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segunda-feira, 15 de julho de 2013

Rembrandt van Rijn, o mestre holandês

O artista em seu ateliê, Rembrandt, 1626-1628
Hoje, 15 de julho de 2013, comemoramos o nascimento de um dos maiores pintores de todos os tempos: Rembrandt van Rijn. Em sua homenagem, um pouco de sua vida.

No dia 15 de julho de 1606, na cidade de Leiden, na Holanda, nasceu o pintor Rembrandt Harmenszoon Van Rijn. Ele foi o oitavo filho de um proprietário de moinho que ficava às margens do rio Rhin e por isso seu sobrenome acabou ficando “Van Rijn” (do Rio). Originalmente católica, a família se converteu ao calvinismo. Seus pais já não eram jovens e diz-se que Rembrandt sempre guardou uma impressão, desde cedo, de que seus pais eram muito velhos.


A mãe do pintor, gravura
No chamado “Século de Ouro” - o século XVII -, a cidade de Leiden era um dos mais importantes centros culturais da Holanda. Sua riqueza se devia principalmente ao florescimento das manufaturas têxteis, um grande mercado que era seu grande centro comercial. Lá também tinha uma universidade e uma intelectualidade com tradição humanista e artística. Exatamente em Leiden, desde o século XV tinha se desenvolvido uma notável escola de pintura a óleo, tendo como uma de suas principais referências o pintor Lucas de Leiden, excelente pintor e gravador, nascido por volta de 1490. Vem dele, segundo alguns autores, a influência inicial de do jovem Rembrandt.

Já desde o começo do século XVII, chegavam notícias vindas da Itália a respeito de um pintor italiano cujo tratamento especial da luz dava à pintura um efeito muito surpreendente e realista. Era Caravaggio. Rembrandt, portanto, começa sua formação em um meio muito favorável ao desenvolvimento pessoal: de um lado, a pintura inspirada nos italianos e, por outro, a escola de Amberes, dirigida por Peter Paul Rubens. Por outro lado, na Holanda calvinista as famílias comuns já decoravam suas casas com pinturas de execução bastante refinada, diferente de outros países, onde as obras de arte eram basicamente destinadas a palácios e igrejas.

Quando o jovem Rembrandt completou 18 anos, em 1624, terminou sua fase de formação, passando seis meses no atelier do pintor Pieter Lastman em Amsterdam. Lastman tinha passado pela Itália e era um pintor de “história”, ou seja, executava obras com cenas sagradas ou mitológicas e destinadas a um público de entendidos. Em Amsterdam o gosto pela pintura italiana já se fazia presente em diversos círculos. Rembrandt, diz uma de sua biografias (Rembrandt, el más importante hereje de la pintura, de Stefano Zuffi) se dedicou a estudar pacientemente a pintura de Lastman, copiando “seus temas e composições”.

O mestre de Leiden, então, se acostuma a um desenho preciso e se familiariza com cenas de grande intensidade, mas com uma energia própria e com espírito inovador. 

Começa sua carreira


A Guilda dos Tecelões, Rembrandt, 1662 
Após o período ao lado de Lastman em Amsterdam, Rembrandt volta para Leiden. Tinha 19 anos de idade quando começou sua carreira profissional. Se associa a um amigo, Jan Lievens, que também havia estudado com Lastman e os dois abrem um atelier profissional. Trabalhavam juntos, copiavam um ao outro e utilizavam os mesmos modelos. Logo ficaram conhecidos em Leiden e sua fama não demorou a se expandir.

Em 1628, no mês de fevereiro, Rembrandt recebe seu primeiro aluno, Gerrit Dou, que tinha 15 anos de idade. Mais ou menos no mesmo período Rembrandt começa a ter seus primeiros êxitos econômicos: tinha levado à pé, de Leiden a Amsterdam (uma distãncia de 40 km) um quadro que conseguiu vender por uma boa soma de dinheiro. Gerrit Dou fica como aluno de Rembrandt até 1632, quando este se muda para Amsterdam. Ele já era considerado entre os “pintores refinados” da escola de Leiden e lá também tinha se envolvido pessoalmente com a organização de uma Corporação de pintores.


