segunda-feira, 7 de outubro de 2013

A alma do mundo

Gustave Courbet: A onda, óleo sobre tela, 1870
Acabei de ler o texto “Sobre a relação das artes plásticas com a natureza”, do filósofo alemão Friedrich Wilhelm von Schelling (1775-1854). Esse texto foi escrito para seu discurso de entrada na Academia Bávara de Ciências, em Munique, Alemanha, e foi proferido no dia 12 de outubro de 1807. A repercussão do texto foi grande, e até Goethe o felicitou. Schelling foi contemporâneo de Hegel, um dos filósofos que mais escreveu sobre Estética e sobre Arte.


Schelling
Pela atualidade do tema e por descobrir grande convergência entre a visão de Schelling sobre a pintura e minhas próprias convicções pessoais sobre arte Realista, faço abaixo uma tentativa de expor um resumo dessas ideias.


A arte realista busca beber na fonte inesgotável da realidade do mundo, realidade em permanente mudança, buscando ir além das aparências até alcançar o movimento interno que gera a vida. A pintura realista considera que expressar a forma de um objeto ou figura significa também expressar seu movimento interno, sua alma pulsante na alma do artista, num jogo dialético que abrange espaço, tempo, forma, cor, luz, valor, mas também conceito e visão de mundo.


Vale lembrar que a pintura realista sempre esteve presente nas artes plásticas desde tempos imemoriais. No período da Idade Média, incluindo o Renascimento, os artistas eram obrigados - por força das circunstâncias da época (econômicas, políticas, culturais e filosóficas) - a pintar o mundo idealizado do reino celestial com suas figuras de anjos e santos, além de ilustrar as histórias bíblicas e seus diversos personagens. Ticiano e Caravaggio inovaram a pintura de seu tempo, incluindo como modelos pessoas reais (Caravaggio) e uma forma de ver o mundo através do movimento das cores que rompiam as linhas do desenho (Ticiano). Depois deles, gerações de artistas se voltaram para o mundo concreto, para o Real e seu sentido de inesgotabilidade, de permanente mudança e movimento contínuo. Esse Real do qual não se vê mais do que a aparência, que é fugidio, se desnuda para a observação profunda e a contemplação silenciosa dos artistas.


Neste ponto, nos encontramos com Schelling, e com ele prosseguimos.


Logo no começo do seu discurso, ele traça uma diferença entre formas de descrever o mundo. Uma delas é por meio do discurso, da eloquência, da exposição oral. “Mas a arte - diz ele - possui essa vantagem de ser dada visualmente”, apresentando de uma maneira diferente - para os olhos - aquilo que é difícil de ser apreendido por palavras. E neste sentido a arte plástica se torna Poesia, “poesia muda”, como ele acrescenta. Silenciosa, a arte plástica cria um vínculo, uma ponte entre a alma humana e a Natureza, o Real.


O verdadeiro modelo e “fonte primordial” da arte plástica é a Natureza. Mas Schelling aponta os questionamentos que dizem que isso já é feito pela ciência e que há “tantas representações” da natureza quanto “os diferentes modos de vida”. Sim, mas mesmo aí há também diferentes tratamentos para o mesmo tema e isso é o que cria a enorme diferença de visão de mundo a partir das artes plásticas, o que se torna ainda mais claro nos dias atuais.


Schelling já falava daqueles (incluindo pintores) para quem o mundo não passa de um amontoado de eventos e objetos e coisas sem vida, como “uma imagem muda”, “completamente morta”:

“Um esqueleto oco de formas a partir do qual uma imagem igualmente oca
deveria ser transportada para a tela.”


Observa Schelling que esse era o modo rude de ser dos povos antigos e que somente com os gregos é que o mundo pulsante passou a ser visto como tal. E com isso, admitiu-se que “o perfeito está misturado ao imperfeito, bem como o belo àquilo que é destituído de beleza.” Em outras palavras: o mundo como ele é, ou como aparenta ser. Pois também aqui há que se ter mais acuidade: uma coisa é ver as formas do mundo separadas do todo, ou mesmo vazias, abstratas. Outra é enxergar através da forma a sua essência, acessível ao nosso espírito (mente). E Schelling adverte: àquele que enxerga do mundo somente a sua casca “jamais será facultado atingir o processo profundo”.


Mas sem idealização, pois as “formas ideais” estão tão mortas quanto aquelas que parecem sem vida a um observador sem alma. Portanto, é preciso - para apreender o Real - “acrescentar o olho do espírito, para penetrar sua casca e sentir a força que nelas se efetua”. Entenda-se esse “olho do espírito” como o olho da mente. O entendimento, portanto, não é fruto de uma observação passiva de um dado evento ou objeto, mas surge da interação entre a mente que observa (a inteligência) e a coisa observada efetivamente. Este é um tema muito antigo e para o qual Karl Marx também atentou: o mundo objetivo tem precedência sobre as ideias. Mais Schelling:


“... os artistas decerto mantiveram, desde tal época, um certo ímpeto idealista, bem como representações de uma beleza que se eleva acima da matéria, mas tais representações assemelhavam-se às belas palavras que não correspondem aos atos.


