve-se renunciar ao relativo”.

Beethoven também dizia: “Não tenho amigos, devo viver sozinho comigo mesmo, mas sei que em minha arte Deus está mais perto de mim do que dos outros”. Camille Pissarro também inspirou isso em Cézanne que “durante os 30 anos que lhe restavam de vida não fez mais do que trabalhar”. Para Cézanne a “única coisa essencial, mas uma coisa que toque verdadeiramente na essência, no absoluto, (...) é realizar com sucesso o quadro que está pintando no momento”.


Partitura musical - Johann Sebastian Bach
O artista faz sua recusa ao mundo. Rainer Maria Rilke, que conviveu com Rodin durante uns quatro anos, escreveu à sua amiga pintora Paula Modersohn Becker, uma carta que ele intitulou “Requiém”: ele não se conformava que ela havia escolhido a maternidade ao invés da criação artística. “Pois existe em algum lugar uma velha intimidade entre a vida e a obra”, disse Rilke. O trabalho com a obra eleva ao divino: “Então construa sua vida em função dessa necessidade; sua vida deve ser, até em seus instantes mais insignificantes e mais mínimos, a marca e o testemunho dessa urgência.”

Para ele - ainda seguindo Todorov - a dedicação à criação artística era uma espécie de vocação tão exigente quanto o propalado “chamado de Deus” ao sacerdócio. “O ato de escrever tem a virtude de provocar a ascensão do Anjo, e de torná-lo ciumento”, não permitindo que o artista se dedique a nada mais do que à sua arte.

Rilke falava de modo apaixonado sobre a transfiguração do mundo por intermédio da arte. Para ele a arte fazia parte do campo do sagrado. Era preciso “copiar até o fim o ditado da existência”, dizia. “Num único pensamento criador revivem-se milhares de noites de amor esquecidas, que lhe conferem elevação e nobreza”. O objetivo da arte é “encontrar a causa mais profunda e a mais interior, o ser oculto que suscita essa aparência” e por isso é preciso evitar a dispersão. A concentração é “ponto de partida obrigatório de toda a criação artística” e quanto mais o artista se condensa, mais sua obra é universal.

“O artista é aquele a quem cabe, a partir de numerosas coisas, fazer delas uma só e, a partir da menor parte de uma só coisa fazer o mundo”, ainda Rilke. “Essa capacidade, privilégio do verdadeiro artista - a do gênio, portanto - é o que há de mais precioso no mundo, o que dá sentido e valor a uma existência, o que contrabalança suas misérias. Eis porque a vida do artista, mesmo sendo dolorosa, merece ser escolhida entre outras: ela põe não apenas o criador, mas também todo o universo em contato com o absoluto; ora, essa relação é indispensável ao homem”.

“A arte não é um reflexo do mundo, nem uma escolha de seus mais belos segmentos; ela é a transformação integral do mundo em esplendor. Desde que o artista não autorize para si nenhuma exceção a essa regra, ele suplantará as mais amargas experiências e descobrirá a beleza dos mais feios objetos; ele evoluirá na esfera dos anjos”, observa Todorov diante de artistas como Rilke.

Mas isso não quer dizer fugir da realidade. Pelo contrário, o que se chama é a uma fusão com o mundo, pois “a condição de criação artística é o amor pela vida em sua integralidade, tanto do belo quanto do feio, do vil como do bom”. Tolstoi já dizia, aponta Todorov: é preciso aceitar o mundo para poder pintá-lo; é preciso rejeitar o mundo para torná-lo habitável.

“Não se trata de modo algum de viver e escrever, mas de viver-escrever: e escrever é viver”, completa a poeta russa Marina Tsvetaeva que também diz:

“O poeta deve certamente se abrir aos elementos, se fazer porta-voz das forças telúricas, mas deve também saber transformá-las em obra inteligível a todos”. E afirmava ainda: “Não vivo para escrever versos, escrevo versos para viver”.