Assinatura de Rembrandt da fase
 final de sua carreira
Um certo dia, ainda em sua cidade, ele e seu parceiro Jan Lievens recebem a visita, em seu atelier, de Constantin Huygens, poeta e um dos homens mais cultos e influentes da Holanda. Em sua autobiografia, mais tarde, Huygens fala dessa visita ao atelier dos dois jovens pintores de origem humilde (um era filho de um moleiro, o outro de um bordador) e disse que ficou com uma impressão muito profunda deles. De Rembrandt, Huygens disse que ele era dotado de um desenho fino e elegante e comunicava “palpitantes emoções”. Huygens encomenda a Lievens o seu retrato, e a Rembrandt um de seu irmão. No anos seguintes, Constantin Huygens auxiliou os dois pintores, encaminhando Lievens para a Inglaterra e garantindos excelentes encomendas para Rembrandt. Huygens também propunha obras desses dois pintores a colecionadores internacionais. Ele os colocava no mesmo pé de igualdade com os pintores italianos, que possuíam grande fama na Europa.

Os maiores modelos que Rembrandt teve para sua obra foram seus próprios familiares. Sua companheira Saskia, por exemplo, foi por ele pintada inúmeras vezes. Mas ele pintava seus familiares como personagens, interpretando algum papel na pintura, nunca como simples retratos. Sua mãe era sempre uma velha devota, seu pai era um velho áspero e expressivo, sua irmã Lijsbeth uma mulher ruiva e sempre meio sonolenta e seu irmão Tito aparecia sempre como um menino bonito e com ar de surpresa.

Vida em Amsterdam


Negros, Rembrandt, 1661
Após a morte de seu pai, em 1632 Rembrandt resolve arriscar a vida em Amsterdam. Um marchand local, Hendrick van Uylenburch, lhe oferece um local onde morar e montar seu atelier numa área nobre da cidade. E se torna o intermediário entre o pintor e a clientela nova. No começo, Rembrandt pinta bastantes retratos, porque precisava ficar conhecido no mundo dos colecionadores e dos ricos compradores de obras de arte da Holanda.

Na época em que Rembrandt chegou lá, Amsterdam era uma cidade em pleno desenvolvimento econômico, urbanístico e social. Grande porto comercial e capital de um império colonial, Amsterdam possuía lojas e mercados onde se podia comprar de tudo, incluindo objetos e coisas diversas vindas de várias regiões do mundo.  Ao lados dos canais que cortavam o centro velho da cidade, se erguiam casas confortáveis para os ricos comerciantes locais. Muitos deles passaram a comprar quadros de Rembrandt.

Foi na casa de Hendrick van Uylenburch que o pintor conheceu Saskia, parente próxima do marchand, órfã de pai e que havia chegado há pouco em Amsterdam. Ela tinha 20 anos de idade quando os dois se conheceram e entre eles surgiu um grande amor. Eles se casaram no dia 22 de julho de 1634. Rembrandt tinha 28 anos. Para o filho do moleiro, esse casamento com Saskia representava uma ascensão social.


Um dos retratos de Saskia
Logo Rembrandt se tornou um homem rico, não só por agora ter um parentesco com pessoas ligadas à alta sociedade holandesa, mas também por causa de sua pintura, cada vez mais admirada e requisitada. Com 29 anos, vai morar numa bela casa com Saskia e monta um amplo atelier, onde recebe um número grande de alunos. Na Corte de Haya, graças à Constantin Huygens, o nome de Rembrandt já se tornava conhecido. Recebe encomendas muito bem pagas. Como ele não se dizia nem calvinista e nem católico, pintava tanto para um público quanto para o outro, assim como também para judeus. Nesse período de grande prosperidade na Holanda, havia uma mania nova entre os ricos: colecionar obras de arte. Também Rembrandt se tornou colecionador.

Ele possuía uma curiosidade inesgotável e tinha gosto por toda novidade. E Amsterdam, com toda a prosperidade em que vivia naqueles tempos, era o centro para onde chegavam as novidades do mundo. Nos anos 1630, a expansão colonial holandesa havia atingido seu cume, inclusive com a consolidação de algumas possessões em vários continentes e países, incluindo o Brasil, mais especialmente em Pernambuco. Fora isso, a Guerra dos 30 anos que estava ensanguentando a Europa, não atingiu a Holanda.


A lição de anatomia do dr. Tulp, Rembrandt, 1632

Tempos de prosperidade


Rembrandt nunca saiu de seu país, nem mesmo para ir à Itália, como era costume inclusive de muitos dos pintores holandeses. Segundo Stefano Zuffi, ele não tinha nenhuma vontade de sair da Holanda, inclusive porque mantinha um ritmo de trabalho intenso. Além disso, havia grande disponibilidade de obras italianas em Amsterdam, que ele podia observar de perto. E acrescenta que o mestre conhecia muito bem a arte do Renascimento e do Barroco e que ele sentia “constantemente a necessidade de uma verificação nos mais altos níveis” da pintura.

