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sexta-feira, 10 de novembro de 2017

A arte russa do século XX - PARTE I

A Revolução russa de 1917, cujos ecos de seus efeitos voltam a ser ouvidos 100 anos depois, não é só a história de um poderoso movimento político que mobilizou extensas forças sociais, econômicas e mesmo ideológicas. É a história de um dos mais extraordinários movimentos de arte do século XX. Antes, durante e depois da Revolução os artistas russos expressaram, com suas obras, a intensidade dos acontecimentos que moviam seu país, a partir de sua visão pessoal e de seu mundo subjetivo profundamente conectado com seu tempo.


Ícone "A Trindade", Andrei Rublev
A história da arte russa começa no século XIV, com a pintura de ícones. Na concepção da ortodoxia cristã, o ícone não é uma simples pintura, como ocorre na arte ocidental; mais do que uma representação figurativa, é a incorporação da energia da divindade, uma espécie de teofania (revelação) do divino. Por isso, os primeiros pintores eram monges, e um deles se destacou na história: Andrei Rublev, pintor peregrino que pintava ícones para igrejas e mosteiros de diversas cidades, entre eles o mais famoso, “A Trindade”, feito por volta de 1410. A vida deste monge-pintor foi contada pelo cineasta Andrei Tarkovsky, num filme lançado em 1966 (leia mais sobre os ícones aqui).
Durante 400 anos a pintura russa era basicamente a religiosa. Em todo o território, os ícones eram parte da vida do povo, cujas casas continham seu próprio altar com seu próprio ícone, a “janela” que apontava para o mundo espiritual.
Até que em 1682, o homem que tinha mais de dois metros de altura, Pedro o Grande, tomou posse como czar do império. Em longas e extenuantes viagens a países europeus, Pedro se deparou com um mundo diferente da sua Rússia atrasada, basicamente agrícola. O czar se apaixonou pelo que viu e desde então não poupou esforços para transformar a Rússia em um país moderno, nos moldes europeus. Como parte de seu plano de modernização fundou em 1703 a cidade de São Petersburgo, como uma espécie de janela que se abria para o Ocidente. Trouxe de fora engenheiros, artesãos diversos, artistas, arquitetos e mão de obra especializada de vários países para fazer emergir, por sobre uma região pantanosa, aquela que seria a cidade-símbolo dos sonhos da nova Rússia. Domou as margens do rio Neva, recortou canais, traçou linhas retas para o curso das águas, submetendo a natureza selvagem à sua vontade de progresso e modernização.
"A rainha Catarina II", Fedor Rokotov, 1763
Oitenta anos depois, surge a figura de Catarina II, esposa de Pedro III, que assumiu o trono russo em 1762. Mas ela, através de um golpe de Estado contra o próprio marido, assumiu o poder no mesmo ano. Catarina II expandiu ainda mais o império russo, que continuou a se modernizar. Era uma mulher de visão ampla e trocava correspondências com os intelectuais iluministas da Europa Ocidental, entre eles Voltaire e Montesquieu. Sob o governo dela, os nobres adquiriram ainda mais poder e a imensa maioria da população vivia em extrema pobreza. Os senhores de terras submetiam os camponeses a condições de vida precárias e a servidão era generalizada.
Catarina, em contato com a pintura europeia, foi adquirindo muitas obras de arte, montando um acervo pessoal que depois passou à administração do Museu Estatal. A nobreza russa também passou a comprar e a encomendar pinturas aos artistas europeus ocidentais. Foi então que jovens russos começaram a ser enviados à Itália e à França para aprenderem a arte da pintura como era feita naqueles países. Voltando a seu país, eles passaram a receber encomendas dos nobres e com isso a pintura russa foi tomando outro caminho. Na sequência, Catarina II inaugurou a Academia de Belas Artes de São Petersburgo, que passou a dar uma sólida formação artística às gerações de jovens que passaram a ter cada vez mais destaque na pintura, gerando artistas do nível de Ilya Repin, por exemplo.
"Quarto do artista em Ritterstrasse",
Adolf Menzel, 1847
No Ocidente europeu, cujo desenvolvimento corria a passos largos com a Revolução Industrial e todas as mudanças que ela trouxe à vida das nações, pensadores alemães defendiam ideias que eram totalmente contrárias aos franceses do Iluminismo, defensores da racionalidade. Friedrich Schlegel, Novalis, Friedrich Schelling e outros, reunidos em torno da revista “Atheanum”, lançaram, em 1797, o movimento que ficou conhecido como Romantismo. Essas ideias se expandiram por toda a Alemanha, influenciando poetas e escritores como Goethe, e músicos como Beethoven e Brahms. O Romantismo também alcançou as artes plásticas, em especial as escolas de Berlim e Frankfurt.
O Romantismo alemão enfatizava o retorno à espontaneidade das emoções, uma poesia voltada para a natureza, humana e selvagem, um retorno às origens da tradição nacional, uma valorização da vida simples e local.
Havia chegado o tempo do reinado de Nicolau I, que havia tomado posse em 1825. Este czar, interessado em afastar da Rússia as ideias dos revolucionários franceses, considerou melhor enviar os jovens russos a estudar na Alemanha, cujas ideias - assim pensava ele - não traria risco algum ao seu poder. De fato, os jovens russos entraram em contato com essas ideias que fervilhavam em meio às ruelas de Berlim, e se entregaram a elas. Essa convicção romântica de que todo homem tinha uma missão a cumprir, criou um entusiasmo generalizado entre os intelectuais e os artistas. A paixão por essas ideias moveu esses jovens do século XIX, em um momento em que profundas mudanças estavam em gestação.
Retrato de Dostoievsky, V. Perov, 1847
Para esses intelectuais e artistas, não era possível separar a obra de arte do homem que a produziu; seria impossível que uma mesma pessoa tenha um tipo de personalidade como eleitor, outra como pintor e uma terceira como marido ou mulher. “O homem é indivisível”, diziam eles. Havia então uma radical noção de integridade, de total compromisso com as ideias, levadas às últimas consequências. Dentro desses pensamentos, o artista era uma espécie de ser sagrado, com uma alma única, um ser dotado de uma aptidão especial, com dons que o diferenciavam do restante. Por isso, ele muitas vezes se sentia um solitário.


- "Torturava-me então mais uma circunstância - diz o personagem do "Memórias do Subsolo", de Dostoievski - o fato de que ninguém se parecesse comigo e eu não fosse parecido com ninguém. Eu sou sozinho e eles são todos”.


Esse espírito combinava com o cenário de mudanças que se via na Rússia, não somente na vida cultural, mas também na política. Aquela efervescência de pensamentos e aquele momento de alta criatividade e produtividade artística puseram em circulação ideias destinadas a exercer efeitos cataclísmicos não só na própria Rússia, mas muito além de suas fronteiras.
O ambiente dentro da Academia de Belas Artes de São Petersburgo, assim como em todas as instituições estudantis e organizações de intelectuais, era palco do intenso debate que ocupava as mentes e as vidas da intelligentzia russa. Em 1863, treze estudantes liderados por Ivan Kramskoi abandonaram a instituição e formaram a “Associação Livre dos Artistas”. Eles rejeitavam os modelos acadêmicos, as regras e convenções da técnica ensinada naquela escola, importados da Academia Francesa. Para eles, a pintura que se ensinava lá nada tinha a ver com a realidade russa. Era o efeito da luta ideológica entre Eslavófilos e Ocidentalistas, assim como da contenda entre as ideias iluministas e românticas. E, obviamente, fruto também do ideário socialista que já havia alcançado a intelectualidade naqueles tempos.
"Autorretrato com cachimbo",
Gustave Courbet, 1849
Nesse mesmo período, em vários países europeus a pintura realista começava a abrir caminho para formas mais livres de pintura, que desaguou no movimento Impressionista. Na França, Gustave Courbet inaugurou sua exposição individual intitulada “Realismo”, como protesto contra a arte acadêmica exposta no Salão de Outono. Nos principais países europeus, pintores de alto nível técnico começaram a se destacar nas artes, como referências da pintura realista: Adolph Menzel, na Alemanha; Giovanni Boldini e os “Macchiaioli” na Itália; Mariano Fortuny, na Espanha; Anders Zorn, na Suécia; Camille Corot, Courbet e os Impressionistas, na França; John Singer Sargent, na Inglaterra...
Essa movimentação toda causava furor artístico entre aqueles pintores russos, que pensavam: se tinham que se inspirar em algum modelo europeu, era nesses realistas. Em especial citavam Courbet, Menzel, Fortuny, Zorn… O Grupo dos Treze resolveu então sair a campo, viajando pelo interior russo, levando consigo suas exposições e captando temas para seus quadros a partir da vida real que encontravam. Passaram a se intitular “Os Itinerantes”. Entre eles estava um dos mais importantes pintores realistas russos do século XIX, Ilya Repin.
Seu quadro mais famoso, “Os rebocadores do Volga”, segundo ele mesmo afirmou era a primeira e mais poderosa voz de toda a Rússia, do seu povo oprimido, cujo grito era reconhecido em cada canto onde se falava o idioma russo. Esse quadro se tornou um dos principais símbolos da opressão czarista sobre o povo.
Os Itinerantes” retratavam a vida dos camponeses pobres, mas também a beleza da paisagem rural, o dia a dia das pessoas, seu folclore, a força do caráter do homem e mulher russos. A presença do grupo na cena cultural era uma clara condenação do autoritarismo czarista e acabou sendo um meio de divulgação dos ideais democráticos, além de permitir uma educação estética para a população que podia ver de perto seu trabalho artístico.


"Os rebocadores do Volga", Ilya Repin

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CONTINUA NA PRÓXIMA SEMANA
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terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Os ícones e a querela iconoclasta


Fragmento de antiga pintura do século III d.C., sobre a Anunciação.
Estas foram as primeiras imagens pintadas por cristãos primitivos. Roma, Itália
As origens dos ícones remontam às primeiras expressões de pinturas religiosas dos séculos III e IV, especialmente no Egito e na Palestina. Esses primeiros cristãos inauguraram a linguagem artística, com as formas, as técnicas e os símbolos da cultura em que viviam. No Ocidente, as primeiras imagens iconográficas surgiram nos arredores de Roma, nas catacumbas. As cenas pintadas estavam relacionadas à vida de Cristo.

A imagem de Maria surgiu muito tempo depois. É bom lembrar que as sociedades pagãs cultuavam em todo o mundo antigo o símbolo da Deusa-Mãe; isso, entre outras coisas, foi a causa de os sacerdotes cristãos, com o fito de atrair fiéis e ao mesmo tempo combater o paganismo, terem elevado a imagem de Maria, mãe de Jesus, ao patamar mais alto em suas igrejas. O culto à Virgem se espalhou por todo o mundo ocidental e parte do oriental, influenciando grandemente nossa cultura, engendrando símbolos, enraizando costumes.

Antigo ícone sobre o nascimento de Cristo.
Coleção do British Museum de Londres
Os ícones alcançaram tamanha importância no Império Bizantino, que foram a causa de uma verdadeira guerra civil em Bizâncio, período que entrou para a história sob o título de “Querela Iconoclasta” ou “Querela das Imagens”. Os sacerdotes de mosteiros e igrejas, onde se reuniam a maior quantidade dos ícones, acabaram adquirindo grande poder sobre a fé do povo, e esses padres acumulavam mais riquezas que o próprio imperador. Mas eram tempos também difíceis em Constantinopla, frequentemente ameaçada de invasão pelos árabes.

Leão III, no século VIII, resolveu combater e eliminar completamente a prática relacionada à veneração de ícones. O imperador, diante das ameaças de invasões árabes em seu território, e sabedor do repúdio da religião islâmica ao culto de imagens, resolveu em um sermão convencer seu povo da inutilidade do culto aos ícones. Seu primeiro gesto foi enviar um grupo de soldados para destruir uma imagem de Cristo que se encontrava sobre uma porta de bronze na entrada principal do palácio. Esta imagem tinha grande popularidade e a reação do povo foi imediata: todos partiram para cima dos soldados, que foram linchados, e a isso se seguiu uma batalha entre Grécia e Constantinopla. Os gregos não aceitavam a destruição de seus ícones sagrados…

Estava criada a divisão entre Iconoclastas (quebradores de ícones, literalmente) e os Iconófilos (amantes das imagens). Os primeiros tiveram o apoio de judeus e muçulmanos.

São Cyril Belozerski.
Coleção do British Museum de Londres
O cristianismo, em seus primórdios, evitava o culto das imagens, pois havia o perigo da idolatria, coisa já prevista em vários trechos do Antigo Testamento. Mas sobretudo no Oriente, os cristãos passaram a utilizar-se de imagens - pintadas ou esculpidas - como adorno e ilustração dos textos sagrados. Em seguida, essas imagens passaram a ser reverenciadas. Surgiram símbolos e figuras que lembravam os mistérios do cristianismo. Artistas começaram a pintar e esculpir imagens de Jesus como pastor ou como pescador, ou ilustrando as parábolas dos Evangelhos. Era uma forma, para o povo analfabeto, de conhecer em imagens as histórias da Bíblia.

O auge do trabalho dos artistas iconográficos se deu nos séculos IV e V, com o apoio da hierarquia da Igreja. Eles ilustravam as histórias da Bíblia e decoravam templos e mosteiros com imagens do “Cristo Pantocrator” (palavra grega que significa “Todo-poderoso”, “Onipotente”) e dos santos cristãos. Foi no Império Bizantino onde a prática da iconografia alcançou uma exuberância muito grande. As imagens eram pintadas em Têmpera, mas também se usavam lâminas de ouro e incrustavam-se pedras preciosas. O culto a elas cresceu em importância e se popularizou de tal forma entre os cristãos ortodoxos, que todos queriam saudar e beijar essas representações da divindade.

Quando a Rússia incorporou a prática da Religião Ortodoxa em seu território - oficialmente inaugurada pelo príncipe Vladimir no século IX - pintores de ícones de Constantinopla foram chamados para pintar em igrejas e mosteiros que começaram a surgir em Kiev, Vladimir, Zvenirogod, e depois Moscou. Foi lá que surgiram as Iconostases, paredes inteiras contendo ícones, que fica entre o altar e o espaço onde se reúnem os fiéis.

"Mãe de Deus"
Coleção do British Museum de Londres
Mas no século V também havia começado o costume de acender velas junto aos ícones, nas igrejas ou em casa, pois toda família cristã tinha o seu próprio altar. Acendiam-se incensos, se beijava as imagens. Dizia-se naquele tempo que quando se beijava um ícone, beijava o próprio santo representado. Essa prática começou a surgir entre o povo, segundo os estudiosos, e somente depois é que os Teólogos passaram a buscar justificação, quando não corrigiam essas práticas. Como é de se supor, o povo nem sempre fazia muita distinção entre “veneração” e “adoração” e as narrativas de graças alcançadas e mesmo milagres eram descritos, relacionados a essas imagens. Os monges assumiram também essas crenças, que disseminavam ainda mais, com o fim de aumentar o número - e a fé - de seus fiéis.

Desta forma, alcançaram grande poder e com isso atraíram a violenta perseguição ao culto de imagens que durou mais de um século. A fundamentação teórica vinha de vários lados: os judeus citavam o livro do Êxodo no qual Deus teria proibido a fabricação de imagens; os muçulmanos citavam o Alcorão em cujo texto Maomé teria abominado esse tipo de culto; dentro da própria igreja, discussões consideradas heréticas esquentavam o clima entre os chamados Nestorianos, que insistiam na separação das naturezas humanas e divinas de Jesus, e os Monofisistas, que defendiam que havia uma união entre Jesus homem e Deus. Essas lutas ideológicas acabaram por também influenciar o movimento iconoclasta.

O Império Bizantino estava sob ameaça do islamismo que, além de outros interesses, repudiava as práticas religiosas ortodoxas. O imperador Leão III (717-741), de origem síria, conhecia as disputas intelectuais dos heréticos, além da religião islâmica. Os bizantinos, assim como os gregos, gostavam de imagens, enquanto que seus oponentes queriam uma espiritualidade pura e jamais representavam seres vivos. A arte islâmica era feita de figuras simbólicas abstratas, em especial geométricas, e com elas decoravam suas mesquitas.

"São Jorge em luta contra o dragão".
Coleção do British Museum de Londres
Leão III começou então, a partir de 724, uma campanha contra as imagens, ordenando que todas fossem destruídas. Os bispos ortodoxos reagiram e tiveram o apoio do Papa católico Gregório II que condenou a iconoclastia de Leão III. Mas a perseguição continuou sob as ordens deste imperador. No Concílio Romano de 731, o papa Gregório III confirmou o apoio ao uso de imagens como parte do culto cristão.

Com a morte de Leão III, assume seu filho Constantino V, que continuou a campanha iconoclasta do pai. Em 28 de agosto de 753 reuniu numerosos sacerdotes, com o Patriarca que ele tinha escolhido, e reforçou o decreto: as imagens deveriam estar definitivamente proscritas de Bizâncio. Mas os sacerdotes confirmaram o culto à imagem de Maria e dos santos. A reação de Constantino V foi violenta e muitos desses padres foram mortos.

Apesar de toda essa perseguição, nunca se conseguiu abolir definitivamente as imagens religiosas da vida do povo. O próximo imperador, Leão IV, também era iconoclasta mas em seu governo não houve mais perseguição aos ícones. Sua esposa, Irene, venerava imagens ela própria e, assim que o marido morreu, em 780, ela tentou acabar com a iconoclastia. No Concílio Ecumênico de 787, realizado em Niceia, os iconoclastas foram condenados. Estava restabelecida a união das igrejas católica e ortodoxa, o culto das imagens e a veneração dos santos.

Em 843 se restabeleceu a prática do culto às imagens no Oriente e a arte sacra voltou a receber um impulso excepcional, que durante muitos séculos deu trabalho e ganho de vida para centenas de artistas. São Tomás de Aquino, o filósofo da igreja católica, via na imagem uma função tripla: como instrumento de instrução do povo analfabeto, como modo de contemplar os mistérios sagrados e como estímulo para a fé. Para os novos teólogos, a Natureza era uma espécie de reflexo de Deus, pois o homem havia sido criado “à imagem e semelhança” dele. No Evangelho, há um trecho em que Jesus teria dito: “hoje vemos por um espelho e de forma velada, mas depois veremos face a face”...

Todos esses eram bons argumentos para que voltasse a prática do uso de ícones. Os teólogos ortodoxos defendiam a representação em imagens, como se fossem a própria encarnação de Deus. Para eles, o ícone é uma pintura sagrada: “quanto o Evangelho expressa com a palavra, o ícone proclama com as cores e o torna presente”, diziam eles.

Mas iconoclastas e não-iconoclastas se sucediam no poder, como Leão X, o armênio, que voltou a perseguir os adoradores de imagens. Isso fazia um certo sentido: o Imperador via seu poder posto em dúvida se o povo dava às imagens de santos muito mais poder que a ele… Nessa época também surgia a novidade do poder absoluto do Papa de Roma em questões de fé, coisa que representou um motivo a mais para a divisão entre as igrejas católica e ortodoxa.

"São Nicolau, trabalhador maravilhoso"
Coleção do British Museum de Londres
Em 1054 ocorreu o famoso “Cisma” que separou as igrejas Católica romana e a Ortodoxa, quando os líderes das igrejas de Constantinopla e de Roma se excomungaram mutuamente. Desta forma, a igreja católica começou a se afastar também desta prática de arte sacra, adotando o estilo de imagens mais tradicional. Até que surgiu a pintura do italiano Giotto (1267-1337), com a qual se reinicia um ciclo de arte religiosa, mas não sagrada. Seus santos pareciam-se a seres humanos comuns e com isso Giotto ia abrindo espaço para a visão humanista do mundo que marcou depois o Renascimento. E também foi nascendo a pintura de imagens na forma como chegou a nós, ou seja, sem nenhum caráter sagrado, religioso.

Mas, ainda nos dias atuais, os ícones ocupam um lugar importante nos países de cristianismo ortodoxo como a Rússia. Eles se encontram em templos e mosteiros, mas também podem ser encontrados ao longo de estradas, nos cruzamentos, nos pórticos e entradas de povoados, nas residências. Neste caso, está sempre localizado na entrada da casa e acompanha o fiel durante toda sua vida. Em alguns lugares, os ortodoxos recebem um ícone ao serem batizados e um outro no dia de seu casamento. Com eles, os pais abençoam os filhos que partem, pedem saúde, longa vida, prosperidade… O ícone, para a cultura ortodoxa, é uma espécie de “presença” da divindade.

Nele, a luz é irradiada do seu próprio fundo, feito com lâminas finas de ouro. No início, não havia paisagens, nem plantas, nem animais, apenas a imagem do santo. Com o passar do tempo, as pinturas passaram a ter mais profundidade, com a técnica renascentista do sfumato, e as paisagens começaram a servir de background para as figuras. Mas a ideia original de que o ícone representava uma espécie de epifania do invisível, ainda continua valendo. Ele faz com que a visão tenha uma certa primazia em relação à palavra, já que capta a essência da divindade, a qual as palavras são pobres para descrever…

Por isso, na Rússia ortodoxa, a pintura do ícone não tem o mesmo significado que uma pintura para nós ocidentais. Para eles, são representações sagradas do mundo espiritual. Um dos pensadores ortodoxos, o santo João Damasceno (675-749), nascido em Damasco, na Síria, disse:

“O que é um livro para os que sabem ler, é uma imagem para os que não lêem. O que palavras ensinam ao ouvido, as imagens ensinam aos olhos.”

Toda essa religiosidade peculiar da cultura russa ortodoxa pode ser encontrada de forma muito corrente nos romances de Fiodor Dostoievsky e nos de Tolstoi. Foi em busca dela que, em fins do século XIX, o pintor Vassili Kandinsky resolveu percorrer os povoados russos para observar estas pinturas dentro das casas dos camponeses, que ele transformou em diversos quadros. Foi essa religiosidade popular, com toda a cultura que se criou em torno dela, que levou artistas e intelectuais russos do século XIX e começo do XX a buscar as raízes culturais de seu povo, que expressaram em obras de arte que vão da pintura ao teatro, da música à poesia...

"Subida gloriosa aos céus do Profeta Elias".
Coleção do British Museum de Londres

Tríptico sobre a vida de Maria.
Coleção do British Museum de Londres
Cristo Pantocrator, rodeado por vários santos.
Coleção do British Museum de Londres
16 cenas sobre a vida de São Bonifácio.
Coleção do British Museum de Londres
São Jorge e o dragão.
Coleção do British Museum de Londres

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

Andrei Rublev e os ícones russos



"A Trindade", Andrei Rublev, Galeria Tretyakov de Moscou

Fome, doenças, invasões de tártaros e mongóis foram uma constante na vida do povo russo na mesma época em que viveu o monge pintor de ícones, Andrei Rublev. O mais famoso pintor de ícones da história da Igreja Ortodoxa da Rússia é conhecido internacionalmente, especialmente após o lançamento, em 1966, do filme "Andrei Rublev", do diretor de cinema também russo Andrei Tarkovski.

Mas pouco se sabe sobre a vida de um dos mais famosos pintores russos, a não ser que nasceu na década de 1360 e faleceu em Moscou em 1430. Tarkovsi, em seu filme de três horas de duração, mostra como deveria ser a vida naqueles tempos do século XIV, na Rússia de Rublev… A religião oficial já era a Ortoxoda, originária diretamente dos áureos tempos de Bizâncio, e muito das práticas religiosas foram absorvidas diretamente dos monastérios de Constantinopla. Os primeiros pintores de ícones presentes em solo russo eram de origem bizantina. Com eles, os monges russos aprenderam a técnica da pintura de ícones, prática que atravessou toda a história daquele país, é parte profunda de sua cultura e ainda hoje é matéria ensinada nas escolas de arte, como em São Petersburgo.

OS ÍCONES

Fragmento de um  dos ícones
pintados por Rublev
O que é um ícone? Aqui nesta página, temos alguns exemplos de ícones pintados, mas há vasto material de pesquisa de imagens disponíveis na web, além de muitos livros publicados. O ícone que inicia este artigo (acima) “A Trindade”, pintado por Andrei Rublev é um dos mais importantes e dos mais conhecidos.

Na concepção da ortodoxia russa, o ícone (pintura da divindade ou de santos) é muito mais do que uma simples pintura, como ocorre na arte ocidental. Mais do que uma representação figurativa, o ícone era a incorporação mesma da energia da divindade feita pintura, uma espécie de Teofania (Revelação) do divino. Ou como uma janela que se abre para o céu, através da qual se pode contemplar o mundo espiritual, como me explicou há muitos anos atrás um monge ortodoxo aqui em São Paulo. Alguma coisa similar a isso, encontramos na tradição ocidental católica com as relíquias dos santos (pedaços de tecidos, pertences ou mesmo parte dos corpos de santos, como pedaços da cruz onde Cristo teria sido crucificado, ou mesmo o Santo Sudário, lençol onde estaria impressa a imagem de Jesus).

Em todo o território russo, os ícones fazem parte da vida e da cultura de sua população. Há ícones em todo lugar, nas paredes das casas, nos relicários domésticos… Os cristãos ortodoxos veneram seus ícones e persignam-se (fazem o sinal da cruz) diante deles.

Na história da iconografia russa encontramos a informação de que originalmente os monges foram os primeiros pintores de ícones. Eles jejuavam e oravam durante muitos dias antes de começar a pintar as faces de santos e anjos. Dizia-se que a mão do “Espírito Santo” é que movia o pincel do artista, num momento de completa união do humano com a divindade, numa Epifania de fato. Havia numerosas exigências para que um pintor se pusesse à disposição para este trabalho: oração, jejum, penitências. Pois o artista era apenas um instrumento através do qual se manifestava o Sublime. Além de se submeter àquelas regras, o pintor recebia a bênção de outro monge e pedia ao Espírito Santo que lhe inspirasse em sua pintura, que guiasse sua mão, que “benza e bendiga este ícone para que todos quantos se aproximem dele com veneração, obtenham saúde, santificação e bênçãos". Uma das orações era:

“Oh Tú, Dono Divino de tudo o que existe
Ilumina e dirige a alma, o coração e o espírito de teu servidor
Guie minhas mãos para que possa representar digna e perfeitamente
a Tua imagem, a de Tua Santa Mãe e a de todos os Santos.
Para glória, alegria e embelezamento de Tua Santa Igreja.”

Esta característica do ícone faz com que, na tradição russa, esta imagem não seja pura e unicamente uma pintura, mas um objeto de contemplação. Neste trabalho, não se dava importância alguma ao indivíduo que pintava. Sua personalidade e sua subjetividade estavam submetidas às fórmulas e técnicas que ainda são seguidas nos dias atuais, quando se pintam ícones quase da mesma forma que no século VIII.

"Cristo Pantocrator", ícone do séc. XIII
Os ícones não poderiam ser uma representação realista, uma vez que estava se desenhando ao próprio Deus e seus santos, e não à Natureza ela mesma. Enquanto observamos a Natureza (o Real) com nossos olhos físicos, não se dá o mesmo com a “realidade” espiritual, que se vê com os “olhos” da alma. Nos ícones, a figuras sempre são vistas de frente, com reduzidíssima profundidade, ou seja, pintadas de forma plana, sem muita expressão que as humanizaria e lhes tiraria o caráter sagrado.

O fundo dos ícones devem ser dourados, feitos com lâminas muito finas de ouro que se aplicam sobre o suporte. Com isso, não há paisagem no fundo, mas essa luminosidade que o ouro reflete. Essa forma de pintar irá influenciar toda a arte bizantina até a chegada do Renascimento, que descobriu a paisagem.

Após o Renascimento, mesmo na Rússia se vêem os efeitos das novas formas de pintar, que a partir de então muda um pouco os ícones russos, no sentido de que foram incluídas paisagens nas pinturas e muitos pintores de ícones aplicaram sobre suas figuras a técnica do sfumato, que até então não acontecia. O sfumato dá ideia de tridimensionalidade ao quadro, de profundidade. Imita a Natureza, coisa que nas regras iniciais da pintura de ícones não era permitido.

Fragmento de pintura da
Catedral da Anunciação, séc. XVIII
A pintura era feita sobre tábuas de madeira levemente curvadas para dentro e cobertas com uma tela de tecido onde se aplicava uma camada de gesso. A pintura era feita em têmpera, técnica onde se misturam os pigmentos com ovos. Também se adicionavam materiais e pedras preciosas para alguns detalhes. Além disso, o que é uma característica da pintura de ícones daquele período, havia o uso da perspectiva inversa, onde as figuras em primeiro plano podem ser menores do que as dos planos subsequentes. Neste caso, o Ponto de Fuga está invertido, encontra-se no olho do próprio espectador, pois o ícone é um “lugar” intermediário entre o espectador e a divindade. A perspectiva inversa exige que os pés das figuras não estejam apoiados no solo, fiquem como se flutuassem no quadro, o que dá ainda mais o caráter espiritual a elas. Além disso, se o Ponto de Fuga se encontra no olho do espectador, que contempla através do ícone o mundo espiritual, isto também traz uma mensagem: o espectador é muitíssimo pequeno diante da grandiosidade daquele mundo contemplado.

A Perspectiva Inversa aparece também nas pinturas orientais da China e do Japão e foi objeto de muito estudo, assim como a Perspectiva Ocidental cujos estudos mais inaugurais aconteceram no Renascimento italiano. Para nossa cultura, influenciada pela europeia, a perspectiva inversa cria um certo estranhamento, como se as coisas estivessem fora de lugar e sem proporção. São simplesmente modos de perceber o mundo. Em algum momento traremos aqui alguns estudos sobre o assunto da perspectiva inversa.

Os ícones russos, então, adquiriram muita importância naquele período, de tal forma que acabou gerando uma enorme disputa, causa de batalhas e guerras no Império Bizantino, uma querela que durou do ano 726 ao 843. Foi um período onde se destruiu muitas imagens e muitos ícones. Mas este é um assunto para o próximo artigo, que deixamos em separado, pois essa "Querela Iconoclasta" ainda traz muita reflexão...

ANDREI RUBLEV

Ícone de Andrei Rublev
Como dissemos antes, pouco se sabe da vida do maior pintor de ícones russos, a não ser por informações dispersas e através do próprio filme de Tarkovski, que fez uma vasta pesquisa sobre este artista russo. Sua vida, no entanto, faz parte de crônicas e vidas de santos, já que ele foi canonizado em 1988 e passou a ser chamado de "Santo André Iconográfico", cuja festa se celebra no começo de julho. 

Sabe-se que ele foi famoso por toda a Rússia, conhecido por príncipes e monges, pois ele trabalhou em igrejas e mosteiros de Moscou, Vladimir e Zvenirogod. Em um manuscrito do século XVII, “A lenda dos pintores de ícones”, Andrei Rublev é chamado de santo-pintor. Redescoberto no século XIX, Rublev se tornou uma referência da pintura icônica e tradicional russa. Mesmo no período da Revolução Soviética, seu nome era símbolo da cultura antiga russa. Em 1960, foram celebrados os 600 anos de seu nascimento e antes disso foi criado o "Museu de Cultura Antiga Russa Andrei Rublev". 

No tempo em que Rublev viveu, a Rússia passava por terríveis invasões de tártaros e mongóis que, por onde passavam, destruíam cidades, saqueavam igrejas e mosteiros, levavam pessoas cativas. Ao mesmo tempo, uma guerra sangrenta entre Moscou e Tver tornou muito perigosa a vida entre 1364 e 1366. Moscou foi incendiada em 1365 e em 1638 foi atacada pelos lituanos. Além disso, a partir de 1371 a fome assolou a cidade.

"Cristo Pantocrator",
ícone mais recente, pós-renascentista
Em meio a esse caos, Andrei foi crescendo e se desenvolvendo como pintor. Infelizmente nada se sabe sobre sua família, nem o ambiente do qual ele veio. Mas seu sobrenome parece sugerir sua origem, segundo estudiosos. Em primeiro lugar, somente os nobres, naqueles tempos, tinham um sobrenome. Em segundo, ele indica um ofício, que pode ter sido o do seu pai ou de um antepassado próximo. A palavra Rublev vem de “rubel”, um instrumento para enrolar couro, o que pode indicar que sua família era de curtidores de couro. Também não se sabe com quem Rublev teria aprendido a pintar. A primeira e mais antiga menção ao seu nome se encontra nas crônicas de 1405, onde foi relatado que três monges teriam pintado a Catedral da Anunciação: Teófanes o Grego, Prokhor o Velho e Andrei Rublev. Nesse escrito se dizia que Rublev era um mestre respeitado. Seu nome ter aparecido em terceiro lugar significa que ele era o mais novos dos três.

Provavelmente ele teria feito seus votos monásticos no Monastério da Trindade, como discípulo de Sérgio de Radonezh, futuramente canonizado como São Sérgio. Sobre isso se fala também em manuscritos do século XVIII. Sérgio desempenhou um grande papel no renascimento espiritual da Rússia e foi ele quem teria passado a Andrei Rublev a experiência da oração permanente e do silêncio como prática contemplativa hoje conhecida com o nome de Hesicasmo. Assim, Andrei estava completamente mergulhado em seu mundo como pintor de ícones…

Catedral russa do século XV
Nas crônicas de 1408 ele é mais uma vez citado como o pintor da Catedral de Vladimir, cidade a leste de Moscou, fundada em 1098. Este trabalho, Rublev dividiu com Ikonikov Daniel Cherny, de quem se tornou grande amigo. Daniel pode ter sido grego ou sérvio, e seu apelido era “Preto”. A amizade entre Daniel e Andrei durou até o fim da vida deste. A Catedral de Vladimir havia sido construída no século XII e suas pinturas foram muito prejudicadas com as invasões mongóis. Daniel e Andrei, chamados para renovar as pinturas da igreja, pintaram um “Juízo Final” em suas paredes. Pouco resta destas pinturas, mas seus estudiosos dizem que eles conseguiram transformar o que poderia ser uma cena terrível em um festa de Justiça, onde afirmavam pictoricamente o valor moral do ser humano.

Em meados da década de 1420, Andrei e Daniel Preto trabalharam na pintura da Santíssima Trindade na Catedral do Mosteiro da Trindade. Essas pinturas não sobreviveram, mas somente algumas que fazem parte do iconostasis (local intermediário entre o altar principal e a nave central, onde se reunem diversos ícones). Foi lá que Andrei Rublev pintou seu famoso quadro “A Trindade”, o que foi considerado um feito altíssimo do ponto de vista espiritual, pois apenas um pintor que estivesse profundamente envolvido em sua vida de hesicasta seria capaz de uma tal demanda…

Rublev também era um leitor de livros, coisa rara naquela época. Somente os mosteiros possuíam bibliotecas e seu acesso era restrito aos monges. Rublev também pintou iluminuras nos livros. Além de ícones de madeira, também pintava afrescos.

Os últimos anos de sua vida ocorreram enquanto pintava a Catedral de São Salvador, em Moscou. Foi acometido de uma praga que assolava a cidade desde 1428. Tendo conquistado reconhecimento em vida, coisa incomum para artistas, ele não foi esquecido após sua morte. No século XV o local de seu sepultamento já era lugar de peregrinação. Mas somente em 1988 é que foi oficialmente canonizado e reconhecido como santo russo.

Seu trabalho como artista teve grande reconhecimento fora dos círculos religiosos. Redescoberto no século XIX, era enaltecido como artista da cultura medieval russa. Como aquele que incorpora o Sublime e a Beleza Espiritual, assim como o potencial humano de alcançar altos níveis intelectuais. Sua criatividade representa um dos pináculos da cultura russa em toda a sua história. Grande parte de seu trabalho se encontra exposto nos salões da Galeria Tretyakov de Moscou, onde desperta a atenção de multidões de visitantes de todas as origens.

Cartaz do filme de Andrei Tarkovsky