Músico da Orquestra Sinfônica de Praga
Ao terminar o livro de Tzvetan Todorov uma profunda tristeza invadiu minha alma. Mas isso não vem ao caso agora, pois fala do preço que paguei pelas escolhas que fiz na vida. Isso quer dizer: é preciso pintar para viver! Sem isso a vida não faz sentido algum...

Uma postura que cobra um alto preço e todo artista sabe disso. Especialmente nos dias atuais onde a luta pela sobrevivência e o pragmatismo em que vivemos nos afastam cada vez mais daquelas condições. Desafiar os deuses sempre traz o perigo de morte, como aconteceu com Prometeu e Marsias. Prometeu roubou o fogo dos deuses para aquecer os homens e se viu exilado, com as entranhas à mostra, com seu fígado sendo comido pelas aves de rapina. Marsias desafiou Apolo: tocou sua flauta em disputa com a lira do deus e por isso teve sua pele arrancada e estendida para secar num pinheiro.

- “Marsias, tocador de flauta, cantor harmonioso, nosso irmão! Você já não toca e não ressoa seu canto à noite, para o nosso encanto, que agora é só chorar!”

Das lágrimas do povo que chora a morte do artista surge, ao lado do pinheiro onde sua pele está, um rio que corre e solta murmúrios lamentosos e musicais. A flauta solo exala um lamento. É fim de tarde e o som da flauta sobe até o céu dentro das cores matizadas do pôr do sol. A voz do povo se levanta: "Marsias... Marsias..."

É o lamento do mundo quando um artista abandona seu trabalho criador...

"Marsyas", de Giulio Carpioni

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Ateliê Contraponto inaugura seu novo espaço


Na última sexta-feira, 19 de fevereiro, o Ateliê Contraponto inaugurou seu novo espaço na Avenida Angélica 2.341, em Higienópolis, São Paulo.
Foi um evento bastante concorrido. Cerca de 70 pessoas passaram por lá para prestigiar e conhecer as novas instalações do ateliê de Alexandre Greghi, Luiz Vilarinho e Mazé Leite. Contatos importantes foram feitos para próximas exposições na Galeria Contraponto, que estaremos divulgando também aqui neste blog.
Estudo de Velázquez, Mazé Leite
Na inauguração do novo espaço, que inclui a presença de amigos e artistas, o Ateliê Contraponto apresentou uma exposição de desenhos e pinturas de seus alunos e professores, produzidas nos últimos dois anos. Estão participando da exposição, que fica aberta até o próximo dia 5 de março: Maria Fucatu, Mikie Fucatu, Taïs Isensee, Francisco Cabral, Sandra Longeaud, Tiago Savio, Ana Rocha, Daniela Padilha, entre outros.
O Ateliê Contraponto, que já completou dois anos de existência, vem se destacando cada vez mais como espaço cultural das artes plásticas em São Paulo, tendo realizado já seis exposições coletivas com a participação de mais de 60 artistas, de São Paulo e de outros Estados brasileiros.
Mas o espaço também serve para a produção pessoal de seus professores - Alexandre Greghi, Luiz Vilarinho e Mazé Leite - e também para cursos de Desenho, Pintura a óleo, giz Pastel e Aquarela. Para esta nova fase, o Ateliê Contraponto planeja intensificar ainda mais suas atividades: além das aulas e das exposições, promover workshops com artistas convidados (teóricos e práticos), ter com regularidade sessões com modelo vivo, intensificar os estudos sobre a arte figurativa e estreitar ainda mais os laços com outros artistas e outros ateliês figurativos de São Paulo. A ideia do Ateliê Contraponto é ser um espaço aglomerador para quem gosta e faz arte em São Paulo. 
Durante o evento, a banda Underpath tocou clássicos do rock, com seus quatro excelentes músicos!

A exposição atual estará aberta à visitação pública de terça a sexta, das 14h às 20h até o dia 5 de março de 2016.