Rembrandt já tinha muitos amigos e admiradores em Amsterdam. Mas com o passar dos anos, alguns deles se tornaram seus credores, muitos deles insaciáveis. Do seu apogeu à sua ruína, se passaram 15 anos.


Paisagem com três árvores, Rembrandt, 1643
Este pintor se dedicou durante muito tempo ao ensino da pintura, como mestre. Gostava disso, e chegou a ter alunos admiráveis, que também foram seus colaboradores. Eles lhe pagavam para ter aulas com ele. Era um professor dedicado e generoso, ficava muitas horas cuidando da formação de seus alunos. Eles faziam desenhos e pinturas com modelos vivos nus, e muitas vezes posavam para algumas composições do mestre, vestidos com trajes e adereços teatrais que pertenciam a Rembrandt.

Sabe-se que Rembrandt adorava o teatro. Quando era criança havia participado em pequenas encenações em sua escola, o que lhe despertou uma afeição verdadeira pelo teatro, que ele pode ver ainda mais satisfeita em Amsterdam. A atividade teatral na Holanda também era efervescente nos tempos do pintor. O teatro culto convivia com espetáculos ambulantes que aconteciam nas feiras e mercados. Os gestos, as roupas e a encenação dos atores eram para ele um mundo fascinante e inspirador. Estimulava seus alunos a frequentar eventos teatrais, para que estudassem os movimentos e as expressões dos atores em cena. Também diz-se que era um homem de profundas reflexões e sempre questionava o papel do pintor no mundo.

Em plena prosperidade, Rembrandt muda-se com sua família, em 1639, para um palacete de dois andares, onde também podia organizar melhor sua grande coleção de arte e de curiosidades do mundo, que ele comprava nos mercados e feiras. O preço dessa casa era muito alto, mas ele tinha bastante dinheiro e vendia muito. Deu uma primeira entrada, uma quarta parte do valor total, e se comprometeu a pagar o resto da dívida em seis anos.

Em 1642, o mestre havia alcançado o cúmulo da fama e do êxito econômico devido às suas telas “Ronda noturna”, “Estampa de cem florins”, aos seus numerosos alunos, às encomendas que recebia e aos elogios dos críticos. Mas em sua vida pessoal, as coisas estavam difíceis. Seus pais morreram, depois morreu uma irmã querida de Saskia. Pior ainda, três filhos do casal haviam morrido ainda muito pequeninos. Saskia dá à luz a um quarto filho, Tito, batizado em 22 de setembro de 1641. Mas ela adoece após o parto e foi acometida de tuberculose. Após meses de muito sofrimento, no dia 14 de junho de 1642 a esposa amada de Rembrandt morre. Ela só tinha 30 anos de idade.

A ruína


Tito estudando, Rembrandt
A morte de Saskia foi uma grande tragédia pessoal para Rembrandt. Diz-se que seu abatimento durou meses, mas ele tinha um filho ainda bebê para cuidar e tinha sérias dificuldades para organizar sua vida familiar. Na sociedade holandesa, era a mulher que administrava a economia doméstica, cuidava da educação dos filhos, administrava os empregados da casa. Em geral, as mulheres holandesas possuíam grande cultura, mesmo que ainda sofriam o preconceito em alguns setores da vida social. Mas a literatura holandesa do século XVII apresentava muitos títulos para o público feminino.

Saskia, então, deixou o pequeno Tito órfão de mãe com apenas 9 meses de vida. Ela havia deixado de herança a Rembrandt uma parte de dinheiro, condicionando a que ele não voltasse a se casar. Rembrandt se apega muito a seu pequeno e único filho. O mestre resolveu contratar uma ama-de-leite, Geertje Dircx, uma camponesa viúva. Geertje se ocupa com firmeza das tarefas domésticas e do menino. Ela era analfabeta e rude, o oposto de Saskia. Mas era muito trabalhadora e decidida. E se torna amante do mestre, coisa que escandalizou a sociedade calvinista local. Além disso, eles repreendiam o fato de Rembrandt não ter nenhuma prática religiosa, de gastar mais do que ganhava inclusive para comprar coisas extravagantes, como, por exemplo, animais exóticos. 

Sua fama começa a se enodoar com os preconceitos da sociedade holandesa, apesar de ainda ser muito respeitado como artista pelos críticos. Os amigos vão diminuindo, alguns alunos abandonam seu atelier. Geertjer, mais tarde, abre um processo contra ele, acusando-o de não ter cumprido uma promessa de matrimônio. O tribunal obriga Rembrandt a pagar à ela uma pensão anual.