Há duas questões a se levar em conta: a beleza presente no conceito emanado da alma e a beleza da forma. O que une esses dois elementos numa pintura? Ele responde: “Se a arte não fosse capaz de estabelecer tal vínculo, tal como o faz a natureza, então, em geral, ela não estaria apta a criar nada.” E ele aponta que o artista que somente foi capaz de tomar como ponto de partida a forma em si, mesmo que tenha alcançado o mais alto refinamento de seu trabalho como pintor, ainda assim sua obra será a expressão do vazio. Pois não é possível CRIAR através “da mera forma”.


“Antes de mais nada, a natureza vem ao nosso encontro de modo hermético e sob uma forma mais ou menos rígida. Assemelha-se à beleza sóbria e serena, que não chama a atenção por meio de sinais gritantes e nem atrai o olhar vulgar. Como podemos fundir, digamos, do ponto de vista espiritual, aquela forma aparentemente rígida a fim de que a força mais clamorosa das coisas flua juntamente com a força de nosso espírito, transformando-as num só molde? Temos que ultrapassar a forma, para, aí então, readquiri-la como algo inteligível, vívido e verdadeiramente sentido. (grifo meu)


Leonardo da Vinci: Dama com arminho,
1485-90
Mais à frente em seu discurso, Schelling felicita aquele pintor que consegue, em seu espírito criador, nos mostrar uma obra em que a atividade consciente do seu espírito se une à força inconsciente presente na Natureza. Complementa: “a arte transfere à sua obra, com a mais elevada claridade do entendimento, aquela realidade inescrutável mediante a qual ela termina por se assemelhar a uma obra da natureza.”


Mas nada disto significa copiar. O filósofo alemão criticava aqueles que apenas copiavam o que viam, com “fidelidade subalterna”: “talvez lhe fosse dado produzir larvas, mas de modo algum obras de arte”, diz ele. Pois o critério para definir uma obra de arte é que ela possua em si aquela dupla união entre a forma e o conceito. Que, diga-se de passagem, vai muito além da simples discussão entre “forma e conteúdo”, temas que despertaram calorosos debates nos últimos cem anos. Em muitas pinturas dos mestres não só chama a atenção a sua qualidade técnica, mas também seu “pensamento”. É o que Schelling afirma, junto com outros estudiosos: “Esse espírito da Natureza, que atua no interior das coisas e fala por meio da forma e da figura como que através de imagens-sentido, decerto deve ser emulado pelo artista, haja vista que só quando este o captura com uma vívida imitação lhe é dado criar algo verdadeiro.”


Pois obras que emergem de uma composição de formas, ainda que belas,
seriam destituídas de toda beleza, já que a única coisa que concede beleza à
obra ou ao seu todo já não pode ser a forma. Trata-se de algo que está além 
da forma; é a essência, o universal, vislumbre e expressão do imanente
espírito da natureza.”


As imitações, inclusive levadas ao nível da ilusão, continua Schelling, sempre aparecerão falsas. “Ao passo que uma obra na qual vigora o conceito, termine por lhe arrebatar com a plena força da verdade, transpondo-o de saída ao mundo legitimamente efetivo”.


Michelangelo: Tondo Doni
Avaliando a evolução histórica da arte, desde sua tenra juventude dos tempos mais remotos até os dias atuais, Schelling destaca que a arte suprime algo que não é, segundo ele, essencial: o Tempo. Não “tempo” no sentido histórico humano, mas no sentido mais amplo do tempo como movimento que não se repete. O tempo daquele instante único capturado pelo pincel do artista e que o torna eterno: o instante em que a leiteira derrama o leite dentro de um recipiente e que foi eternizado por Jan Vermeer; aquele momento em que o velho Tiziano, com o rosto já marcado com os sofrimentos da vida, decidiu pintar seu autorretrato; ou o instante do olhar do filho Titus que foi marcado para sempre numa tela por seu pai Rembrandt; ou o momento de angústia de Gustave Courbet detido por sua participação ativa na Comuna de Paris…


Outra das grandes ideias defendidas por Schelling e que deve sempre nos nortear é a da percepção da totalidade das coisas, tendo consciência de que nada no mundo se encontra em separado. Tudo existe em relação. Eu me relaciono com o mundo em que vivo, sofrendo todo o tempo as influências do tempo presente, com sua cultura pulverizada, que tem pregado, nestes tempos pós-modernos, o reino da individualidade e do particular. A “maioria considera o particular em chave negativa”, diz o filósofo, ou seja, o particular como algo que não é parte do todo. Mas o particular só existe em face da totalidade: “morta e insuportavelmente rígida seria a arte que tencionasse expor a casca vazia ou a limitação daquilo que é individual.”


Jan Vermeer: A leiteira, 1658-1661
Nada pode ser separado de nada, nem o sólido do frágil, nem o determinante do determinado. Uma coisa pressupõe a outra e só pode existir em conjunto. Por isso, mesmo aquilo que não é belo, torna-se belo “mediante a harmonia do todo”. Por outro lado, Schelling faz uma admoestação ao artista: na distribuição do espaço, da luz, da sombra e do reflexo, há que se levar em conta as gradações da beleza, para que o quadro não se revele uma “antinatural monotonia”. Há que se particularizar um ponto da obra em que a beleza plena se destaca. Não é possível dar a todo o conjunto a mesma medida de beleza, mas, como Rafael, saber romper sua regularidade para que a expressão mais bela possa brilhar no centro do quadro. Schelling disse também que o “caráter” de uma pintura é aquilo que se extrai do ritmo interno, da “unidade de múltiplas forças” que agem em conjunto para “lograr uma certa harmonia e uma determinada medida”. Somente é possível criar uma unidade viva “se as forças, levadas à sublevação por meio de alguma causa, saírem do equilíbrio.” É a necessária assimetria que cria vida.