ATELIÊ CONTRAPONTO
Avenida Angélica, 2.341
Higienópolis - São Paulo/SP
t. (11) 9 9988-4858

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A exposição:

 


Alguns momentos do evento:
Com Ieda del Bianco, em frente aos trabalhos feitos pelos alunos do ateliê
Músicos da banda Underpath, que tocou rock clássico durante o evento
Alexandre Greghi com M. Fucatu, Tais Isensee e Vanessa Machado
Diógenes Pompe, Liliane, Ednilson e outros amigos do ateliê
Luiz Vilarinho e algumas das visitantes da exposição

Dona Maria Fucatu, que começou a desenhar aos 88 anos de idade e também participa da exposição

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Lydio Bandeira de Mello, o pintor



“Quem não tem o hábito de desenhar, não pensa a forma”.
Bandeira de Mello

Há poucos meses atrás um amigo me falou de Lydio Bandeira de Mello, um pintor carioca que insiste em não abandonar o caminho da arte figurativa. Fui procurar saber mais sobre ele, encontrei algumas coisas, poucas, além do seu próprio site. Meses se passaram, voltei a me lembrar de que devia um artigo sobre este mestre. Sim, mestre! Bandeira de Mello já tem mais de sete décadas na estrada da pintura figurativa, pintando em várias técnicas, ensinando muita gente em seu ateliê no bairro das Laranjeiras, Rio de Janeiro.

No próximo dia 20 de junho ele completará 87 anos. Nasceu em Leopoldina, interior de Minas Gerais. Mas quem conhece Lydio Bandeira de Mello? Quem já ouviu falar deste grande pintor na TV, no rádio, nos jornais, na mídia, enfim? Quase não se fala dele, se lembra dele, se comemora a carreira deste artista na mídia brasileira, que só tem olhos e ouvidos para “artistas” do mainstream monopolista da chamada “arte contemporânea” conceitual. Como se ele não fosse contemporâneo a nós… Mas, sabemos, não há democracia no mundo das artes plásticas hoje…

Desabafo feito, vamos ao que interessa, sua vida e sua obra.

"Enterro no sertão"
Lydio Introcaso Bandeira de Mello começou seu caminho nas artes plásticas com apenas 6 anos de idade, quando uma vizinha lhe emprestou algumas tintas. Logo, logo seu pai lhe deu de presente seu primeiro material de pintura. E passou a ter orientações do professor Funchal Garcia, amigo de seu pai, que Bandeira de Mello define como “alguém que possuía a inventiva e técnica do pintor, mas também a fantasia heroica de Dom Quixote, sempre disposto a levantar sua lança na defesa dos fracos e oprimidos”.

Aos 17 anos de idade, o jovem Lydio resolveu ir para o Rio de Janeiro estudar na Escola Nacional de Belas Artes. Para isso, recebeu imediatamente o apoio dos pais, pessoas cultas e que sabiam o verdadeiro valor de incentivar seu filho no mundo das artes. “Quando eu disse a meu pai que queria ser pintor e estudar na Escola de Belas Artes, minha mãe fez uma festa!”, conta ele. Seu pai, Lydio Machado Bandeira de Mello, era um intelectual: advogado, escritor, filósofo e matemático. Ambos, pai e mãe, deram uma boa formação humanística ao filho. Quando seu pai morreu deixou 69 livros publicados.

Bandeira de Mello chegou na Escola Nacional de Belas Artes em 1947.

A Escola Nacional de Belas Artes foi fundada em 12 de agosto de 1816, através de um decreto assinado por Dom João VI. Neste ano, ela completa 200 anos de existência, e se chama atualmente Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a UFRJ. Inicialmente se intitulou de Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios, tendo sido criada para receber a Missão Artística Francesa, que veio para trazer ao Brasil o ensino oficial de arte, baseada na escola acadêmica da França. Após a independência do Brasil, em 1822, passou a ser chamada de Academia Imperial de Belas Artes. Com o advento da República, mudou para Escola Nacional de Belas Artes.