Tito, o filho do artista
Nos anos 1650, o gosto pela pintura também sofre uma mudança. Se adquirem pinturas mais suntuosas, naturezas-mortas exuberantes, paisagens belas. Rembrandt sempre havia preferido os temas maiores da pintura. Para ele, as pinturas de gênero, as paisagens e as naturezas-mortas não lhe atraíam muito. Mas executou algumas dessas obras, mesmo que já mostrava seu afastamento cada vez maior desse gosto geral. Enquanto os compradores de arte queriam pinturas ricas e faustuosas, ele resolveu pintar uma imagem dramática como a do “Boi esquartejado”, uma representação da morte.

O interesse de compradores holandeses por sua obra diminuíram, mas ele ainda atraía muitos compradores de outros lugares da Europa. Um deles foi Antonio Ruffo, que manteve uma prolífica correspondência com o mestre. Ruffo comprou mais de 220 gravuras e diversas pinturas.

A Holanda entra em guerra com a Inglaterra e a recessão surge. Os credores de Rembrandt aumentam ainda mais a pressão sobre ele, que começa a vender os móveis da casa. Ainda havia a dívida do imóvel. Nessa época, ele havia mantinha uma relação amorosa com Hendrickije Stoffels, que fica grávida e dá à luz uma menina. Rembrandt resolve dar o nome da filha de Cornelia, como havia tentado dar a duas outras filhas que tivera com Saskia e que tinham morrido. As dificuldades financeiras se ampliam. Em julho de 1656 foi feito um inventário dos bens do mestre: 363 lotes, entre eles coleções de desenhos, gravuras e pinturas de grandes mestres italianos e flamengos. Tudo foi vendido em leilão para pagar suas dívidas. Em seguida, também sua casa é vendida. 

Rembrandt se apega ainda mais a Tito, seu único filho com Saskia que alcançou a idade adulta. Era um menino ruivo, inteligente, mas de saúde delicada. Dele, Rembrandt fez belíssimos retratos. O filho agora era o modelo preferido do pai.


Tito vestido como monge, Rembrandt
Em 1663, morre Hendrickije, sua última companheira. Eles já viviam em uma casa modesta. De tão pobre agora, Rembrandt teve que vender a sepultura onde Saskia havia sido enterrada. O preço de seus quadros voltam a subir um pouco e ele recebe novas encomendas. Sua pintura estava agora cada vez mais próxima de suas lembranças da obra de Ticiano. As pinceladas eram ainda mais densas e ele deixava algumas telas sem finalizar, sem o “último toque”, como o velho Ticiano fazia.

Tito se casa com Magdalena van Loo em fevereiro de 1668 e logo ela fica grávida. Rembrandt vibra com a ideia de ser avô. Mas em setembro, Tito morre. Rembrandt se prostra numa tristeza profunda, quase não sai mais de casa, onde vive com sua filha Cornelia, que agora tinha 15 anos. Quase não se alimenta mais. Em março seguinte, vai assistir ao batizado de sua neta, que recebeu o nome de Tita. Em seguida, morre também a mãe da menina. Rembrandt mergulha mais do que nunca na pintura, como remédio para tanta tragédia. Assim como Ticiano, que também perdeu um filho predileto, Rembrandt se agarra às cores de sua palheta, à sua pintura. Pinta alguns autorretratos, como o fez durante toda a vida.

Em 1669 morre o grande mestre da pintura holandesa. Morre pobre e quase solitário, deixando uma filha e uma neta.


Provavelmente um dos últimos autorretratos de Rembrandt:
Autorretrato com palheta e pinceis, 1665

sexta-feira, 5 de julho de 2013

Mestres do Renascimento: Obras-Primas Italianas

O Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo fará uma exposição com 57 obras históricas assinadas por Leonardo da Vinci, Michelangelo, Rafael, Ticiano, Tintoretto, Giorgione, Veronese, Correggio, Bellini e outros. A mostra Mestres do Renascimento: Obras-Primas Italianas será inaugurada no próximo dia 13 de julho.

Dois dos três andares do CCBB serão ocupados pelos artistas de Florença e Roma, mas a partir do subsolo do prédio os visitantes serão direcionados para ver as obras divididas em cinco núcleos espalhados em quatro andares, com pintores florentinos, romanos e  venezianos. A exposição será uma grande oportunidade para entender a evolução desse movimento artístico, o mais influente do Ocidente, que foi o Renascimento, onde brilharam nomes como Leonardo da Vinci, Tintoretto, Rafael, Ticiano e Veronese, e muitos outros.

