sexta-feira, 19 de outubro de 2012

A Vinícius de Moraes


Porque hoje o poeta Vinícius de Moares faria 99 anos... E porque ele sonhava um mundo mais bonito, viva Vinícius, viva a Poesia, viva a Arte!

MUNDO MELHOR

Vinícius de Moraes


Você que está me escutando 
É mesmo com você que estou falando agora 
Você que pensa que é bem 
Não pensar em ninguém 
E que o amor tem hora 
Preste atenção, meu ouvinte 
O negócio é o seguinte 
A coisa não demora 
E se você se retrai 
Você vai entrar bem, ora se vai 

Conto com você, um mais um é sempre dois 
E depois, mesmo, bom mesmo, é amar e cantar junto 
Você deve ter muito amor pra oferecer 
Então pra que não dar o que é melhor em você? 
Venha e me dê sua mão 
Porque sou seu irmão na vida e na poesia 
Deixa a reserva de lado 
Eu não estou interessado em sua guerra fria 
Nós ainda havemos de ver 
Uma aurora nascer 
Um mundo em harmonia 
Onde é que está a sua fé 
Com amor é melhor, ora se é

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Como pintar um quadro de 11 mil euros

François Cluzet e Omar Sy, atores do filme
Neste final de semana, às vésperas das eleições municipais, fui assistir ao filme “Intocáveis”, dos diretores franceses Eric Loredano e Olivier Nakache.

É um belo filme, do começo ao fim. A história, tocante. Conta como Driss, um senegalês morador da periferia de Paris, consegue um emprego de “tomador de conta” de um rico aristocrata, Phillipe, que ficou tetraplégico após uma queda de parapente. O filme é baseado na história real entre o milionário Phillipe Pozzo di Borgo e seu acompanhante, o argelino Abdel Sellou.

O papel desempenhado pelo ator Omar Sy, que morou na periferia de Paris assim como seu personagem Driss, traz à tona algumas reflexões. Em primeiro lugar, como se trata de uma história de amizade onde se cria uma profunda relação de confiança entre dois homens de duas classes tão distintas, o grau de humanidade implícita nessa história é muito comovente. De um lado, um negro pobre, que mora com a mãe e irmãos num pequeno cubículo de um bairro da periferia. Sua mãe é faxineira em prédios de escritórios. Seu irmão mais novo, traficante. Ele próprio, passou uma temporada no presídio por alguma infração cometida anteriormente. Do outro, um homem rico, branco, que mora num apartamento imenso e luxuosamente decorado, mas que está tetraplégico e depende, assim, completamente dos cuidados de Driss.

O filme mostra, todo o tempo, as diferenças entre o mundo de Phillipe – o dos ricos – e o mundo de Driss e sua família – os pobres.

Não indo muito longe na interpretação, me atenho ao que mais me interessa desse roteiro. Além das evidentes diferenças entre os dois mundos, o filme também mostra como existe uma lacuna muito grande dentro da cultura e da arte, que também opera uma separação de classes. Intencionalmente ou não, o filme ridiculariza a prática cultural burguesa: a arte contemporânea é um embuste, uma forma a mais de investimento financeiro; as sessões de ópera e música clássica, para platéias da elite “bem-arrumada” são, aos olhos de Driss, pura chatice; os poemas que Phillipe (François Cluzet) costuma recitar, ele também ridiculariza. A educação que o menino pobre e negro recebeu em sua escola não é a mesma educação refinada do patrão Phillipe: o acesso à literatura, a museus, a recitais de música, a assimilação dos símbolos da tradição cultural e artística ocidental passaram bem longe da cultura “aprendida” por Driss na rua, nos guetos, na luta pela sobrevivência.

Há uma cena em que Driss acompanha Phillipe a uma galeria onde está havendo uma exposição de arte contemporânea. Os dois param diante de uma tela em branco, com uma mancha vermelha de tinta jogada na tela. Phillipe diz que aquilo lhe transmite calma. Driss, gozador do modo de vida do patrão, lhe garante que poderia fazer melhor do que aquilo. Uma atendente se aproxima e anuncia o valor do quadro: mais de 40 mil euros! Driss não se conforma como alguém pode pagar tão caro por uma tela branca manchada de tinta. O mesmo que dizer que o mundo burguês de Phillipe tem também códigos culturais guiados pelo valor monetário. Nesse mundo onde as regras de etiqueta tornam tudo uma perfeita chatice, os valores subjetivos e as relações humanas estão também submetidos ao poder do dinheiro. Driss parece mostrar a Phillipe que em seu mundo falta naturalidade, espontaneidade e, num certo sentido, profundidade e sinceridade nas relações.