Quando Lydio chegou lá, a academia era um caldeirão de discussões e disputas entre a tradição e as novas estéticas trazidas pela modernidade. Mas Lydio não se interessou muito pelas discussões trazidas pelos defensores das novas estéticas; estes aboliam a técnica, o domínio sobre o desenho, o respeito aos mestres do passado. Bandeira de Mello só pensava em uma coisa: desenhar e pintar! “Pela arte o homem rompe o estado de clausura da consciência e se religa ao universo”, diz ele. Seguiu o caminho árduo mas apaixonante de buscar o domínio sobre a forma, caminho que ele persegue até hoje aos 87 anos de idade.

Lydio Bandeira de Mello também diz que não pode haver qualquer concessão para aquele que deseja seguir este caminho. Para ele, é fundamental aprender as técnicas da pintura e do desenho, dominar seus instrumentos, “submeter a mão ao domínio da mente, até que ela se torne a própria extensão de seu pensamento criador.” Somente sobre o aprendizado técnico é que o artista poderá construir sua própria linguagem com segurança, ensina ele.

Em seu período na Escola Nacional de Belas Artes, Bandeira de Mello conheceu diversos artistas brasileiros importantes na época, como Quirino Campofiorito, a quem admirava de modo especial. Além dele, teve como mestre o professor de desenho Calmon Barreto que, com suas aulas com modelo-vivo ensinava aos alunos como criar uma sintonia entre a visão e as linhas que moldam o corpo humano. Lydio diz que era obrigatória, naquela época, uma carga horária de 900 horas de estudo de modelo-vivo… “Hoje em dia, lamenta ele, as pessoas que querem aprender a desenhar, são obrigadas a buscar este conhecimento fora das escolas de arte”.

Outro professor que lhe influenciou muito foi Edson Motta, que além de enfatizar a importância do aprendizado das técnicas de pintura, incentivava os alunos a se interessar pelos aspectos técnicos do material de pintura, como sua química, seus diversos comportamentos físico-químicos envolvidos em uma pintura, seja à óleo, seja em têmpera, afresco, etc. “A verdadeira cozinha da pintura”, observa Bandeira.

Sua trajetória inteira tem sido construída dentro do seu fascínio pela pintura figurativa. Ainda hoje, em seu ateliê das Laranjeiras, Bandeira de Mello produz, indiferente àqueles que defendem o modelo preferido pela mídia atual. Sua pintura é sólida, intensa, beirando o Expressionismo, e demonstra que por trás há, sim, muito conhecimento técnico.

Sendo senhor do seu ofício, mesmo assim ele não se deixa ficar em zonas de conforto, pois cair nesta armadilha é mortal para quem quer manter-se na busca do domínio sobre a forma. Este caminho é por vezes árduo, exige disciplina, dedicação, paixão.

O poeta gaúcho Walmir Ayala narra em seu texto que faz parte do livro “Bandeira de Mello - a arte do desenho”, um episódio que ocorreu com o estudante Lydio Bandeira de Mello: “Marca indelével a do contato com Carlos Chambelland, um mestre do claro-escuro, exigente e rigoroso. Conta Bandeira de Mello que certa feita tinha acabado de fazer um nu, em tamanho natural, no qual trabalhou durante duas semanas, especialmente nos valores do claro-escuro. ‘Terminado o trabalho, pelo menos para mim, o velho Chambelland aproximou-se, analisou e perguntou: - Tens um pano aí? Entreguei a ele um pedaço de pano e ele acrescentou: - Não sou eu que vou usar, é você. Bata o pano em cima desse desenho e apague tudo! Não discuti, apesar de um instante de íntima revolta. Feito isto, ele disse que o trabalho não estava ruim, mas que havia me provocado era para que eu compreendesse que era sempre possível fazer melhor, e ter coragem de recomeçar’”. Bandeira sempre diz que seu mestre Chambelland parecia ter um fotômetro no olho, reconhecia os valores cromáticos como ninguém.