Ou seja: o edifício teórico que sustenta uma boa pintura é pleno de conceitos, de movimentos dialéticos entre o olhar do artista e sua observação do mundo.


Ticiano: Autorretrato, óleo sobre tela, 1550
Isto é fácil? Não, dificílimo! Por isso, essa postura tem sido não somente esquecida, mas deixada de lado pela arte dita contemporânea. Pois é melhor atender ao pragmatismo exigido pelo sistema de artes atual (que inclui o Mercado capitalista), mesmo que para isso seja feita uma mutilação no conjunto da teoria, que vem sendo enriquecida ao longo de toda a história humana. Esquece-se o rico legado teórico que herdamos e que poderia nos levar ao lado e além dos mestres do passado, em troca do utilitarismo pragmático que nada cria, a não ser fumaça. Ou que corta um pedaço do pé, para que caiba no sapato da teoria acadêmica atual...


Mas, diz Schelling, a pintura enobrece, modela as almas ou pelo menos indica o poder da alma que nela existe. Ao criar sua obra, o artista leva ao público observador uma possibilidade de mergulho na unidade do mundo, que eleva e dignifica. Mas que também lhe mostra seu potencial e capacidade de criador de seu próprio mundo. Também podemos lembrar do que pensava seu contemporâneo, o filósofo Hegel, que considerava a obra de arte como o meio privilegiado “através do qual o espírito humano se realiza”.


Ao final do seu discurso, Schelling faz menção a alguns dos grandes mestres do passado:


Rafael: Retrato de Agnolo Doni, 1505-06
- Michelangelo, “aquele espírito gigante”, atraído “pelos fundamentos mais recônditos da forma orgânica e, em especial, da figura humana, ele não evita o assustador, senão que o procura intencionalmente, despertando-o de seu repouso nas obscuras oficinas da natureza”;


- Leonardo da Vinci e Correggio apaziguam a violência inicial e “o espírito da natureza transfigura-se em alma” (entenda-se “espírito da natureza como a vida das coisas”). “A expressão geral dessa alma sensível é o claro-escuro (...) pois aquilo que o pintor põe no lugar da matéria é o escuro; sendo esse o estofo no qual ele deve afixar a fugidia aparência da luz e da alma”;


- Rafael “toma posse do sereno Olimpo e, consigo, conduz-nos da Terra à assembleia dos deuses”. “O florescer da vida perfeitamente formada, o perfume da fantasia e o tempero do espírito exalam, juntos, de suas obras. Ele já não é pintor, mas sim filósofo, sendo, a um só tempo, poeta.”;


Abaixo, destaco algumas questões colocadas por Schelling naquele 12 de outubro de 1807 e que até hoje rondam as cabeças de muitos artistas:


- “Como ainda seria possível contemplarmos essas obras dos antigos mestres, de Giotto ao professor de Rafael, movidos por uma espécie de devoção, inclusive por uma certa predileção, se a fidelidade de seus esforços e a grande seriedade de sua serena e espontânea limitação não nos impusesse respeito e admiração?”;


- “(...) temos de recriar a arte seguindo o mesmo trilho que eles seguiram, mas com nossa própria força, para nos igualarmos a eles.”;


- “Tudo o que cresceu a partir de inícios árduos e pequenos, mas terminou por adquirir vasto poder e altura, tornou-se grande por intermédio do entusiasmo. Isso vale tanto para impérios e Estados quanto para as artes e ciências. Não é porém a força do indivíduo que leva isso a efeito; tal tarefa cabe apenas ao espírito, o qual se espraia pelo todo.”;


- Ao artista, ninguém “pode ajudá-lo, já que ele mesmo deve ajudar-se; tampouco pode ser gratificado com algo que esteja fora de si, pois tudo aquilo que viesse a produzir sem vontade própria tornar-se-ia, de imediato, nulo; justamente por isso ninguém pode comandá-lo ou prescrever-lhe o caminho que deve peregrinar. Se é lamentável que tenha de lutar contra sua época, é tanto mais desprezível se com ela for indulgente.”


- “Apenas uma mudança operada nas próprias ideias é, pois, capaz de erguer a arte de seu esgotamento; somente um novo saber e uma nova crença estariam aptos a incitá-la ao trabalho por meio do qual ela revela, numa vida rejuvenescida, uma opulência semelhante àquela do passado. Com efeito, uma arte exatamente igual, em todas as suas determinações, à arte dos séculos precedentes jamais retornará; pois a natureza nunca se repete. Não haverá um Rafael como aquele de outrora, mas um outro a quem, de maneira particularmente similar, será facultado atingir o vértice da arte. Desde que se atenda àquelas condições básicas, a arte revitalizada mostrará o objetivo de sua determinação, tal como mostrara, em suas primeiras obras, a arte que a antecedeu”.
Rembrandt: Titus, óleo sobre tela, 1655

sábado, 7 de setembro de 2013

Edward Hopper

"Nighthawks" (Aves noturnas), Edward Hopper, 1941, óleo sobre tela, 152 x 84 cm

“Nighthawks, aves noturnas, falcões notívagos, gaviões da noite, essa gente que, como nós, se distrai e é engolida pelo vazio em uma noite deslocada do tempo, em que tudo pode acontecer, inclusive nada.
(...)
- Vai ver foi. Numa noite dessas, não descreio de nada, nem de alçapões, nem de vazios emolientes, nem de mortos que pintam vazios às altas horas da madrugada.”

O trecho acima foi extraído do livro do meu amigo escritor Jeosafá Gonçalves “Era uma vez no meu bairro - Zona Sul”. No capítulo 9 do romance há um diálogo que parece sair da tela do pintor realista norte-americano Edward Hopper “Nighthawks” (tela acima). Pintada em 1942, logo após o ataque japonês a Pearl Harbor, no final de 1941. Era o começo do envolvimento dos EUA na II Guerra Mundial.


Um de seus desenhos expostos
no Whitney Museum
Mas nestes meses atuais, até 6 de outubro, o Museu Whitney de Arte Americana, de Nova York, Estados Unidos, está fazendo uma exposição concentrada nos desenhos e no processo criativo de Edward Hopper. Esses desenhos revelam sua evolução e seu interesse permanente nos espaços: ruas, cinemas, escritórios, quartos, estradas. São parte de uma coleção do museu com mais de 2.500 desenhos doados por sua viúva, Josephine Hopper. Muitos deles nunca foram expostos antes. 

Edward Hopper foi um pintor realista norte-americano. Mais conhecido por suas pinturas a óleo, ele também foi aquarelista e gravador. Em suas cenas urbanas e rurais, e também nas pessoas solitárias de muitos de seus quadros, vemos refletida a sua visão pessoal da vida moderna. Aquela melancolia de fim de tarde, até certo ponto "aliviada" pelos encontros sociais após o expediente (os happy-hours), o peso na alma, a angústia que às vezes faz doer o corpo físico, coisas assim estão presentes na obra deste taciturno artista norte-americano que se manteve fiel ao realismo até o fim da vida. 

Para quem quisesse compreender qual era o motor que lhe inspirava a pintar, Edward um dia respondeu: “A resposta toda está lá na tela.” 

Quem foi Edward Hopper


Autorretrato, 1925-30, óleo s/ tela
Edward Hopper nasceu em Nova York, EUA, no dia 22 de julho de 1882. Seus pais, de descendência holandesa, foram Elizabeth Griffiths Smith e Garret Henry Hopper, um comerciante de secos e molhados. Teve uma vida até certo ponto confortável, como uma família de classe média. Edward e sua única irmã Marion estudaram tanto em escolas públicas quanto privadas e tiveram uma educação rígida. Seus pais eram da igreja Batista. Hoje, a casa onde viveram os Hopper é um centro cultural, a Edward Hopper House Art Center, aberta à comunidade, sem fins lucrativos, com exposições, workshops, palestras e eventos especiais.

Hopper foi um aluno aplicado e mostrou talento para o desenho desde cedo. Recebeu muita influência de seu pai, um intelectual que amava as culturas russa e francesa. Desde cedo, seus pais encorajaram a sua arte, fornecendo-lhes materiais artísticos, revistas e livros de arte. Na adolescência, Hopper já trabalhava bastante, desenhando com materiais diversos, como carvão, e pintando aquarelas e quadros a óleo. Também já fazia charges políticas. Com apenas 13 anos, em 1895, assinou sua primeira pintura a óleo, que ele intitulou “Barco a remo em Rocky Cove”. Nessa época ele já se interessava muito pelos temas marítimos. Chegou mesmo a pensar em seguir uma carreira ligada à marinha, mas logo após sua formatura resolveu seguir carreira artística.


Desenho de Edward Hopper
Hopper começou seus estudos de arte em um curso por correspondência em 1899. Logo, porém, ele foi transferido para o Instituto de Arte e Design de Nova York. Estudou nesta escola durante 6 anos, tendo também como professor o pintor William Merritt Chase, que o instruiu na pintura a óleo.

Outro de seus professores foi o também artista realista Robert Henri, que dizia que arte e vida devem caminhar juntos. Henri incentivava seus alunos a usar sua arte para "agitar o mundo". E dizia: "Não é o tema que conta, mas o que você sente a respeito dele". Dessa maneira, Hopper foi sendo influenciado por seus mestres, que incluiram também os notáveis ​​artistas George Bellows e Rockwell Kent. Alguns deles, incluindo o próprio Robert Henri, se tornaram membros da "The Eight", também conhecida como Escola Ashcan de Arte Americana.

A Escola Ashcan foi um movimento artístico no Estados Unidos do início do século XX, conhecida por retratar as cenas do cotidiano em New York, principalmente a vida nos bairros mais pobres da cidade. Os artistas mais famosos que trabalharam neste estilo incluía Robert Henri (1865-1929), George Luks (1867-1933), William Glackens (1870-1938), John Sloan (1871-1951), e Everett Shinn (1876-1953), alguns dos quais se conheceram estudando juntos sob a orientação do renomado pintor realista Thomas Anshutz na Academia Pensilvania de Belas Artes. Outros deles se reuniam na redação do jornal da Filadélfia, onde trabalharam como ilustradores.


