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segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Burton Silverman: em busca do humano - II

A pintura de Burton Silverman é a pintura da "vida real", caminho que ele escolheu e segue há quase oito décadas. Seu primeiro retrato foi pintado aos 13 anos de idade, era o de um camponês. Nesta linha, ele segue até hoje em suas representações de trabalhadores, ou mesmo de párias ou de outros indivíduos que fazem parte da sociedade. Com 87 anos de idade, o artista se realiza na busca do que é real e genuíno em sua arte.

Ao longo dos anos, Silverman tem orientado e inspirado muita gente, seja com seu ensino, seja com sua pintura. Em seu ateliê em Manhattan, desde 1971 ele tem recebido centenas de aprendizes, seja em cursos regulares, seja em workshops. Ao mesmo tempo, deu aula na Liga dos Estudantes. Com quase 80 anos de atividade no mundo da arte de Nova York - que passou pelos modismos do expressionismo abstrato, da pop-art, do foto-realismo ao pós-modernismo - ele interagiu com figuras importantes de todos os lados. Silverman é um verdadeira fonte de história da arte nos EUA dos últimos 80 anos. Além disso, é sempre franco ao dar suas opiniões e é sempre alguém a quem muitos artistas podem recorrer para obter uma crítica sincera de seu trabalho ou do de outros artistas.

Mesmo tendo se formado em arte e música em boas escolas de Nova York, assim como na Columbia University, Silverman é principalmente autodidata. Ele diz sempre que o aprendizado acadêmico trouxe-lhe mais formação em história da arte do que qualquer outra coisa. E que aprendeu mais com seus dois companheiros e amigos de vida e ofício (que ele conheceu no colégio) Harvey Dinnerstein e Dan Schwartz. Silverman diz que a melhor maneira de aprender pintura é “experimentando, praticando e pintando". Ele e seus amigos se perguntavam como os grandes artistas do passado fizeram o que fizeram. “Os museus se tornaram a nossa sala de aula”, diz ele. Iam lá, analisavam as telas, as técnicas usadas e em seguida desenhavam e pintavam continuamente. “Até que fomos capazes de descobrir alguma coisa”.

Foi com Dinnerstein e Schwartz que ele criou seu movimento e manifesto “Visão Realista”. Eles lançaram esse Manifesto Realista em meados da década de 1950 junto com David Levine, Aaron Shikler e mais outros três artistas, assim como fizeram uma exposição de seus trabalhos. O manifesto falava da importância da Arte Realista em contraposição ao Expressionismo Abstrato que crescia muito na época, especialmente após as obras de Jackson Pollock. Estes artistas faziam um esforço consciente para criar um contraponto intelectual a estas novidades modernistas. Fizeram várias exposições e protestos em defesa do realismo.

A respeito, Silverman diz que ele e seus companheiros sempre se sentiram em desacordo com os movimentos predominantes no dia. "Desde Jackson Pollock em 1950, passando pela arte da década de 1960, 1980, 1990... Eu nunca estive esteticamente relacionado a qualquer desses movimentos", admitiu. "Eu sempre estive meio que entre as fendas. E, para ser honesto, ainda me sinto fora do que ocorre atualmente. Não de forma negativa ou com raiva, mas apenas no sentido de que eu realmente não me ligo a um monte de outros pintores que estão fazendo outros tipos de arte”. Na verdade, Silverman aspira que as gerações mais jovens de realistas alcancem um alto padrão e sejam conscientes da história da arte do passado recente, tanto do realismo como da tradição histórica da qual ele se originou.

Parte das críticas de Burton Silverman sobre a chamada “arte contemporânea” diz respeito, “muitas vezes” à falta de conteúdo ou de convicção dos artistas. Ele diz que há exceções significativas, mas em geral ele vê “uma proliferação de demonstração de habilidade técnica e de aumento do tamanho de obras que não têm conteúdo para sustentá-las", disse ele.

Se a pessoa leva em conta critérios duradouros de excelência, vê que “a grande arte vai além de quaisquer regras. Eu percebo que para uma obra de arte sobreviver ao longo do tempo, desde os primórdios da história da arte até o presente, há algo que é inevitável: uma qualidade que toca em nossas raízes humanas e em nossos anseios históricos para algum tipo de espiritualidade que chamamos de 'belo'. Mas não acho que 'beleza' deve ser o objetivo da arte, apesar do apelo para isso nos dias de hoje”.

Ele dá um exemplo: veja a diferença entre dois artistas pintando um retrato. Um deles só registra e se preocupa exatamente em que o rosto se pareça com a pessoa. O outro pinta um rosto onde se pode ler, através dele, o que é a vida dessa pessoa. Ou a diferença entre uma pintura feita a partir de um cartão postal de um lugar bonito, contra um artista que pinta o lugar em que ele vive, ou mesmo viveu e sonhou, mas que "possui" como parte de sua experiência diária. “Como fizeram Innes ou Constable ou Wyeth”, aponta Silverman.

Herb Steinberg pintado por Silverman
Não é o que se vê hoje na arte do momento. Crítico à respeito, Burton Silverman mostra como é difícil um debate deste tema que não caia na passionalidade: “Sempre recai sobre uma defesa emocional de posição. Então, não é racional nunca. Por quê? Porque toda a arte chamada de contemporânea, modernista, realmente é, em grande parte, emocional e subjetiva. As ideias podem até infiltrar-se dentro dela, mas a maioria das discussões acabam num beco sem saída e voltam a cair na questão de gosto, ou então naquilo ‘que move’ a pessoa individualmente."

Ele diz que nos primeiros anos de sua vida como pintor, lhe foi solicitado que escrevesse em defesa da arte realista em oposição à suposta superioridade da arte abstrata. “A base filosófica para a arte abstrata foi dada de Roger Fry a Clement Greenberg, dizendo que queriam "purificar" a arte de seu apego ao mundo real, e isolar a beleza do contexto real. Eu nunca entendi o que queriam dizer com isso: por que as imagens seriam "impuras" ou tinham uma natureza contaminante? Eu me senti pessoalmente atingido por essas ideias! Parecia um ataque à validade da minha arte! Mais recentemente, no entanto, eu realmente abandonei essa polêmica cansativa “Realismo versus Arte Modernista”. Eu não posso simplesmente rechaçar as pessoas que pintam abstratamente, nem quero abolir o modernismo, mesmo se pudesse. Isso aí já é um fato inescapável da história da arte, e da arte que satisfez um monte de gente. Mas às vezes é difícil ficar quieto quando a própria ideia de realismo é constantemente ridicularizada na imprensa da arte do mainstream”.

Questionado sobre a também velha polaridade forma e conteúdo de sua obra, Silverman disse que sempre busca um equilíbrio entre estas duas coisas. “Eu quero ligar o corpo e a alma, a forma e o conteúdo na minha arte”.

Herb Steinberg,
segundo retrato feito por Silverman
Mesmo no auge do domínio da arte abstrata nos Estados Unidos, diz Silverman que muitos artistas figurativos como ele estavam produzindo coisas muito interessantes, como os pintores Andrew Wyeth e o “recentemente canonizado Edward Hopper”. Não tinha muita gente “olhando para o trabalho que estávamos fazendo”. Mesmo assim houve alguns críticos do antigo “New York Times” na década de 1940, como “Howard Devree, continua Silverman, que escreveu coisas terríveis mas de forma simpática sobre meu trabalho”. Alguns poucos críticos gostavam dessa ideia de haver esses ateliês pequenos, quase invisíveis, onde em pequena escala, agradáveis ​​pinturas estavam sendo feitas. “Isso mudou drasticamente depois do surgimento das imensas telas de Jackson Pollock (artista abstrato). As pinturas em galerias tornaram-se enormes”.

Ainda sobre a experiência do movimento “Visão Realista” do qual participou com seus amigos, Burton Silverman lembra que as pinturas nem eram muito “boas”, mas parecia ser mais interessante o fato de que mantinham a tradição pictórica do século XIX. Embora usassem os mesmos recursos pictóricos e realistas “foi muito diferente da pintura do século XIX. Nós pintamos as pessoas em nosso mundo, em nossas vidas”, observa ele.

Perguntado se guarda algum ressentimento por sua arte não ser a defendida pelo mainstream, Silverman diz que “não, pelo menos não mais”. De alguma forma ele atraiu seu público também sem precisar recorrer aos recursos dos artistas “contemporâneos” que precisam chocar para atingir a crítica e dar-lhe algum assunto para escrever. “Eu tenho feito meu trabalho, porque eu pinto o que me comove. Atualmente tenho acesso crescente que vai além das galerias, a um museu ou dois, onde meu trabalho pode ser julgado por seus méritos. Agrada-me ainda mais, não pelo prestígio de ter algumas exposições em museus, mas porque é minha visão de mundo que está sendo vista. E ainda com a vantagem de estar livre da necessidade de vender minhas obras”.

- “Há um princípio de prazer em toda a arte e, para mim, uma coisa que é extremamente importante é o elemento humano presente nela”. E complementa: ”Estou fazendo algo sobre o mundo em que vivo.”

Perguntado sobre os artistas que mais admira, Silverman responde que são poucos: Velázquez e Degas, Eakins e Sargent. “Rembrandt, é claro. Holbein, Hals, van Eyck, Vermeer, Caravaggio e Lautrec”. E Ingres. Mas com diferente valor e importância em cada fase de sua vida e formação.

Como pintor retratista, ele tem recebido muitas encomendas ao longo de sua carreira. Trabalha com aquarela, óleo, pastel, carvão ou simplesmente lápis-grafite. Já participou de inúmeras exposições coletivas e mais de 30 exposições individuais, nos EUA e no Exterior. Já recebeu 32 prêmios e menções honrosas por seu trabalho. Suas pinturas estão presentes em mais de 20 coleções públicas, como o Museu do Brooklyn, o Museu de Arte de Filadélfia, o Museu New Britain, o Museu Casa da Moeda, o Denver Art Museum, o Museu Nacional de Arte Americana, o Museu de Arte Delaware, o Columbus Museum e a National Portrait Gallery. Em 1999, ele recebeu o Prêmio “John Singer Sargent” da Sociedade Americana de Artistas Retratistas.

Ele diz que seu modo de pintar mudou um pouco ao longo dos anos, mas a motivação continua a mesma. "Se  olhar para trás, as pinturas que fiz há 20 ou 30 anos, todas elas são resultado da minha observação pessoal. Ou seja, me deparo com algo que provoca em mim algum sentido ou importância, mesmo que nem sempre eu saiba porquê. Ou fui atraído por alguém - não porque ele ou ela tinham qualidades atrativas por si - ou porque eu estava intencionalmente tentando retratar um certo status social, ou porque havia talvez algo inexplicavelmente especial sobre a sua humanidade."
O pedreiro, Silverman, óleo sobre tela

Um exemplo é a pintura de um pedreiro, um trabalhador sem camisa, com a barriga de quem bebe cerveja e uma expressão que revela seus muitos anos de trabalho. Ou a de uma mulher que Silverman conheceu durante seus verões passados ​na Itália, quando ele tinha uns 40 anos de idade e que lhe lembrou sua própria avó. Ou de duas pinturas que Silverman fez de seu amigo, artista como ele, Herb Steinberg: a primeira quando o amigo tinha por volta de 20 anos, e a outra feita muitos anos mais tarde, quando estava na casa dos 60 anos, pouco antes de morrer. Ele diz que o primeiro retrato do amigo é “um mau exemplo de minha pintura" e ele muitas vezes pensou em jogar fora. Mas se diz feliz por não ter feito isso “porque agora eu posso ver de onde vim. E mesmo assim, havia algo muito real sobre esta pessoa retratada”. Ele mais tarde percebeu a importância de incluir o cigarro nas mãos do amigo em ambos os retratos. "Pois ele constantemente estava com um cigarro na mão. Era a sua proteção contra o mundo: contra suas hostilidades, seus medos e suas ambiguidades. Infelizmente, o cigarro também acabou levando-o à morte."

Assim como Antonio López (pintor espanhol realista - leia aqui sobre ele), Silverman também evita pintar a partir de fotografias. Ele diz que tem grande dificuldade de pintar retratos de pessoas ausentes fisicamente porque não dá para observar o espírito e a personalidade dos sujeitos em tempo real. “Eu preciso pintar o ser humano como ele é”.

Em 2004, Silverman pintou um autorretrato, que causou alguma estranheza em alguns. Ele explica que estava apenas respondendo a uma reflexão pessoal sobre sua vida. "Eu pintei este autorretrato três anos depois de ter tido um ataque cardíaco. Eu estava certo dia entrando em meu ateliê, em um dia extremamente quente de verão, e vi meu reflexo na porta de vidro. Daí pensei: meu Deus, eu ainda estou vivo! E não só estou ainda vivo, como ainda estou pintando quadros! Eu preciso comemorar isso! Eu estava, na verdade, sobrevivendo em dois níveis: no físico e no artístico, no sentido de que as minhas convicções sobre o realismo ainda estavam produzindo pinturas. Eu apareço vulnerável nesse trabalho, quase nu, e acho que é por isso que incomodou. Acho que quando uma obra de arte alcança alguma noção universal, quando não se trata apenas de um momento mas sobre algo mais atemporal, é quando ela causa impacto. Eu uso sempre a jangada do Medusa de Théodore Géricault como exemplo. Foi a resposta de Géricault a um tema que veio à tona na época (o naufrágio de uma fragata que a monarquia francesa restaurada tentou sufocar, ocorrido em 2 de julho de 1816, na costa do Senegal, país africano, quando sobreviventes ficaram à deriva durante 13 dias). Mas tantos anos depois, esta pintura ainda é considerada uma das grandes obras da história da arte. Por quê? Porque as questões temporais podem até ter desaparecido, mas o que resta dela é universalmente compreendido. O tema da sobrevivência fala também sobre esperança, morte, medo, etc. São todas as mesmas emoções que continuamos a enfrentar!"

Em seu ateliê de Manhattan, Silverman tem uma rotina de trabalho que já dura mais de 40 anos. Mora no mesmo endereço, com sua esposa. "O ateliê é um lugar privado, e quando entro aqui, fico meio insano. Falo sozinho, falo com as vozes em minha cabeça. Há uma grande frase de um outro artista que disse algo como ‘quando estou no ateliê, estou com 100 pessoas, mas quando saio de lá saio sozinho'. Para mim, isso significa que mesmo que todos nós somos animais sociais e somos perseguidos pelas exigências dos outros, como  artista quando eu entro em meu estúdio e começo a trabalhar, é só eu e minha pintura. A responsabilidade é toda e só minha."

Com relação aos planos futuros de ensino, Silverman diz que sua contribuição para a instrução pode estar chegando ao fim. "Eu não acho que eu vou ensinar muito mais", admite. "O que tenho ensinado, do ponto de vista técnico, pode ser ensinado por outros. Os métodos de pintura, certos dispositivos pictóricos, são todos muito familiar agora e há inúmeras pessoas ensinando. Isso, a parte técnica, é quase banal. Não tenho certeza de que estou acrescentando algo de útil neste momento. Mas o que não se pode ensinar é como realmente ser um artista - isso faz parte de uma autodescoberta. Toda a arte tem que sair dessa complexidade da personalidade, das experiências, dos afetos, dos aborrecimentos da vida de alguém. Estas são emoções altamente individuais, isso não pode ser ensinado."

A experiência de vida é de fato individual, e cada um tem a sua. Não há como ensinar o sentido que tem uma visão mais humana sobre o mundo a uma pessoa que está muito longe dos acontecimentos do dia a dia, a alguém que vive como se estivesse dentro de uma bolha, avesso a saber o que acontece com as vidas dos outros seres humanos, preso na visão de seu próprio umbigo… Burton Silverman quer dizer exatamente isso, pois ao longo de sua vida esteve sempre ligado aos acontecimentos de seu mundo, fazendo suas representações diretas da vida urbana cotidiana, acompanhando, por exemplo, as movimentações civis em defesa dos direitos humanos por ativistas da década de 1960.

Certamente o legado de Silverman vai sobreviver a ele, pois seu modo de pensar tem inspirado inúmeros alunos e colegas de profissão. Inclusive aqui no Brasil, inclusive eu.


"Signora", pintura feita na Itália





quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Burton Silverman: em busca do humano - I

Silverman em seu ateliê em New York
Burton Silverman é um pintor norte-americano, nascido em 1928, em New York. Seu trabalho tem se concentrado na “paisagem do rosto humano”, como ele mesmo diz. Este artista vive e trabalha em seu ateliê em New York, mantendo-se fiel ao caminho que escolheu seguir na arte: a pintura realista.

Seu pensamento sobre pintura e sobre arte é muito importante nos dias atuais em que a arte realista retoma seu lugar, em especial nos EUA, mas também aqui no Brasil. Hoje, em São Paulo, contamos com cerca de dez ateliês realistas. Neste e no próximo post, trarei algumas destas ideias de Silverman. Foram recolhidas em diversas entrevistas que ele deu nos EUA e em seus livros, vídeos e site.

Biografia

Burton Silverman começou suas primeiras lições de desenho na famosa Liga dos Estudantes de Arte de New York, quando tinha 12 anos de idade. Desde o início, seu talento chamou a atenção dos professores, em especial de Anne Goldthwaite, sua primeira mestra. Com apenas 4 meses de formação, já pode ir participar das aulas com modelo vivo.


Ele diz que começou a se interessar por arte ainda criança, como leitor de livros infantis ilustrados por N.C. Wyeth, nascido em 1882. Mas o grande momento para ele foi ter ido a uma exposição, em 1939, intitulada “500 Anos de Grande Pintura”, montada a partir de obras de coleções europeias e norte-americanas. O menino que cresceu no bairro do Brooklin sofreu um grande impacto com o que pode ver nos três grandes pavilhões desta exposição. Até então ele nunca tinha visto uma pintura de perto, somente reproduções em preto e branco. “Me veio então a ideia de que um artista possui algo de grandioso”, disse ele.

Um outro momento importante foi quando ganhou de um primo dez anos mais velho um livro sobre pintura flamenga. Esse primo “foi lendo e comentando as pinturas e dizendo coisas interessantes sobre arte. Era quase como se ele estivesse me apresentando um projeto de vida”. Foi insinuando que a arte era um caminho que Burton poderia seguir. Já sabia do talento do menino que gostava de desenhar. Em seguida, uma tia também lhe presenteou com o primeiro estojo de tinta a óleo. Silverman tinha 9 anos de idade. “Eu estava destinado a fazer isso, observou ele. Isso afetou minha forma de sentir as coisas. Minha imaginação floresceu.”

Claro que seus pais se preocupavam em como ele iria sobreviver com isto, mas ao mesmo tempo procuravam escolas onde ele pudesse se desenvolver. Foi parar na Escola Superior de Música e Arte, no ensino médio, já em sua adolescência. Lá, Silverman teve contato com outros jovens artistas, todos comprometidos com desenho realista em uma época em que Cézanne (mais modernista) dominava. Lá conheceu seu grande amigo e colega Harvey Dinnerstein. Eram tempos de guerra e nos cadernos de desenhos eles faziam aviões de guerra.


Pintura de Silverman
Após sua formação no ensino médio, Silverman voltou à Liga dos Estudantes de Arte para continuar seu curso de desenho. Ele percebia que necessitava de mais treinamento. Também cursou arte na Universidade de Colúmbia. Disse, numa entrevista feita a Ira Goldberg e publicada no site da Liga dos Estudantes, que teve péssimos professores na faculdade. Era um tipo de treinamento em desenho mais gráfico, e o professor queria que os alunos o seguissem à risca, o que não lhe  agradou muito. 

“Você estuda com alguém que você admira, - disse ele nesta entrevista de 2010 - pelo que ele faz. Eu passo o mesmo agora, que sou professor, mas tento dissuadir as pessoas de querer me imitar. Primeiro de tudo, eu não tenho um estilo. Não há nada que um aluno possa imitar. A única coisa importante que eu posso fazer é levar o aluno a identificar exatamente o que ele quer com a pintura e perguntar: por que você escolheu pintar esta imagem? Posso sugerir certos tipos de correções técnicas como composição, proporção e forma tridimensional. Não é um grande segredo, este método já dura 500 anos”.

Ideias

Com o tempo, Silverman se tornou ilustrador profissional, “num momento em que a ilustração ainda estava florescendo”, diz ele. Neste ofício, ele acabou participando dos projetos de propaganda do Pentágono, durante a Guerra da Coreia (entre 1950-53). Não chegou a ser convocado para a guerra, por ser mais útil como ilustrador. Mas ele se opunha a esta guerra, por motivos políticos. “Eu odiava saber que era parte de alguma máquina de propaganda”, acrescenta, “mas era como eu podia sobreviver”.

Burton Silverman sempre teve simpatia pelo socialismo. “Meu pai era um socialista em sua juventude”, complementa. Se dizendo um idealista, Silverman diz que prefere valores de cooperação aos de competição. E que acredita que o ser humano pode ser mais do que sua luta pela sobrevivência e que pode viver em harmonia. 


“Eu tenho valores muito arraigados. Tenho sido um forte observador do mundo, do comportamento humano, de como as coisas são, e a arte também traz mais insights sobre isso. Eu sempre me senti assim. A arte é algo que nos leva para fora de nós mesmos. Eu acho que é a característica comum de artistas que fizeram a grande arte, a arte que é duradoura. Eu acredito que é uma mistura tanto de sua vida emocional e sua vida cognitiva. Caravaggio, para citar um exemplo, humanizou a narrativa católica sobre Deus pintando pessoas reais do cotidiano. Ele mesmo pintou a Madonna com os pés sujos! Com ele, o ser humano tornou-se central para a história tanto quanto a divindade. Isso aconteceu por que era Caravaggio? Por que ele tinha adquirido de Leonardo e, antes disso, de Giotto? Foi uma matriz de outros artistas fazendo a mesma coisa? Certamente sua arte parecia vir de seu amor pela pintura da vida real, ao invés de desenhar caricaturas da vida, e foi isso que atraiu a admiração dos seus contemporâneos”.

Neste ponto, Silverman diz que lembrou de um episódio de sua vida como artista, quando ele e seus amigos organizaram na década de 1950 o movimento “Visão Realista”, com uma exposição de suas pinturas:

“Víamos a necessidade de reconstruir um ambiente humanista similar. Sonhávamos com um reavivamento da pintura realista na década de 1950, no auge do expressionismo abstrato, da grande explosão modernista. Foi a era de aquário para a arte modernista, derrubando os restos de arte figurativa que ainda sobreviveram no remanso do provincianismo americano”.

Ele e seus amigos se viam como “os únicos presumivelmente realistas ao redor”. Mas - ele observa hoje - deixaram de lado muitos outros artistas que, na época, em seu “egocentrismo” eles julgavam não estar “à altura dos critérios estéticos” dele e de seu grupo. “Nós estávamos tentando criar um novo ambiente, uma nova matriz, nos atrevendo a criar um reavivamento realista”. Mas como este movimento excluía muita gente, acabou não tendo muito efeito.
“Sessenta anos depois, vemos um fenômeno que talvez deva algo aos nossos esforços daquele tempo, observa. Muitas pessoas têm explorado a habilidade recém-descoberta, permissível agora, talvez em parte por causa disso que fizemos com o Visão Realista.” 


Há alguns anos se vê um reavivamento da pintura figurativa e realista. Mas ele fala também da pintura hiper-realista, que também tem atraído muita gente nos EUA. Mas realismo e hiper-realismo têm diferenças enormes. “A arte não é guiada pela mesma construção estética”. Esta nova arte realista - o hiper-realismo - imita a fotografia. Para Silverman, é como se os artistas agora quisessem criar uma arte mais “socialmente válida” e “disponível para o espectador comum” do que os artistas modernistas, cuja arte tem sido indecifrável e desinteressante para a maioria. “Mas com isso um monte dessas pinturas parecem ignorar o amor tradicional ao traçado do pincel”. 

“Eu acredito na veracidade, na verdade inerente à grande arte muito mais porque, embora você possa fotografar tudo tão facilmente, uma fotografia raramente lhe causa uma experiência contemplativa. Não menosprezando as grandes fotografias, mas de alguma forma elas têm uma vida útil mais curta para mim do que pinturas”.

“A fidelidade da fotografia afetou a pintura do retrato terrivelmente. As pessoas agora esperam que os retratos pareçam uma fotografia. A pintura, no entanto, é de outro caráter cultural: ela satisfaz a um senso de tradição chamado de arte. Outras qualidades, que mostram um retrato como a sensação de algo vivo - que a pintura cria magicamente e faz sobreviver o retrato muito além da vida do retratado - podem ter sido perdidas”.

“Mas a fotografia também chamou a atenção de um monte de artistas dos finais do século XIX, artistas academicamente treinados como Jean Dagnanon-Bouveret, que foi, provavelmente, um praticante do uso da fotografia. Mas olhe para suas obras. São claramente pinturas! Esta ideia se espalhou pela Europa e tornou-se o movimento que tem sido chamado de Naturalismo. No entanto, antes de Naturalismo e Realismo serem arrastados pela arte do século XX, eles produziram algumas obras poderosas”.

Courbet utilizadas fotografias. Meissonier fez a grande debandada de cavalos napoleônicos usando fotografias. “Mas o resultado parece uma pintura”, diz Silverman. E acrescenta que também usa a câmera: 

“Mas uso com a ideia de que ela me oferece informações, mas não determina minha visão”. 

E dá um exemplo: 


Pintura de Silverman
“David Hockney escreveu um livro inteiro alegando mostrar a influência do uso das lentes nos últimos 300 anos na pintura. Eu não me importo se Caravaggio usou algum tipo de lente para pintar o menino com o alaúde. Esta pintura é muito mais do que uma fotografia! Hockney também argumentou que Van Eyck não poderia ter pintado o lustre em seu retrato do Casal Arnolfini a partir do mesmo ponto de vista que o próprio casal. Tinha que ser a partir de uma lente de algum tipo. Hockney mesmo recorreu a um matemático para provar isso. Ele despreza o ponto crucial da pintura completamente: o porque ela sobrevive. Hockney despreza, com dolorosa inveja, a ideia de artesanato. Cada uma dessas pessoas sabia desenhar, e o desenho era muito mais importante para eles do que qualquer lente, se é que usaram alguma. Caravaggio foi admirado por seus  contemporâneos, e de fato causava inveja, porque ele pintou diretamente da vida. Sua estética cresceu além do desenho. Eu sou um grande defensor da ideia do valor do artesanato. Ele permite que você seja realmente livre. Eu acredito que a fotografia deve ser submetida a meu desenho. Repito: a câmera é parte do meu equipamento de trabalho, mas não a minha visão”.

Burton Silverman, sempre crítico em relação à arte praticada nos tempos atuais, diz que não é só uma questão de gosto. Para ele, dois fatos que ocorreram no século XX influenciam em muito a arte atual. O primeiro, a I Guerra Mundial, quando a sociedade em geral começou a desmoronar. “A I Guerra causou um devastador acidente nas mentes das pessoas que acreditavam nos valores do velho mundo”. O segundo, continua ele, “a pintura acadêmica tradicional tornou-se apenas uma maldita bobagem. Não pintava sobre a vida das pessoas mais”. Em parte, os Pré-Rafaelitas, mas também Bouguereau, com suas figuras idealizadas com “pinturas de pessoas em túnicas brancas que celebravam festivais reminiscentes da Grécia clássica, o que era imaterial e distante da vida da maioria das pessoas”. Para ele, estes dois eventos contribuíram juntos de uma forma muito dinâmica, para a arte que veio a seguir.


“Esta quebra também foi alimentada por alguns dos impressionistas, que romperam com noções convencionais de modelagem. Ao invés de contínuas pinceladas, suaves e sem intercorrências, eles tinham que dividi-las, alegando que replicavam a forma como a luz é transmitida”. 

“As alardeadas habilidades de Picasso foram superestimadas: suas primeiras pinturas eram ainda bastante comuns e repetitivas de artistas espanhóis contemporâneos. Ele sistematicamente imitava Lautrec e Edvard Munch, antes de virar tudo de ponta-cabeça com Les Demoiselles d'Avignon. Estas são coisas arrogantes para se dizer, mas eu não sou considerado um crítico muito importante. Mas penso isso: há apenas um par de críticas negativas sérias em meio às toneladas de livros escritos sobre Picasso, desde que ele se tornou famoso. Um está em um livro, “Success and Failure of Picasso” por John Berger, um historiador de arte brilhante. O outro, um ensaio de Roger Kimball, por ocasião de uma exposição de Picasso em 1998. Isso é extraordinário”.

“O que estou querendo dizer é que muito da arte modernista realmente não me interessa. Ela não me diz nada sobre o meu mundo, minha experiência, ou o que esse artista sente sobre isso. Há tantos tipos de formas interessantes para pintar; eu não olho na forma como a pintura é feita, se é alla-prima ou em camadas, etc. O que exijo é uma pintura que transforme o meu entendimento do que é ser humano, para se sentir como um ser humano”.


(continua no próximo post)


















segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Ron Mueck e a condição humana


Viver nesta São Paulo dos dias de hoje - com os problemas hiperbólicos de uma metrópole repleta por milhões de pessoas - talvez faça com que todos busquemos formas as mais diversas para viver nossa humanidade, relegada ao segundo plano naqueles dias em que todos lutamos para sobreviver. Nestes dias, milhares de paulistanos buscaram as dezenas de blocos para dançar seu carnaval; outros milhares fugiram, como sempre, para o litoral ou o interior; outros, buscaram os parques, os passeios na avenida Paulista, os bares e restaurantes, as salas de cinema, as salas de teatro, os concertos musicais, as exposições de arte.


Porta do Inferno, Rodin, 1880-1890,
Bronze, 635 x 400 cm
Ontem (22/02) foi o último dia para ver a exposição de esculturas hiperrealistas do australiano Ron Mueck. A mostra bateu todos os recordes de público na Pinacoteca do Estado de São Paulo: 402.119 pessoas passaram por lá, desde 14 de novembro passado. Somente a mostra da “Porta do Inferno” do escultor francês Auguste Rodin, em 2001, tinha recebido tanta gente: 300 mil pessoas! Nesta mostra de Mueck, filas se formaram durante todos os dias. Segundo pesquisa feita pela diretoria de Relações Institucionais da Pinacoteca, 80% dos que visitaram esta exposição que terminou ontem, nunca tinham ido a um museu antes. A entrada era gratuita.


Também em São Paulo, o Museu da Imagem e do Som (MIS) recebeu 410 mil pessoas entre o mês de julho passado e o começo deste ano que foram ver uma outra exposição: “Castelo Rá-Tim-Bum - a exposição”.


Tudo isto quer dizer alguma coisa… Ou muita coisa!

Fiquei pensando, durante todos estes dias, após analisar algumas imagens das esculturas de Ron Mueck: não estamos diante de um trabalho de um artista que nos provoca reflexões sobre a nossa condição humana? Para mim, suas figuras solitárias e pensativas, descritas nos mais mínimos detalhes dos pêlos e rugas do corpo humano, me fazem refletir sobre a existência no mundo em que todos vivemos atualmente. Me faz pensar sobre a condição humana, e a minha. Me traz comparações do tipo: como sou pequena em meio à multidão que, por sua vez, é tão miúda diante do sistema dominante! Mas multidão sempre se torna grande em grandes momentos da história...


Esses seres gigantes ou pequenos de Ron Mueck (sempre fora da escala humana) são reconhecidos por todos, independente de origem geográfica ou cultural, como representações de seres humanos. Isso parece óbvio. Mas será que essa representação universal da humanidade mostra o Homem Universal, independente de contexto e história? Ou cada um que vê de perto essas esculturas - enormes ou pequenas - é capaz de passar além da admiração para a contemplação, e se olhar no espelho e refletir sobre sua própria condição? Por que 402 mil pessoas enfrentaram horas de fila para ver um casal de velhos enormes, pensativos, solitários em seu mundo interior? Ou para ver uma mãe gigante com olhar cansado sendo observada pelo seu bebê pendurado no seu colo? Ou um menino grande como um titã, agachado, como se se protegesse contra alguém ou alguma coisa?


São Paulo, São Paulo… Talvez seja o fato de morar em São Paulo o que me inspire esta interpretação. Aqui não vivemos nós todos como estátuas imensas ou minúsculas, trancadas cada uma dentro do seu próprio mundo, querendo buscar saídas e andando ao encontro das multidões que nos arranquem de nossos solipsismos? Encarar quatro horas numa fila? Isso não é nenhum problema, quando buscamos uma saída, uma janela aberta para outros mundos possíveis, outra percepção do mundo e da realidade. Isto a arte pode nos dar! 

Que bom que mais brasileiros estão descobrindo essa forma de se distrair do mundo do trabalho que nos suga até a última gota! E o que é “distrair”? De certa forma é esquecer da rotina, do corre-corre, é buscar o foco em outro ponto, mesmo que seja o de se admirar com a performance técnica do autor das esculturas hiperrealistas… E entre um espasmo de espanto e outro, diante da técnica, mesmo que seja por um segundo apenas, se ver refletido nos olhos ou até na barba mal feita do artista que escancara nossa condição humana… Ou se ver, de repente, como aquele homem completamente nu sentado dentro de um barco velho e lembrar da frase do poeta português que diz que “navegar é preciso, viver não é preciso”...


Durante os últimos dias da exposição, na frente da Pinacoteca, um garoto-ator, contratado por uma organização que cuida de crianças de rua, estava de cócoras - como o garoto de Mueck - sobre um cartaz que perguntava algo como: “você se importa com seres humanos reais?” Talvez alguém, entre os que estavam na fila, tenha se incomodado com a pergunta e se perguntado porque estava ali para ver pessoas de fibra de vidro e silicone, sendo que em nossas ruas sujas do centro temos tantos espécimes reais, velhos e novos, ao gosto do freguês e para quem quiser ver. 

Mas quem quer ver hordas de zumbis noiados de crack, famílias inteiras famintas e imundas, quadrilhas de moleques pardos ameaçadores, bandos de gente sem casa e sem destino? Isso já vemos todos os dias! Isso é o nosso Real, que carregamos todos os dias em meio ao trânsito, aos ônibus insuficientes, às procissões imensas e diárias dentro dos buracos do metrô, representações reais e bem humanas da vida de gado que levamos neste sistema que nos domina… Esta é nossa condição humana atual. Aquela, a do Mueck, é a que nos distrai do dia a dia e nos faz esquecer, um pouco, da vida que corre lá fora; ao mesmo tempo, nos mostra a vida que corre dentro de nós… Arte é para isso.

Arte é para nos fazer pensar. E pensar incomoda. A arte incomoda. Nos tira do mundo pequeno da existência e nos atira no mundo grande da vida. Vida é movimento. Arte é movimento. Movimentos...