Ter coragem de recomeçar. Quem lida com qualquer tipo de treinamento em arte, sabe que essa é a chave para a evolução técnica. Não há atalho algum. Todo dia é um novo recomeço. E o caminho só termina quando a morte dá um fim a tudo… Por isso tem que haver paixão!

“Tecnicamente, Bandeira de Mello conhece seu ofício como raros”, disse o crítico de arte José Roberto Teixeira Leite. “Mas sabe também que a técnica não é um fim em si mesma e que o artista deve assimilá-la a tal ponto que é como se a tivesse esquecido, já.”

Em 1961, Lydio ganhou o Prêmio de Viagem ao Estrangeiro, recebido no Salão Nacional de Belas Artes. Ao invés de ir para Paris, como fizeram quase todos os outros que receberam o mesmo prêmio, ele optou por ir à Itália, em busca dos mestres renascentistas. Acabou sendo convidado a restaurar o Santuário de Poggio Bustone, num lugarejo a cerca de 100 km de Roma. Este trabalho durou 8 meses, quando então “pintava pela manhã, caminhava à tarde e bebia vinho de noite”. São dois murais pintados na técnica do afresco que representam a confissão de São Francisco de Assis e outro com a aparição de um anjo ao santo.

Quando voltou ao Rio de Janeiro, Bandeira de Mello tornou-se professor de Desenho com Modelo-vivo na Escola de Belas Artes.

Angela Ancora da Luz, professora da atual Escola de Belas Artes da UFRJ, diz em seu artigo publicado no site do pintor: “Impossível não reconhecer um trabalho de Bandeira de Mello. O primeiro destaque é a força da forma. Entre as mais variadas temáticas que encontramos, a figura humana surge vitoriosa. Ela não possui apenas ossos e músculos, pele e fisionomia. Bandeira pinta a alma.”

Em seu ateliê, ainda hoje ele dá aulas aos muitos alunos que o procuram para estudar. A fila de espera sempre está cheia. Aos seus alunos, ele vai ensinando que o desenhista só consegue pensar se desenhar. Ele domina a técnica da Têmpera (pintura feita com pigmentos misturados ao ovo), da Pintura a Óleo, do Afresco. Além disso, suas mãos conhecem bem o toque dos lápis, dos carvões, dos pasteis. Ele mesmo fabrica suas tintas, ou quando as compra prontas é muito cuidadoso na escolha das marcas. Explica sempre aos discípulos o uso e propriedade dos materiais, dando exemplos de sua própria prática, contando causos de sua vida de pintor. Ele usa muito a técnica da têmpera com caseína. A caseína é feita com a proteína do leite, técnica milenar, que ele usa para pintar muitos de seus quadros.

Em 1970 ele ganhou o concurso público para pintar dois murais com 33 metros de comprimento por 4 metros de altura cada um. O trabalho é feito em têmpera sobre madeira e ele usou uma palheta de cores bastante restrita. O tema escolhido por Bandeira de Mello foi o trabalho humano, a relação do homem com a terra, “na pesca, na construção do homem heroico que conquista a vida pelo amor, no lazer do futebol, na simplicidade de tipos que revelam a marca nacionalista e regionalista do homem brasileiro”, diz Angela da Luz. Isso me lembra seu outro grande colega, Candido Portinari, que seguiu esta temática também em seus painéis, em especial o conjunto “Guerra e Paz”, que pertence às Nações Unidas e está no prédio de New York.

Atualmente, os dois painéis de Bandeira de Mello se encontram no prédio da Caixa Cultural, centro do Rio, inaugurado em junho de 2006. Em sua vasta obra, espalhada por vários lugares do Brasil, Bandeira de Mello já participou de dezenas de exposições coletivas e individuais. Seu trabalho também está presente no acervo do Museu Nacional de Belas Artes do Rio.

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Uma miúda amostra da extensa produção deste artista brasileiro: