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sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

Arte em construção, o sonho de Tatlin - parte I


Como neste ano de 2017 se comemora uma data muito importante da história mundial, a Revolução Soviética de 1917 na Rússia, iremos dedicar este ano a falar da arte e da cultura russa neste blog. Os assuntos são muito vastos e são riquíssimos em conteúdo! 

De artistas antigos como Andrei Rubliev, o pintor de ícones, à nova safra de jovens artistas estudantes da Academia Ilya Repin de São Petesburgo, passaremos por todos os assuntos possíveis de serem alcançados em meu trabalho de pesquisa para este blog, levando-se em conta que o material de que dispomos aqui no Brasil, e em São Paulo, onde moro, são um pouco escassos. Faremos o possível para apresentar uma boa mostra do que significa para o mundo ocidental a imensa riqueza que a cultura russa trouxe ao mundo, em especial no século XX. 

Iniciaremos com um primeiro artigo sobre o Construtivismo, que acabei de escrever e será publicado na revista Princípios, da Fundação Maurício Grabois. Aqui, o artigo será dividido em duas partes, sendo que a próxima será publicada nesta segunda, dia 30 de janeiro.


"O ciclista", Natalia Goncharova, 1913, pintura cubo-futurista
Arte como construção, o sonho de Tatlin

Entre o final do século XIX e 1932 aconteceu na Rússia o aparecimento de muitas escolas e movimentos artísticos e intelectuais. Pela primeira vez na história, um grupo de jovens artistas viu concretizar sua visão de arte em termos práticos e com a grandiosidade patrocinada pela Revolução de 1917. Vladimir Tatlin, uma das figuras centrais da chamada “vanguarda russa”, inspirou o nascimento de um destes movimentos, o Construtivismo.

A história do povo russo vem de muito longe, quando povos eslavos começaram a se aglomerar em torno de  Kiev, cidade que hoje se situa na Ucrânia. Os Rus de Kiev, como eles se chamavam, passaram a ocupar uma região que, em termos atuais, alcança toda a Bielorrússia, uma grande parte da Ucrânia e o centro e noroeste da Rússia.

Desenho representando o que seria a antiga Kiev
Na passagem para o século XX, ainda era um país muito atrasado. A imensa maioria de sua população vivia nos campos; suas cidades eram aglomerados labirínticos onde viviam os pobres em casas mal iluminadas, com comida escassa. O regime de servidão somente tinha sido abolido em 1861 e o analfabetismo era generalizado. Os romances de Dostoievski fazem um bom retrato do que era a vida nessa Rússia.

Mas antes ainda, em 1682, tomou posse como czar, o homem que tinha mais de dois metros de altura, Pedro, o Grande. “O reinado de Pedro, o Grande, representou a maior transformação da Rússia antes da Revolução de 1917”, diz o professor de história da Universidade de Yale, Paul Bushkovitch em seu livro “História Concisa da Rússia”. Acrescenta: “Ele realizou em 36 anos uma mudança na cultura russa que levou séculos na Europa Ocidental”. E grande parte de seus feitos diz respeito a ter trazido para a Rússia muito da cultura europeia.

Ponte sobre o rio Neva, 1860
Uma de suas reformas foi a construção da cidade de São Petersburgo em 1703, nos pântanos do rio Neva, no golfo da Finlândia. A construção de São Petersburgo “foi planejada, projetada e organizada inteiramente por arquitetos e engenheiros estrangeiros, trazidos da Inglaterra, França, Holanda e Itália”, diz Marshall Berman em “Tudo o que é sólido desmancha no ar”. Pedro construiu São Petersburgo nos moldes das cidades europeias, num padrão de planejamento urbano advindo do Renascimento. O desenho geométrico e retilíneo dava “ao panorama urbano uma aparência de amplitude horizontal infinita”.

Com suas linhas retas em meio à sinuosidade caótica das velhas cabanas da aldeia anterior, São Petersburgo era considerada por muitos autores como “produto do pensamento” Iluminista. Criou-se, e acentuou-se nas décadas seguintes, a polaridade Moscou - São Petersburgo. Petersburgo representando as forças estrangeiras e ocidentais, a modernidade, a civilização, o novo; Moscou, por seu lado, a tradição, o sagrado, a nacionalidade, o antigo. Este dualismo também alcançava as mentes da intelligentzia russa, chegando ao final do século XIX com duas grandes correntes antagônicas: os Ocidentalistas, defensores da modernidade e os Eslavófilos, defensores da tradição e da cultura nativa.

Selo em homenagem a
Dostoiévsky, com uma
reprodução de pintura de
Vasily Perov
A Literatura era o “campo de batalha da ideologia política e cultural”, como aponta Paul Bushkovitch. As revistas literárias de Puchkin e Senkovski guerreavam entre si sobre suas opiniões de autores russos ou estrangeiros como Goethe e George Sand. O crítico literário Vissarion Belinski, que fazia parte do movimento Ocidentalista, “passou a ser visto na Rússia como o arquétipo do crítico ‘engajado’, que julgava as obras de arte segundo critérios amplamente utilitaristas e de acordo com sua relevância para a reforma da sociedade russa”.

Ele se inspirava nas ideias de Hegel, que dizia que “a arte era uma das manifestações da Ideia na história, junto com a filosofia ou o desenvolvimento do Estado”. A arte que não tinha esse fim utilitarista era insignificante e ruim. Ele considerava que a sociedade russa deveria se aproximar do padrão civilizado do Ocidente - idealizado, é claro. Com esse ponto de vista, Belinski - que se alinhava com os socialistas utópicos - rejeitava totalmente a antiga cultura russa e inaugurava também uma forma de pensar a arte que mais tarde foi utilizada pelos Construtivistas.

Mas em 1863, treze estudantes da Academia de Arte abandonaram a instituição. Ivan Kramskoi e seus amigos se opunham às condições da premiação anual da academia e formaram a “Associação Livre dos Artistas”. Eles rejeitavam os modelos acadêmicos, as regras e convenções da técnica ensinada naquela escola, importados em grande parte da Academia Francesa. Para esses jovens rebeldes, a pintura que se ensinava lá nada tinha a ver com a realidade russa, “que mudava tão rápido em torno deles nos anos 1860”, diz Bushkovitch. Eles e outros artistas pensavam que se tinham que se inspirar em algum modelo europeu, era no pintor francês Gustave Courbet ou nos realistas alemães. Nessa década a pintura russa realista retratava a vida em seu próprio país, como o fizeram Ilya Repin, Vladimir Stasov e Isaak Levitan.

Entre aquelas duas grandes correntes de pensamento (Eslavófilos e Ocidentalistas) foram se gestando miríades de movimentos artísticos, que também acompanhavam o desenrolar da luta política e ideológica que levou à Revolução de Outubro de 1917. Do final do século XIX até à primeira década de 1920 os debates em torno desta questão - a assimilação ou não da cultura europeia - eram muito intensos dentro do mundo artístico russo. Mas uma grande parte dos artistas, em contato com as novidades francesas se deixaram influenciar por elas e levaram as novas estéticas artísticas às suas últimas consequências, inspirados pelo espírito revolucionário que incendiava o país e criava esperança no futuro. “Una de las metas esenciales de todos los artistas de principios del siglo fue incorporar lo experimental - tan característico de los ámbitos científicos - al mundo del arte”, explica Lourdes Cirlot em “Las vanguardias artísticas en el siglo XX”.

"O galo e a galinha", pintura em estilo
raionista, de Larionov, 1912
Matisse, Cézanne, Manet, Gauguin e depois Picasso, com seu Cubismo, tiveram grande influência sobre os artistas russos, que também buscaram formação na França. Também mantiveram uma constante interrelação com correntes estéticas diversas, da França e Alemanha. Os franceses já haviam inaugurado a pintura Impressionista, que depois gerou outros movimentos como o Pontilhismo e o Fauvismo. Na Alemanha, o movimento “Die brücke” (A ponte) já dava os primeiros passos do Expressionismo alemão.

Os italianos, em 1909, inauguraram o Futurismo, movimento que foi liderado por Filippo Marinetti, que depois se rendeu ao Fascismo. Do Futurismo italiano e do Cubismo francês, os russos criaram o movimento conhecido como Raionista, no começo do século XX. Em 1914, Kasimir Malevich cria na Rússia o seu Suprematismo, corrente que abria espaços largos para a Abstração, que já havia sido iniciada por Vassili Kandinsky. Outros artistas russos já haviam passado pelo Raionismo, pelo Simbolismo…

"Tribuna de Lenin", projeto de
El Lissitzky, 1920
Veio a Revolução de 1917. Naqueles tempos de radicalismos, para “os artistas, este era o sinal para a exterminação da odiada velha ordem e a introdução de uma nova, baseada na industrialização”, diz Camilla Gray em seu livro “O grande experimento - Arte russa - 1863-1917” (Camilla Gray foi uma bailarina inglesa que visitou a URSS pela primeira vez em 1955 e deixou como legado uma rica pesquisa sobre a vanguarda russa). “A revolução deu um senso de realidade às suas atividades e uma direção, longamente aguardada, às suas energias - uma vez que não havia, em suas mentes, nenhuma dúvida que os impedisse de identificar suas descobertas revolucionárias no campo artístico com essa revolução econômica e política”.  

A Revolução acendeu verdadeiras fogueiras no coração dos artistas. Malevitch, Rodtchenko, Maiakovski e Tatlin, dentre muitos outros, tomaram em suas próprias mãos a reorganização da vida artística russa enquanto anunciavam que estava terminada a fase da “pintura de cavalete” que eles associavam ao sistema burguês: agora eles tinham as ruas para pintar, as praças e pontes, como arena de suas atividades artísticas.

Nos quatro primeiros anos pós-revolucionários conseguiram montar museus e escolas de arte por todo o país, assim como salas de teatro e de concerto. Foram eles que decoraram as ruas para as celebrações de Primeiro de Maio e do aniversário da Revolução. Artistas, atores, escritores, músicos e compositores se empenharam em organizar espetáculos de arte para festejar essas datas. “Trens decorados com temas revolucionários foram enviados para o front levando notícias da Revolução política e artística para todos os cantos do país”, conta Camilla Gray.

Vladimir Tatlin
Em 1919, o Departamento de Belas Artes encomendou a Vladimir Tatlin o “Monumento à III Internacional”. Era um projeto para ser erguido no centro de Moscou.Tatlin trabalhou neste projeto de 1919 a 1920, construindo um modelo em madeira e metal. Esta obra foi exibida no VIII Congresso dos Sovietes em dezembro de 1920. Foi este o primeiro símbolo do movimento Construtivista, que se tornou modelo para as esculturas de Naum Gabo e os móbiles de Alexander Rodtchenko.

Camilla Gray, que teve acesso aos esboços e projetos, assim descreve o “Monumento à III Internacional”, de Tatlin:

O monumento de Tatlin era para ter duas vezes a altura do Empire State Building. Seria executado em ferro e vidro. Uma armação espiral em ferro apoiaria um corpo formado por um cilindro de vidro, um cone de vidro e um cubo de vidro. Esse corpo seria suspenso sobre um eixo assimétrico dinâmico, como uma Torre Eiffel inclinada, que prolongaria, assim, seu ritmo espiral, espaço adentro. Tal ‘movimento’ não iria limitar-se ao desenho estático. O corpo do próprio Monumento mover-se-ia literalmente. O cilindro deveria girar sobre seu eixo uma vez por ano: a esta parte do edifício seriam destinadas atividades tais como: palestras, conferências e reuniões do congresso. O cone deveria completar uma revolução uma vez por mês e abrigar atividades do executivo. No topo, o cubo deveria completar uma volta completa em seu eixo uma vez por dia, e ser um centro de informações. Iria constantemente transmitir boletins, proclamações e manifestos - por telégrafo, telefone, rádio e alto-falante. Como traço singular, uma tela ao ar livre, iluminada à noite, deveria constantemente retransmitir as últimas notícias; uma projeção especial deveria ser instalada para que, em tempo nublado, pudesse lançar palavras no céu, anunciando o lema do dia.”

O projeto nunca foi executado. Os tempos eram de profunda penúria, pois a Rússia estava passando por um período de muita fome, causada pelos longos anos da guerra civil e dos ataques estrangeiros à recém-inaugurada nação soviética. Mas os artistas construtivistas eram férteis na criação de seus projetos.

Maquete do Monumento à III Internacional, de Vladimir Tatlin,
realizado entre 1919 e 1920
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sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Aleksandr Ródtchenko, o fotógrafo da revolução

Desde o dia 5 de novembro estão expostas, no Rio de Janeiro, no Centro Cultural Moreira Salles, cerca de 300 obras do fotógrafo russo Aleksandr Ródtchenko. É uma mostra retrospectiva da obra do artista russo, organizada pela Moscow House of Photografy, e conta também com uma programação paralela de filmes soviéticos de Sergei Eiseinstein. A exposição fica no Rio até 6 de fevereiro, seguindo depois para a Pinacoteca de São Paulo.


Aleksandr Ródtchenko, fotógrafo soviético
Aleksandr Ródtchenko (1891-1956) é um dos grandes artistas daquela que ficou conhecida como a Vanguarda Russa do começo do século XX, junto com outros nomes célebres como Kasimir Maliévitch, Kandinsky, Wladimir Tatlin e o próprio poeta Mayakovsky, amigo pessoal de Ródtchenko.
Ele começou seu trabalho dentro da linha Construtivista, por volta de 1923. Cooperando com Mayakovsky, os dois criaram juntos cartazes de propaganda. Neles, os artistas foram desenvolvendo um método construtivista de desenho para a tipografia, e Ródtchenko foi introduzindo a fotografia como meio de expressão. Inicialmente ele era pintor de quadros e, na medida em que ia se aprofundando na teoria estética que orientava a Vanguarda Russa, foi partindo para a direção da fotografia e do desenho gráfico.
Os trabalhos inovadores desses artistas tiveram o amplo apoio do movimento Proletcult, que lhes arranjava trabalho regular que garantisse seu sustento. Os trabalhos eram conseguidos junto aos contatos que o Proletcult mantinha com a indústria, assim como com organizações sindicais soviéticas. Vários artistas, incluindo Ródtchenko, começaram a desenhar emblemas, slogans, selos, cartazes, criando, no início dos anos XX, os clubes dos trabalhadores, nos quais, tudo, desde mesas e cadeiras até os slogans nas paredes e a iluminação era tudo projetado no estilo Construtivista.
A mãe, Rodtchenko
“Cessemos nossa atividade especulativa (pintar quadros) e assumamos as bases saudáveis da arte – cor, linha, materiais e formas – no campo da realidade, da construção prática”, dizia o Manifesto Construtivista, um dos textos presentes no livro “Construtivismo” de Alexei Gan, lançado em Tver, em 1922.
A ideia dos construtivistas era tornarem-se artistas-engenheiros, plenamente atuantes na revolução socialista que estava em curso na União Soviética, dirigida até 1924 pelo líder do povo russo Wladimir Lênin. Esses artistas descobriram no campo do desenho gráfico uma grande riqueza de possibilidades e nessa época foram criados os cartazes que fizeram a história do desenho gráfico, influenciando artistas no mundo inteiro até os dias de hoje. Ródtchenko, Lissitzky, Klutsis e Alexei Gan são considerados os pioneiros do desenho gráfico moderno.
É esse Ródtchenko que está sendo visto no Rio de Janeiro e a partir de fevereiro estará exposto na Pinacoteca de São Paulo. A mesma exposição já foi apresentada em Londres, Berlim e Amsterdã. Com curadoria de Olga Svíblova, diretora da Casa de Fotografia de Moscou, a mostra recebeu o título de “Aleksandr Ródtchenko: a revolução na fotografia”. Essa exposição chega ao Brasil com cerca de 300 peças do artista soviético entre fotografias, fotomontagens, cartazes e capas de livros e revistas.
Para suas fotos, Ródtchenko trouxe muito da teoria construtivista. De uma forma original, ele muda a perspectiva da fotografia, movendo suas lentes para outra direção, o que representou um choque para os padrões da época. O ponto de vista inovador do fotógrafo russo era a partir de ângulos inéditos: de baixo para cima ou de cima para baixo. Até mesmo os retratos que ele fazia eram nessa perspectiva nova. Diversas fotos suas ilustraram jornais e revistas,  muitas das quais ele mesmo tinha sido o designer.
Paralelamente à fotografia Aleksandr Ródtchenko desenvolvia seu trabalho gráfico e dava aulas de desenho industrial. A União Soviética passava por grande progresso tecnológico, com muitas indústrias e usinas, tudo documentado pela câmera do fotógrafo socialista. Como designer gráfico e fotógrafo, Ródtchenko inovou a linguagem artística de sua época.
E nunca abandonou a URSS. Mesmo quando em 1932 o governo de Stalin, através de Andrei Jdanov impôs uma estética de Estado reduzindo, dessa forma, o campo de ação dos artistas soviéticos, Ródtchenko continuou seu trabalho de pesquisa, fazendo experimentos com a luz em ambientes internos, fotografando o mesmo lugar várias vezes ao longo do dia para captar os efeitos das mudanças na luminosidade dos espaços. Como grande repórter fotográfico, Moscou foi muitas vezes o tema central de sua fotografia. Também tirava fotos do alto de prédios, assim como de manifestações na Praça Vermelha, competições esportivas e corridas de cavalos.
A exposição que acontece agora no Rio mostra essas fases diversas da obra do autor. Quase todas as 300 peças são originais e há uma sala dedicada ao poeta Mayakovsky, seu amigo pessoal. Ródtchenko fez para ele retratos e capas de livros, além de peças gráficas criadas pelos dois, como cartazes de propaganda do socialismo.
Mostra de cinema soviético

Juntamente com a exposição de Aleksandr Ródtchenko, a curadoria teve a preocupação de trazer também alguns filmes de Sergei Mikhailovich Eiseinstein (1898-1948), o grande cienasta soviético, com o objetivo de mostrar o vanguardismo das artes visuais soviéticas.
Foi Eiseinstein que imortalizou, com seu cinema revolucionário, a grandiosidade do projeto político socialista de Lênin na URSS, tornando-se um verdadeiro mito do cinema de vanguarda que inspirou cineastas de todo o mundo. Os filmes que serão exibidos na mostra do Rio e depois em São Paulo são, entre outros: A Greve (Stacha), rodado em 1924; O Encouraçado Potemkin de 1925 e Outubro (Oktyabr) que mostra os redemoinhos revolucionários que mudou a história da Rússia e do mundo em 1917. Ródtchenko foi o artista que desenhou o cartaz de propaganda do filme “O Encouraçado Potemkin”.
Além de Einseinstein, outros diretores como Aleksandr Petrovich Dovzhenko, estarão presentes. São treze filmes soviéticos ao todo, sendo apresentados junto com a obra de Ródtchenko. O título da mostra de cinema soviético é “Notícias da antiguidades ideológicas”. Esse título é de uma obra não concluída de Einseinstein que queria filmar O Capital, obra mestra de Karl Marx. Além dele estará sendo apresentado também o famoso filme de Dziga Vertov, O homem com uma câmera.
Essa mostra complementa aquela que aconteceu no ano passado (2009), quando o público brasileiro teve acesso a uma parte importante do acervo dos artistas da Vanguarda Russa, do Museu de São Petersburgo.


quarta-feira, 5 de maio de 2010

Vanguarda Russa - as raízes de um novo tempo

A arte deve ligar-se estreitamente com a vida.
Fundir-se com ela ou perecer.” (Maiakóvski
)

Neste segundo semestre de 2009, precisamente entre 15 de setembro e 15 de novembro, o Centro Cultural Banco do Brasil trouxe para São Paulo uma Exposição com mais de cem obras de arte pertencentes ao Museu Estatal Russo de São Petersburgo, a maior e mais importante mostra de arte russa já exibida em nosso país. A exposição já tinha passado anteriormente por Brasília e Rio de Janeiro, organizada pelos curadores cubanos Rodolfo de Athayde e Ania Rodríguez.


Mais de cem obras de 52 artistas russos estão expostas no centro de São Paulo, numa boa amostra das diversas tendências nas artes plásticas russas dos finais do século XIX e início do século XX. Entre as obras se encontram telas, cartazes, esculturas, peças de vestuário, desenhos gráficos e louças do Museu de São Petersburgo, além de dois filmes, um sobre a vanguarda russa e o outro sobre a obra de Kazimir Maliévitch.

No final do século XIX, os movimentos artísticos que ficaram conhecidos pelo nome de vanguarda russa, mudaram os rumos da história da arte naquele país em todos os setores: nas artes plásticas, na música, no teatro, na poesia, na arquitetura e no cinema que começava a nascer. Até por volta dos anos 1930, a Rússia assistiu a um fervilhar de movimentos artísticos de diversos matizes plenamente integrados às transformações que a sociedade russa ia tomando.

Programas e manifestos iam surgindo a partir de grupos e associações de artistas, nesse momento onde havia um fértil debate de ideias em meio à nascente intelligentsia russa. Esse espírito, que norteava intelectuais e artistas da virada do século XIX para o século XX, estava em perfeita harmonia com o cenário histórico em que mudanças urgentes se faziam necessárias em todos os aspectos da vida social daquele povo. Aquela efervescência de idéias e aquele momento de alta criatividade e produtividade artística “puseram em circulação idéias destinadas a exercer efeitos cataclísmicos não só na própria Rússia, mas muito além de suas fronteiras”.i Como disse em entrevista exclusiva à revista Princípios (leia abaixo), o curador da mostra, Rodolfo Athayde, pode-se mesmo dizer que aqueles foram os tempos onde se gestou a revolução bolchevique de 1917.

Mas voltemos um pouco atrás na história russa, para compreender um pouco melhor o surgimento dessa vanguarda de artistas e intelectuais.

A partir de 1697, Pedro I, mais conhecido como Pedro o Grande, iniciou um processo muito intenso de europeização da Rússia. Tendo enviado expedições à Europa, das quais ele mesmo participou, trouxe para aquele país várias centenas de mestres, técnicos, médicos e homens letrados, que foi recrutando pelos países por onde passou. Além disso, trouxe cartas topográficas, livros e invenções. Em relação aos costumes e à moda, introduziu a forma de vestir à francesa e ordenou que todos os homens russos que insistissem em usar barba longa (costume tradicional) pagariam um imposto. Pedro o Grande também manda traduzir para o russo diversas obras em francês, alemão e inglês. Em 1703 manda edificar São Petersburgo, a nova capital, num projeto urbanístico inspirado nos padrões ocidentais. Ainda no mesmo ano, manda construir Peterhof, cidadezinha próxima a São Petersburgo, conhecida por um impressionante complexo de palácios, que foi concluído em 1725, último ano do seu reinado.

Ora, toda essa ocidentalização trouxe modificações estruturais à vida social e cultural do povo russo. Nas artes plásticas, por exemplo, estava no auge a arte da pintura de ícones, de longa tradição, cujo apogeu se estendeu dos séculos XIV ao XVIII. Mas após o aculturamento produzido por Pedro o Grande, os artistas plásticos começaram a se voltar para temas laicos, como paisagens e figuras, fugindo da temática religiosa anterior. Até Pedro o Grande, as representações bidimensionais da figura humana era combatida pela igreja ortodoxa. Mas com este czar, muitos artistas foram enviados a escolas de arte da Europa, especialmente da França, onde aprendiam noções de pintura como de gama cromática e de valor pictórico, ausentes nos pintores de ícones. O cavalete e a tela surgiram pela primeira vez, impondo um processo de pintura diferente. Os pintores de ícones, até então, como o famoso Andrei Rubliev, usavam “tábuas de madeira 'viva', trabalhada por dias e meses, antes que se inscrevam os primeiros contornos ou se apliquem as cores à base de ovo e de água”ii.

Defesa da cultura russa

Na contramão dessa europeização cultural e em meio à efervescência política e ideológica do século XIX, os artistas se rebelaram e passaram a criar movimentos de defesa da cultura russa, que antes era descartada como bárbara e rude. Os artistas rejeitaram o padrão ocidental e buscaram criar uma cultura nacional nova que fosse baseada no camponês e nas tradições artísticas nacionais, de há muito esquecidas. Voltaram-se para a busca das raízes culturais do povo. Mesmo artistas mais abstratos, como Vassili Kandínski, mostra um colorido de formas que ele mesmo admite ter descoberto nas izbás, as casas dos camponeses que tanto o tinham encantado em seus tempos de jovem estudante de arte. Mikhail Lariónov, um dos precursores da vanguarda russa, se inspirou na arte popular urbana, onde o atraíam os painéis e letreiros de lojas e oficinas feitos por artesãos, assim como os lubok – xilogravuras camponesas – que também inspiraram muitos outros pintores. Lariónov e Gontchárova organizaram exposições de ícones, luboks e peças do artesanato popular.

Era uma época de experimentações, de busca de novos conteúdos, de novas formas, de novas cores e de um novo mundo. O espírito da épocazeitgeist, como se diz em alemão – atravessava o clima intelectual e cultural desse período: espírito de rebeldia, de contestação, de revolução social, política e cultural. Grupos se formavam, movimentos novos nasciam a cada dia, enquanto jovens artistas produziam, como Natalia Gontchárova, uma das mais importantes artistas da época. Ela se preocupava em evocar as tradições populares em suas obras, reproduzindo cenas da vida camponesa e trazendo inovações baseadas na tradição dos ícones. Uma de suas obras, “Os Evangelistas”, presente na mostra, causou escândalo em Moscou quando exibida em 1912 numa exposição denominada “O Rabo do Burro”. Por sua semelhança aos ícones e porque uma obra de tema sacro não poderia estar presente numa mostra profana como aquela – de uma arte de ruptura – ela foi censurada.

Outro pintor presente na mostra, Vladimir Tátlin, inicialmente um pintor de ícones, começou a criar seus quadros em relevo nos meados da década de 1910. Sua ideia básica era fazer com que os objetos de sua obra saltassem da tela para fora, reconstruindo novas formas tridimensionais. Seu trabalho “Contra-Relevo de Esquina”, complexo em aço, alumínio, zinco e madeira, presente na mostra, traduz o mundo industrial que ele via surgindo e passava a adotar formas e materiais da moderna tecnologia. Era o artista-engenheiro engajado na construção de objetos concretos. Tátlin criou também duas maquetes de obras que ele intitulou de “Homenagem à III Internacional” e “Projeto para a Tribuna de Lênin”. Ele foi o precursor do movimento que depois ficou conhecido como Construtivista, juntamente com o pintor e fotógrafo Alexandr Rodtchenko.

Kuzma Petrov-Vodkin apresenta trabalhos em óleo de caráter realista. Era pintor, artista gráfico e cenógrafo, tendo estudado em diversas escolas de arte, na Rússia, Alemanha e França. Tornou-se o primeiro presidente da Associação dos Pintores de Leningrado, em 1932, e foi representante no Conselho de Deputados de Operários, Camponeses e Soldados do Exército Vermelho. Seu entusiasmo pelas obras do pintor francês Matisse e pelos cubistas não foi menor do que sua admiração pela arte tradicional dos ícones, cujo resultado foi uma série de pinturas de caráter narrativo pronunciado, figurativo.

Pavel Filónov, um dos organizadores do grupo futurista “União da Juventude”, foi o criador do cenário para a primeira peça teatral de Maiakóvski, “Vladimir Maiakóvski”, e assim como os outros artistas, estava envolvido diretamente com a revolução de 1917, que ele saudou ardorosamente. O trabalho de Filónov apresenta uma delicadeza e sensibilidade de toque incrível. Suas telas em óleo dão a impressão de aquarelas, com finas e leves pinceladas. Sabe-se que ele trabalhava meticulosamente em suas pinturas, dezoito horas por dia, cujos detalhes eram rigorosamente planejados.

Nessa exposição também encontramos obras de Marc Chagall, Vassili Kandínski, Kasimir Maliévitch, Mikhail Matiútchin, Maria e Boris Énder, que seguiram caminhos diversos na arte plástica. Mais voltados para o abstracionismo, suas obras também significavam uma linguagem de ruptura, e mesmo que se voltassem mais à valorização da cor e da forma, eram coerentes com o sonho de construção social de um novo mundo. Participavam desses diversos movimentos de artistas que buscavam formatar visualmente a nova sociedade. Nenhum deles foi insensível às guerras, por exemplo, e organizaram várias exposições em ajuda aos feridos.

Arte e vida

Esta é uma característica muito marcante daquele rico período em que se desenvolveram as artes de vanguarda. Nos pintores mais realistas até nos mais radicalmente abstratos como Maliévitch, notava-se um profundo envolvimento entre vida e arte. “A Revolução deu um senso de realidade às suas atividades e uma direção, longamente aguardada (...) – uma vez que não havia, em suas mentes, nenhuma dúvida que os impedisse de identificar suas descobertas revolucionárias no campo artístico com essa revolução econômica e política”iii diz a pesquisadora inglesa Camilla Grey, no começo dos anos 1960. O próprio Maliévitch que defendia a arte abstrata como uma forma rebelde dentro das artes plásticas afirmava que “o cubismo e o futurismo foram as formas revolucionárias da arte que prenunciaram a revolução na vida política e econômica de 1917”iv.

Yevgenia Petrova, que é hoje uma das curadoras do Museu Estatal de São Petersburgo, reconhece, em seu texto publicado no catálogo da mostra brasileira, que a vanguarda russa representou um rico momento de florescimento de diversas tendências artísticas numa conjuntura social e política onde se preconizava o surgimento de um mundo novo e onde se preparavam, sob o comando de Vladimir Lênin, os passos para uma mudança estrutural na sociedade russa, trazida pela revolução bolchevique. Até mesmo o famoso – e louvado no mundo ocidental – “Quadrado Negro” de Maliévitch “e outras obras-primas da vanguarda não surgiram nem no lugar vazio e nem de repente. Eles nasceram graças aos processos notadamente criativos da cultura russa do final do século XIX-início do século XX”.v

Rodolfo de Athayde afirmou que essa vanguarda promoveu “uma mudança extraordinária na História” exatamente por causa do vigor artístico e intelectual que caracterizaram aqueles anos. Essas “obras evidenciam a inquietude cultural dos anos que precederam o Outubro Vermelho, período em que o desejo de renovação resultou num contexto de transgressões onde os artistas passaram a buscar o seu próprio caminho na arte”, diz o curador cubano.

Virada Russa” apresenta, então, a força viva presente na cultura russa, cujos reflexos podem se notar naqueles quadros ricos em pesquisa e experimentação de cores, desenhos, formas e temáticas, que testemunham a profundidade da alma do povo russo. É uma grande demonstração de que arte e vida caminham lado a lado, e que deve ser assim, mesmo a contragosto dos que hoje preconizam uma arte abstratamente vazia. Arte sem vida é arte sem alma.
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Entrevista com Rodolfo de Athayde:

O curador da mostra Virada Russa, o cubano Rodolfo Athayde, radicado no Rio de Janeiro, concedeu uma entrevista exclusiva à revista Princípios, sobre a exposição.

Mazé – Rodolfo, qual foi o seu objetivo ao idealizar esta exposição sobre os artistas russos no Brasil?
Rodolfo – Nossa intenção, minha e de Anya Rodrigues, é chamar a atenção do público brasileiro para a qualidade da arte plástica russa do final do século XIX até por volta de 1935. Mostrar para o público as fontes e as raízes da arte contemporânea mundial. Trouxemos artistas como Kandínksi, Chagall, Maliévitch, que são mais conhecidos, mas trouxemos dezenas de outros como Rodchenko, Gonchárova e Pavel Filónov, que ainda eram desconhecidos do público brasileiro. Em especial Filónov tem uma pintura de alta qualidade plástica, que não deixa nada a desejar aos pintores ocidentais, como Paul Klee, por exemplo.
A arte russa, assim como a arte cubana, mostram as diferenças e a riqueza da arte que é feita fora da Europa. Ano passado trouxemos também, eu e a Anya, uma exposição de artes plásticas cubanas, trazendo para o Brasil uma amostra da criatividade dos artistas cubanos. Desta vez, a exposição sobre arte russa possibilita um maior conhecimento sobre a vanguarda russa, um movimento que foi tão fundamental para as artes no mundo todo.
Mazé – O que era a vanguarda russa?
Rodolfo – Esses grupos de artistas que ficaram conhecidos como a Vanguarda Russa representavam um conjunto de tendências artísticas que foram vitais para o desenvolvimento das artes no mundo dos séculos XX e XXI. Aqueles artistas foram os primeiros a fazer experiências com novos materiais, com cores, com texturas, com objetos e até com a geometria. Eles faziam experimentos realmente radicais para os padrões da época, como se pode ver na exposição, e influenciaram direta ou indiretamente o desenho contemporâneo. Eles foram os responsáveis por fixar uma estética da modernidade que aqui no Brasil foi representada pelos Neoconcretistas da década de 50, artistas brasileiros que se basearam nos princípios da vanguarda russa.
Eles também, sem dúvida, influenciaram o design moderno, especialmente o design gráfico, uma vez que foram os primeiros a criar uma estética visual gráfica, como podemos ver através dos famosos cartazes russos. Com esses artistas, as artes gráficas foram enriquecidas com cartazes grandes, de cores chapadas, traços geométricos novos e com jogos e alterações de perspectiva. Eles revolucionaram mesmo as artes visuais!
Mazé – E o realismo socialista?
Rodolfo – O realismo socialista foi uma experiência negativa. Com a imposição do decreto da arte do realismo socialista em 1935 o Estado impediu o desenvolvimento desses movimentos artísticos, e alguns artistas deixaram a URSS. O Estado queria que a arte representasse, através do retorno ao realismo figurativo radical, as idéias de um homem novo e uma sociedade nova. Mas aquelas figuras hercúleas, descaracterizadas, fictícias, sem base na realidade, figuras de um mundo sem drama, irreal. Isso foi muito negativo porque cortou o movimento artístico natural que nascia do meio daqueles artistas de vanguarda.
Mazé – Qual é sua opinião sobre a arte contemporânea?
Rodolfo – Muito repetitiva. Os artistas atuais batem sempre sobre a mesma tecla, usando a mesma linguagem que há mais de cem anos foi inaugurada por aqueles artistas. Naquele momento, há cem anos, a arte tinha uma conexão com o mundo a seu redor e com tudo o que havia. Na Rússia do começo do século XX, os artistas produziam uma arte nova como um movimento radical mesmo e em perfeita consonância e harmonia com a revolução bolchevique. Esses movimentos geraram o movimento social mais importante na história do mundo no século XX que foi a revolução bolchevique de 1917. E hoje a arte contemporânea pretende repetir os padrões artísticos dos princípios do modernismo e da vanguarda russa, mas vemos que essa forma foi se esvaziando, com o tempo, e hoje é vazia de conteúdo. A arte contemporânea se liga puramente na questão formal, sem peso algum na atual circunstância, sem conexão com nada, sem sentido.
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Bibliografia:
BERLIN, Isaiah. O Nascimento da Intelligentsia russa. p. 241 In Pensadores Russos. São Paulo: Companhia das Letras.
MAIAKÓVSKI, Vladimir. Resumo da palestra Abaixo a Arte, Viva a Vida. In Maiakóvski – Prosa e Poesia.
MARCADÉ, Jean-Claude. Ícone e Vanguarda na Rússia, duas faces maiores da arte universal. In 500 Anos de Arte Russa. Rio de Janeiro: Brasil Connects, 2002 .
GRAY, Camilla. O Grande Experimento. Arte Russa 1863-1922. São Paulo: Worldwhitewall Editora Ltda. 2004.
PETROVA, Yefgenia e outros. Virada Russa. São Paulo: Editora Palace Editions. 2009.
i BERLIN, Isaiah. O Nascimento da Intelligentsia russa. p. 241 In Pensadores Russos.
ii MARCADÉ, Jean-Claude. Ícone e Vanguarda na Rússia, duas faces maiores da arte universal. In 500 Anos de Arte Russa.
iii GRAY, Camilla. O Grande Experimento. Arte Russa 1863-1922.
iv idem
vPETROVA, Yefgenia. Arte Russa nos Anos de Vanguarda. In Virada Russa.
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Artigo publicado inicialmente na REVISTA PRINCÍPIOS, novembro de 2009