Mas Driss resolve pintar um daqueles quadros. Se vale tanto assim, não custa tentar. Phillipe, que já se divertia com esse ajudante que ia contra as regras de seu mundo em todos os momentos, resolve sugerir a um amigo, rico como ele, que comprasse o quadro de Driss por 11 mil euros. O amigo, um investidor, não se arrisca a perder um provável grande negócio. Enquanto isso, Driss e Phillipe se divertem. E nós, na platéia, nos divertimos com o ridículo desses signos burgueses que incluem a chamada arte contemporânea. Que não diz nada, não significa nada. Mas vale muito dinheiro!

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Uma homenagem a Eric Hobsbawm

Eric Hobsbawm
Morreu hoje, 1 de outubro, o historiador Eric Hobsbawn. Era uma figura das mais célebres do marxismo britânico, tendo produzido uma rica obra que ajudou na formação de dezenas de milhares de pessoas ao redor do mundo, dentro da visão marxista da história.

Sua história de vida é das mais ricas: era criança ainda em Viena quando Freud (o pai da psicanálise) já era famoso, estudou em Berlim nos últimos dias da República de Weimar, depois estudou em Londres e se tornou militante do Partido Comunista Britânico. Foi também crítico de Jazz, professor convidado em uma Universidade da Califórnia (EUA) justamente no período em que havido surgido o movimento hippie.

Hobsbawm era um marxista apaixonado. Em sua autobiografia "Franco-atirador", ele descreveu a última manifestação do Partido Comunista alemão na legalidade, da qual ele participou, em Berlim, no dia 25 de janeiro de 1933: "Assim como o sexo, a  única atividade que combina experiência corporal a uma emoção intensa elevada ao mais alto grau é a participação em uma manifestação de massas num momento de grande exaltação política". Ou seja, é essa sensação de se sentir um ser ativo, um agente da História.

Mas minha homenagem a este grande pensador da humanidade é a de traduzir aqui um pequeno trecho de seu artigo "Sexe, symboles, vêtements et socialisme", justamente no ponto em que ele analisa a grande figura feminina presente no centro do quadro de Eugène Delacroix, "A Liberdade guiando o povo".

Diz Hobsbawm: 


"Começaremos por esta que deve ser a mais famosa das pinturas revolucionárias, mesmo que seu autor não tenha sido tão famoso quanto sua obra: quero falar de "A Liberdade guiando o povo" de Delacroix (1831). O tema é conhecido de todos: uma moça com os seios à mostra, com um boné frígio na cabeça e, segurando uma bandeira, atravessa os corpos empilhados sobre a barricada enquanto que a seguem outros homens armados e vestidos de forma característica. 
Muito se explorou sobre este tema. Mas de qualquer maneira, a forma na qual os contemporâneos dele interpretaram este quadro não deixa dúvida: para eles, esta Liberdade não tinha nada de uma figura alegórica, mas se tratava de uma mulher bem real (provavelmente inspirada na heroína Marie Deschamps, cujas façanhas deram a Delacroix a ideia da pintura), uma mulher do povo, pertencente ao povo, orgulhosa de  pertencer ao povo:
"É uma mulher forte com poderosos seios,
com voz rouca, encantadoramente dura
Quem...
Ágil e marchando com passos largos
Gosta do grito do povo..."          
(Barbier, "A curadora")
Balzac a via como uma camponesa: "a pele sombria, ardente, a imagem mesma do povo". Orgulhosa e insolente (sempre segundo Balzac), ela representava a antítese exata da imagem da mulher burguesa. Por outro lado, como não deixam de sublinhar seus contemporâneos, ela era uma mulher sexualmente liberada. Barbier, cujo poema "A curadora" foi fonte de inspiração para Delacroix, vai até inventar toda a história de sua emancipação sexual. Ela:
"Que não possui amor senão pelo seu povo
que não cede seu largo flanco
a não ser às pessoas fortes como ela"
após ter, "criança da Bastilha", excitado o mundo inteiro, cansada de seus primeiros amantes, segue as bandeiras (de Napoleão) e uma "capitã de 20 anos", finalmente retorna,
"Sempre bela e nua
Com uma echarpe de três cores"
para ajudar seu povo a vencer os "Três Gloriosos".
(...)
A novidade da "Liberdade" de Delacroix é, portanto, esta identificação da imagem da mulher nua com uma verdadeira mulher do povo, emancipada, e que joga um papel ativo, como uma dirigente do movimento dos homens. De quando data precisamente essa nova imagem revolucionária? Esta é uma questão que compete aos historiadores da arte responder.  Para nós, observamos duas coisas. Primeiro, por sua natureza concreta ela rompe com o papel de simples alegoria que era ordinariamente atribuída às figuras femininas; agora ela conserva a nudez, nudez que o pintor não procura jamais dissimular e que os críticos perceberam. Esta mulher não está lá para inspirar nem para representar: ela AGE. 
Em seguida, ela se distingue claramente como uma mulher combatente da Liberdade, diferente daquela que a iconografia tradicional descrevia, onde o melhor exemplo é Judith que, assim como David, representava a luta do fraco contra o forte. Diferentemente desses dois heróis, a "Liberdade" de Delacroix não está só e não tem nada de fraca. Muito ao contrário, ela encarna toda a força concentrada do povo invencível. 
"O cerco de Saragossa", de David Wilkie, 1828
Mas ela, enquanto ser sexual, se separa da virginal Joana D'Arc, por exemplo. Se trata de uma mulher jovem, nem mãe nem esposa - pelo menos podemos supor isso. Podemos medir o contraste desta imagem revolucionária e seu equivalente não-revolucionário, comparando o quadro de Delacroix com uma outra obra que lhe é quase contemporânea, "Le siège de Saragosse" (O cerco de Saragossa), de David Wilkie (1828). Nesta, vemos uma heroína bem real, inteiramente vestida, mas numa postura alegórica, com um camponês de dorso nu agachado perto dela. O quadro é um episódio das guerras pré-napoleônicas. 
Ora, Byron que lhe descreve em "Childe Harold", exprimindo toda a sua admiração pelos combatentes espanhois, insiste no fato de que a "Fille de Saragosse" não está postada fora dos limites disso que os homens, do alto de sua superioridade, avaliam ser um comportamento convencional para uma mulher: "Portanto as moças da Espanha não são uma raça de Amazonas, mas mulheres experientes em todos os encantos do amor". E ele busca uma explicação para esse heroísmo pouco feminino: ela está sendo simplesmente leal a seu marido morto. Seus atos manifestam a "ferocidade de uma pomba". 
Estamos, então, bem longe da "Liberdade".
É a revolução de 1830 que constitue - parece - o ponto culminante dessa imagem da Liberdade como uma moça jovem ativa, emancipada e aceita como dirigente pelos homens, ressaltando-se que o tema ainda era popular em 1848, provavelmente por causa da influência de Delacroix sobre os outros pintores. Ela surge, assim, sempre nua em seu boné frígio, inclusive na "Liberdade sobre as barricadas" de Millet (Jean-François), apesar de que o contexto já tinha se modificado. Mesma coisa nos esboços de Daumier, "L'émeute" (O motim). Por outro lado, as raras representações da Comuna e da Liberdade que datam de 1871 são em geral mostradas nuas (como o desenho de Rops) ou os desenhos descobertos (depois). 
O papel notoriamente ativo cumprido pelas mulheres durante a Comuna de Paris, inspirou artistas de outros países que usaram como símbolo para ilustrar essa revolução os traços de uma mulher não-alegórica (ou seja, nua) e manifestadamente militante. A tendência a representar o conceito revolucionário de liberdade ou de república através de uma mulher nua ou, mais frequentemente, com os seios descobertos, continuou a existir. Desta forma, a famosa estátua da República, do communard (membro da Comuna) Dalou, na Place de la Nation (em Paris), apresenta o seio nu. Deveria haver uma pesquisa mais vigorosa para verificar se a exposição dos dois seios (ou de um só) se associava sempre à revolta ou, em sua falta, à polêmica, como pode ser o caso de um desenho feito na época do "Caso Dreyfus" (janeiro de 1898) onde vemos uma Marianne jovem e virginal, com um seio nu, protegida de um monstro por uma matrona Justiça com armas na mão, com esta legenda: "A Justiça: Não tenha medo da besta. Eu estou aqui!"
Emblema da Sociedade dos Carpinteiros
londrinos
Mas, por outro lado, Marianne, a República institucionalizada, aparece, doravante, normalmente vestida, mesmo que ligeiramente, apesar de suas origens revolucionárias. É de novo o reino da decência. E pode ser também o da mentira, na medida em que a nudez caracteriza em princípio a figura alegórica e feminina da Verdade - sempre frequente, notadamente nas caricaturas que foram feitas sobre o "Caso Dreyfus". 
Nua ela permanece na iconografia do respeitável movimento trabalhista britânico, como vemos no emblema da "Amalgamated Society of Carpenters and Joiners" (sociedade dos carpinteiros e marceneiros unidos) de 1860, antes que a moral vitoriana se impusesse.
(...)
Tais imagens são particularmente significativas na medida em que, de um lado, elas têm um lugar evidente em todo o então jovem movimento socialista que elabora sua própria iconografia e, por outro, (...) se inspira na imagerie revolucionária francesa, onde a Liberdade de Delacroix procede igualmente".
"A Liberdade guiando o povo", de Eugène Delacroix, 1831, Museu do Louvre, Paris, França