Estudo para "Nighthawks"
Os artistas da Escola de Ashcan não emitiram manifestos, até porque não eram um grupo unificado com idênticas intenções e objetivos. Alguns eram politizados, e outros não. O que os unia era o desejo de mostrar a verdade sobre o viver na cidade e sobre a vida moderna. Robert Henri, um dos líderes principais deste movimento, queria que a arte fosse semelhante ao jornalismo. Ele queria pintar e ser “tão real quanto a lama, como o cocô dos cavalos congelados pela neve no inverno”. Ele dizia a seus amigos e alunos que deviam se inspirar no espírito de seu poeta favorito Walt Whitman, e "não ter medo de ofender o gosto contemporâneo". E acrescentava que a vida da classe trabalhadora e da classe média forneciam temas muito mais interessantes para pintar do que a vida e os salões da burguesia.

Hopper, portanto, amadureceu como pintor em meio a essas ideias. Durante seus anos como estudante, ele pintou dezenas de nus, estudos de natureza-morta, paisagens e retratos, incluindo seus autorretratos. 


"Sombras da noite", gravura de Edward Hopper
Em 1905, conseguiu um emprego temporário numa agência de publicidade, onde criou desenhos para capas de revistas. Depois dessa experiência, Hopper passou a detestar ilustração. Mesmo assim dependia disso para se manter.

Hopper fez três viagens à Europa, concentrando-se em Paris, onde ele queria aprofundar seus estudos de pintura, assim como o fizeram dezenas de outros seus conterrâneos antes e depois dele. Mas lá estudava sozinho e não parecia muito influenciado pelas novidades da arte daquele período. Mais tarde, ele disse que não se lembrava de ter ouvido falar de Picasso nenhuma vez. Mas tinha ficado muito impressionado com Rembrandt, principalmente pelo quadro “Ronda noturna” que ele disse que foi "a coisa mais maravilhosa que já tinha visto”.

Após esse contato com as telas de Rembrandt, Hopper começou a pintar cenas urbanas usando uma paleta com tons escuros. Ainda experimentou uma paleta clara como as dos impressionistas, mas voltou às cores escuras, com as quais ele se sentia mais confortável. Hopper passou a maior parte de seu tempo em Paris desenhando ruas e cenas nos cafés. Também ia ao teatro. Diferentemente de muitos de seus contemporâneos que imitavam as abstrações cubistas, ele escolheu continuar na linha da arte realista.


"Soir bleu", Edward Hopper, óleo sobre tela
Depois de retornar de sua última viagem à Europa, alugou um pequeno studio em Nova York, e começou a trabalhar para definir seu próprio estilo. Mesmo contra a vontade, voltou -se para a ilustração. Sendo free-lancer, foi obrigado a correr atrás de trabalho, batendo nas portas de revistas e agências. Nesse período, não conseguia pintar. Seu amigo Walter Tittle, ilustrador como ele, descreveu o estado emocional deprimido de Hopper: “Sofrendo... com longos períodos de indomável inércia, sentado por dias seguidos diante de seu cavalete em uma infelicidade desamparada, sem conseguir levantar uma mão para quebrar o ‘feitiço’."


Estudo para "No escritório, à noite"
Em 1912, ele resolveu ir para Massachusetts buscar alguma inspiração e fez suas primeiras pinturas ao ar livre nos Estados Unidos. Em 1913, quando da famosa exposição de arte conhecida como Armory Show, Hopper conseguiu vender sua primeira pintura, “Vela”. Tinha 31 anos. Logo se animou e pensou que iria conseguir vender mais obras. Mas se passaram muitos anos até que fosse reconhecido. 

No ano seguinte, recebeu uma encomenda para fazer ilustrações para alguns cartazes de filmes e de publicidade para uma empresa de cinema. Mesmo que ele não gostasse desse trabalho, Hopper adorava teatro e cinema, que acabaram sendo também temas para suas pinturas e influenciaram a composição de seus quadros. Em 1915, voltou-se para a gravura e produziu cerca de 70 obras. Quando podia, fazia também aquarelas ao ar livre.


Edward Hopper
Embora estes tenham sido anos frustrantes, ele não deixa de ter algum reconhecimento. Em 1918, Hopper foi agraciado com o prêmio Prize Board por seu cartaz sobre a guerra, "Esmagar Huno". Além disso, ele expôs obras suas em três ocasiões: em 1917, na Sociedade de Artistas Independentes; em janeiro de 1920, numa individual no Whitney Studio Club (precursor do atual Museu Whitney); e em 1922, novamente no Whitney. Em 1923, recebeu dois prêmios por suas gravuras : o Prêmio Logan da Chicago Society of Etchers, e o Prêmio WA Bryan.

Em 1923, conheceu sua futura esposa Josephine Nivison, artista e também ex-aluna de Robert Henri. Casaram-se um ano depois.

O artista voltou-se mais uma vez para pintar e desenhar a arquitetura norte-americana, tanto urbana quanto rural. Aos quarenta e um anos, Hopper já vivia de seu trabalho de pintura. 

Continuava um homem recluso, de poucas palavras, taciturno, um tanto melancólico. Vivia uma vida simples, longe dos eventos sociais que já lhe davam fama. Passou pela década de 1930 produzindo muito. Durante a década de 1940, passou um período de relativa inatividade, mas foi quando pintou um de seus quadros mais famosos, o "Nighthawks" acima. Passou por vários problemas de saúde. Na década de 1950 e início de 1960, criou várias de suas obras mais importantes, entre elas “Primeira fila da orquestra” (1951); “Manhã de sol” ; “Hotel by a Railroad”, 1952; “Intervalo”, em 1963.


"Autòmato", 1927, óleo s/ tela
Sua vida foi relativamente calma e ordenada. Não passou por mudanças bruscas e mesmo que tenha passado curtos períodos na Europa, ele passou mais de 50 anos, até sua morte, trabalhando em seu ateliê da rua Washington Square North, no último andar do prédio, em Manhattan, Nova York. Teve uma vida modesta ao lado de sua esposa, Jo, também pintora.

Sua pintura desde o início reflete seu interesse na tradição dos mestres holandeses, especialmente Rembrandt e Franz Hals e, dos franceses, seu fascínio por Édouard Manet. Paisagista e interessado em pintar casas e prédios, Hopper se interessou muito também pela imagem da mulher. Em muitos de seus quadros, mulheres solitárias, muitas vezes nuas, parecem representar a solidão humana diante de um mundo que crescia muito e que parecia engolir o sujeito. Sua mulher também foi modelo para suas pinturas muitas vezes.

Hopper morreu em sua casa, em Nova York em 15 de maio de 1967. Sua esposa, que morreu dez meses depois, doou sua coleção com mais de três mil obras para o Museu Whitney de Arte Americana.

Edward Hopper manteve-se fiel a seu estilo figurativo e realista, como o fizeram tantos outros pintores, norte-americanos ou não, entre eles Lucian Freud. Ele se manteve coerente a uma máxima de Wolgang von Goethe, a qual citava e concordava: 

"O início e o fim de qualquer atividade artística é a reprodução do mundo à minha volta através do mundo dentro de mim..."


"Moça costurando", Edward Hopper, 1921, óleo sobre tela

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Desenho Pictórico e Linear

Detalhe do quadro "Moça com brinco de pérola", Jan Vermeer

Na quarta-feira, dia 21 de agosto, estive na PUC de São Paulo para fazer uma palestra para os alunos do professor Luís Carlos Petry, do curso de Tecnologia e Jogos Digitais. Eles já vêm estudando os mestres, neste semestre, especialmente Vermeer e Rembrandt. Assistiram aos filmes “Moça com brinco de pérolas” de Peter Webber e “A ronda noturna” de Peter Greenway. Depois do filme sobre Vermeer, eles tiveram uma palestra sobre esse filme com a pesquisadora Cristina Sisigan, da Universidade do Porto, Portugal. Na sequência, a minha palestra sobre “Desenho Pictórico e Linear” e minhas experiências de estudo da pintura de Rembrandt e Vermeer. Abaixo, um resumo do que falei para eles.


Detalhe de pintura do Paleolítico superior
Para começar, é sempre bom lembrar da história. Há mais de 35 mil anos antes de Cristo, o ser humano começou a fazer seus primeiros desenhos nas paredes das cavernas onde viviam. Esses artistas da pré-história que decoraram abrigos e cavernas exerceram seu talento no Paleolítico superior sobre um período em torno de 25 mil anos: do Auriaciano (ou Aurignaciano - 35 mil a.C.) ao Madaleniano (em torno de 13 mil anos a.C). Desde esses primeiros desenhos e pinturas, nós temos buscado ampliar nossos conhecimentos sobre o mundo em que vivemos, e desenhamos e pintamos o que vemos desse mundo.


O ser humano inventou a linha para traçar seus desenhos, uma abstração que não existe na natureza. Mas ao traçar desenhos, seja no papel seja em outro meio qualquer, o ser humano está descrevendo também, através do desenho, o mundo que o rodeia.


Escultura de Michelangelo: David
Mas vamos dar um salto grande da pré-história ao período do Renascimento italiano, por volta dos séc. XIV e XVI. Nessa época, se desenvolveu a arte de observação da natureza, mas que pretendia ir além da desordem das aparências para encontrar a ordem subjacente no mundo. O modelo era a antiguidade clássica da Grécia e de Roma e seus ideais de Beleza e Perfeição. Naqueles longínquos tempos, a beleza do corpo humano era um ideal a ser buscado. Os atletas se desenvolviam na cultura física, os filósofos buscavam interpretar o mundo e compreender a condição humana.


No Renascimento, o lugar do ser humano no mundo voltou a ser valorizado. Não se pintava a realidade como ela era, mas buscando nela a Beleza e a Perfeição. Os modelos humanos eram idealizados, as composições dos quadros deviam ser claras, limpas, buscando a Simetria. Tudo isso dava à arte produzida nesse período uma qualidade algo estática. As figuras, pintadas ou desenhadas, estavam encerradas entre fronteiras e obedeciam a regras rígidas ditadas pela intelligentzia da época, em geral os doutores da Igreja.

"Nascimento de Vênus", de Sandro Botticelli, cerca de 1483
Foi quando Sandro Botticelli, um pintor italiano, pintou o “Nascimento de Vênus”, por volta de 1483. Como se pode ver neste quadro, as figuras se encontram recortadas em relação ao fundo. Os objetos estão separados entre si. Todos se voltam para o centro, onde se encontra a deusa grega Vênus e seu corpo nu, perfeitamente imaginado. Uma prova de que novamente, mesmo em meio à moral da época, o corpo humano voltava a ocupar lugar de destaque no mundo das ideias, voltava a ter grande valor.



Neste detalhe ao lado, podemos ver as linhas traçadas por Botticelli, onde ele encerrou sua Vênus. A  pintura, em sfumato, é plana. Sombras profundas, não há. A luminosidade parece deixar tudo plano, tudo parte de uma ordem que não pode ser mexida.

Mas em seguida… as sombras desceram de vez sobre a terra, para susto de alguns. Mas para os artistas, estas sombras trouxeram novas possibilidades de penetrar ainda mais fundo na realidade do mundo. No final do século XVI, com o surgimento disso que ficou depois conhecida como Arte Barroca, o artista desejou mergulhar na multiplicidade das coisas, nos fluxos da vida, no movimento.

Suas composições passaram a ser mais dinâmicas, abertas. O movimento se fazia presente nas artes, que agora mostravam uma tendência a romper com todas as fronteiras, mostrando uma variedade de formas de expressão que eram, inclusive, adaptáveis às culturas locais. O Barroco, nascido na Itália, se espalhou pela Europa e pelo mundo. Aqui no Brasil, as montanhas de Minas Gerais inspiraram o nosso maior artista barroco, o Aleijadinho.


"Amor vitorioso", Caravaggio, 1601
Caravaggio, na Itália, mergulhou profundamente nessa nova estética. Usou as sombras mais densas a favor da luz, em seus quadros. Montava suas composições em ambientes com pouca luz e era dali que fazia com que emergissem as figuras.

Até o começo do período do Barroco, nos fins do século XVI, o desenho e a pintura ocidentais seguiam o estilo linear, onde predominava o uso de linhas - mesmo na pintura - e as composições planas, luminosas. Mesmo Leonardo da Vinci que em um tratado sobre a pintura recomendava que o artista não respeitasse os limites da linha, ele mesmo pintava desta forma. Michelangelo, o grande, inquieto e pródigo artista do Renascimento também ele respeitava as linhas. O mesmo aconteceu com Sandro Botticelli, ou com Rafael di Sanzio ou com outros grandes.

Mas Ticiano… não! A Escola Veneziana, à qual ele pertencia, era a escola da pintura cheia de cor, que ousou ir mais longe do que a Escola Florentina, que praticava um desenho e uma pintura mais lineares. Ticiano foi um dos pioneiros do estilo pictórico, rompendo os limites da linha, abrindo mão de descrever os detalhes do que via em prol do que era essencial aos olhos. A importância de Ticiano na história da arte deve-se ao fato de que ele deixou para seus contemporâneos e para a posteridade uma concepção de pintura verdadeiramente revolucionária, pois foi ele quem libertou a pintura dos limites da linha e da forma, dando todo o poder às cores.

"Madalena", de Ticiano - ainda pode ser vista no CCBB de São Paulo
Linear e Pictórico


Em seu livro “Conceitos fundamentais de história da arte”, Heinrich Wölfflin explica de forma bastante didática essas duas concepções da arte, que pode estar presente no desenho, na pintura, na escultura, na arquitetura.

Em resumo, são na verdade duas visões de mundo: uma, em que o mundo se encontra encerrado entre linhas limítrofes e com regras mais claras; a segunda, uma visão de que tudo no mundo se relaciona e há que se buscar ver a realidade como resultado de um conjunto de relações e que dá unidade a tudo.

O estilo Linear vê o mundo em linhas. O sentido do objeto é buscado primeiro no contorno dele e os olhos são conduzidos através dos limites da forma. Limites firmes, ao qual tudo se subordina.


Exemplos de pintura e desenho linear:

Estilo Pictórico


O estilo Pictórico, por seu lado, confere à forma um caráter indeterminado. Busca o movimento que ULTRAPASSA o conjunto dos objetos. As formas isoladas têm pouca importância, pois vale a Unidade do todo, o conjunto do quadro. O pictórico emancipa as massas do degradée do chiaro-oscuro e do sfumato, um jeito de pintar que alisa as tintas e cria uma sensação de profundidade através da passagem suave das sombras para a luz, ou vice-versa. No estilo Pictórico, o visível parece REAL aos olhos: o pintor reproduz a aparência do objeto / da Realidade. Mas isso não significa superficialidade, já que a aparência é o resultado de um jogo de forças distribuído em camadas em diversos níveis de profundidade. O artista pictórico vê o mundo como massas, não como linhas.



Rembrandt van Rijn (15/071606 - 4/10/1669)
Este artista holandês fez um esforço para subtrair as figuras à zona tátil e eliminar o que sobra. Para ele, os contornos não são importantes. Cada detalhe está tão ligado ao contexto maior que dá a impressão de MOVIMENTO contínuo. Rembrandt usava grossas camadas de tinta para mostrar o movimento das massas em direção à luz. Para ele quanto mais luz, mais densidade de tintas. Na medida em que ele amadurecia em idade e em produção artística, mais se tornava um exemplo de que o progresso na concepção pictórica pode caminhar paralelamente em direção a uma crescente simplicidade.

O estilo pictórico é o despertar para um novo sentido da beleza, diz Wölfflin. Quando Rembrandt pinta uma figura sobre um fundo escuro, a luminosidade do corpo parece emanar naturalmente do escuro do espaço. Franz Hals (1580 ou 1585 — 10/8/1666) não queria reproduzir mais do que o olhar apreende do conjunto. Jan Vermeer (31/10/1632 - 15/12/1675) em seu trabalho lento e meticuloso de pintor, busca expressar a fragilidade dos limites entre as formas, as suaves e profundas distinções entre a luz e a sombra.


O estilo pictórico mostra a realidade como ela é apreendida pelo olhar do artista. É a arte do “parece ser”. A pintura, em seu conjunto, tem movimento, ritmo, amplitude além da forma. O artista renuncia à ideia anterior sobre a cor local. As cores servem ao movimento. Elas são um novo ideal de beleza. A sombra já não é dominada pelo preto, mas por tons mais intensos. Luz e sombra são parte da mesma coisa.


Diego Velázquez ( 31/10/1632-15/12/1675): Retrato de Juan Pareja, 1650
À distância, tudo está completo. Próximo, só podemos enxergar as pinceladas do artista. As raízes do Impressionismo do século XIX na França já tinham sido lançadas pelos artistas holandeses. Eles já haviam descoberto o caráter pictórico da Natureza: a beleza das roupas rotas de um mendigo, de uma casa em ruínas, das águas inquietas de praias e cachoeiras, das nuvens em perene autocriação, das multidões se movimentando nas feiras e praças…


As ideias de Heinrich Wölfflin se refletem também nas do pintor realista norte-americano David Leffel, que complementa: o pintor não pinta “coisas”, pinta a luz nas coisas. Ele não vê seu modelo como um conjunto de detalhes separados, mas em termos de movimentos de massa. Não pensa em características especificas como “boca”, “nariz”, ou “olhos”; mas vê massas movendo-se para dentro e para fora. Vê movimento entre a luz e a sombra, que vai dando materialidade ao modelo. A realidade é a referência permanente do artista. Ele não pinta o que não está lá, ou o que ele não vê, mas aquilo que para ele é significativo da sua observação do mundo. Através do seu olhar, ele mostra como “pensa” o mundo, qual é sua atitude, sua capacidade de ver e de sintetizar o que vê


Estudo sobre pintura de Rembrandt feita com carvão
e lápis-carvão, em 2011
Para finalizar a conversa com os estudantes da PUC-SP, falei da minha própria experiência no estudo destes mestres, especialmente Rembrandt e Vermeer. Dois artistas holandeses que foram contemporâneos, mas que não se conheceram, e eram tão diferentes entre si. Um, voltado para o mundo externo, que adorava o teatro e produzia intensamente. O outro, Vermeer, mais lento, mais quieto, que usava pinceis pequenos para quadros pequenos que pintava durante meses de trabalho. Chegou a pintar pouco mais de 40 pinturas em toda sua vida, enquanto Rembrandt deixou centenas de telas que hoje estão espalhadas por diversos museus do mundo.

Estudei e pintei algumas pinturas de Rembrandt no Atelier de Arte Realista de Maurício Takiguthi, onde ainda estudo aqui em São Paulo. Para compreender como ele, Rembrandt, movimentava suas massas, trabalhava a incidência da luz naquilo que tocava. Mostrei aos alunos do professor Petry dois estudos meus: um em carvão e o outro em pastel.

Mas também fiz uma cópia do “Moça com brinco de Pérola”, de Jan Vermeer. Trabalhei nesse pequeno quadro durante umas 45 horas, no Atelier Vermeer em Paris. Somente para captar um pouco da concepção dos movimentos das cores que definem a boca e o nariz da “Moça”, devo ter trabalhado dois dias inteiros, num total de umas 18 horas.


Estudo meu em óleo sobre tela sobre o original de
Vermeer "Moça com brinco de pérola" - Paris 2011
No momento, a pintura realista retoma um fôlego muito importante em diversos lugares do mundo. Só para citar alguns, do meu conhecimento e experiência: Rússia, França, Espanha e Estados Unidos. Nos EUA, onde ainda se pratica a pintura acadêmica e começa a criar grande força o Hiperrealismo, a pintura realista conta hoje com os mais importantes mestres, o que não deixa de ser curioso, uma vez que a Guerra Fria produziu lá o Expressionismo Abstrato em contraposição ao Realismo. Muitos destes velhos artistas norte-americanos, que ainda estão vivos e produzindo muito, passaram por toda aquela fase de perseguição do macarthismo que identificava pintura realista com comunismo.


A pintura realista e pictórica toma como referência a realidade, que é inesgotável. Enquanto nos fixamos nas formas das coisas do mundo, vamos penetrando cada vez mais em camadas de conhecimento que nos surpreendem a cada momento. Após cada coisa apreendida, cada conquista feita, algo surge lá como novidade, mostrando o fluxo das massas de cores, os pequenos toques que configuram um olho, por exemplo, num jogo de valores que vão da luz às sombras mais densas.

O prazer de enxergar a possibilidade de romper os limites, de ir além das formas, de ultrapassar as bordas do mundo, de buscar o que há mais lá dentro, no fundo, escondido dos olhos dos apressados, é o que me move.


Para romper limites, é preciso coragem! Inclusive para nadar contra a maré do mercado de arte atual e dos pensadores da arte dita "contemporânea".

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Bibliografia:
- Wölfflin, Heinrich. Conceitos Fundamentais de História da Arte. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2006
- Bazin, German. Barroco e Rococó. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2010