Neste artigo e nos próximos falaremos sobre alguns dos mestres que estarão na exposição do CCBB,  tentando mostrar um pouco de sua biografia e de como trabalhavam os pintores renascentistas, que usavam a técnica de pintura em camadas (velatura) e com pinceladas esfumaçando as tintas (sfumato). Neste, iniciaremos falando de Ticiano.

Amor sagrado e amor profano, de Tiziano, 1514, Galeria Borghese, Roma
TIZIANO VECELLIO

Autorretrato, Tiziano, 1562
Ticiano foi um pintor italiano, da chamada Escola Veneziana, que criou uma importantíssima obra pictórica. Ele é considerado como um dos maiores retratistas de seu tempo, especialmente porque tinha muita facilidade em captar as características pessoais daqueles que retratava.

Ticiano nasceu na pequena Pieve di Cadore, na província de Belluno, perto de Veneza, por volta de 1488. Quando ele nasceu, nasceram também dois outros gigantes da pintura italiana: Rafael e Michelangelo.

A importância de Ticiano na história da arte deve-se ao fato de que ele, mesmo não tendo o gênio de Leonardo da Vinci e nem a personalidade forte de Michelangelo, deixou para seus contemporâneos e para a posteridade uma concepção de pintura verdadeiramente revolucionária, pois foi ele quem libertou a pintura dos limites da linha e da forma, dando todo o poder às cores. Por isso sua pintura é classificada por Heinrich Wölfllin (em Conceitos Fundamentais de História da Arte) como pictórica. A pintura linear – praticada por todos os artistas até então e mesmo hoje em dia – é uma técnica que respeita a forma das figuras, utilizando inclusive das linhas para descrever detalhes.

Madalena, Tiziano - esta tela
estará no CCBB
Não havia nenhum aspecto do mundo, nenhum tema que não chamasse a atenção deste grande pintor. No Museu do Prado, de Madrid, Espanha, pude ver pessoalmente e me encantar com a imensa capacidade de trabalho e perfeição técnica alcançada por este mestre veneziano. Ticiano trouxe ao mundo um novo ideal de beleza, inspirado na realidade, e realçado por um colorido totalmente novo para a pintura de seu tempo. Por isso Cézanne, pintor francês mais moderno, disse: “A pintura moderna nasceu em Veneza, com Ticiano”. E André Malraux completaria mais tarde: “Porque a obra de Ticiano traz a todos os pintores mais do que um ensinamento: uma liberação. Ele lhes desata as mãos.”

Ticiano nasceu em uma família de magistrados, mas os detalhes de sua infância são desconhecidos. Sabe-se que aos 12 anos de idade foi enviado a Veneza para estudar desenho, junto com seu irmão Antonio, pois seu talento já tinha sido notado por seu pai. Seu primeiro mestre foi um pintor de mosaicos, que ele logo abandona para ir estudar no atelier de Giovanni Bellini, considerado um dos melhores pintores de seu tempo. Mas logo em seguida Ticiano muda novamente de atelier e vai estudar com Giorgione, dono de um estilo mais flexível com relação às regras da época. Mas Giorgione morre em 1510, com apenas 33 anos, durante uma das epidemias de peste que assolou a Itália e, em especial, Veneza. Seu outro mestre, Bellini, morrerá em 1516, também por causa da peste.

Violante, Tiziano, 1515-1518
Quando o jovem Ticiano vivia em Veneza, esta cidade passava por um de seus períodos mais prósperos: era a cidade mais populosa e dominava o comércio do mar mediterrâneo. Mas seus ricos aristocratas voltaram-se para o interior do continente que hoje forma a Itália, investindo em terras e promovendo a construção de casas e edifícios. A atividade agrícola era bastante desenvolvida também. Veneza vivia em grande prosperidade e abundância. Do ponto de vista cultural, esta cidade também se destacava. Os ideais do Humanismo, a presença de artistas e intelectuais de diferentes origens, faziam com que em Veneza se pudesse se expressar mais livremente, inclusive mantendo mais independência em relação à Santa Sé. Por lá passaram o alemão Albert Dürer, Leonardo da Vinci e Michelangelo. Entre inúmeros outros grandes nomes das artes e das ciências.

Ticiano se deixou impregnar por essa cultura, posteriormente intitulada de Renascimento, e se aproximou também dos filósofos neoplatônicos. Em Veneza, além dos ateliês de Giovanni Bellini e Giorgione, com quem estudou, lá também viviam inúmeros outros artistas trabalhando em seus ateliês e oficinas, como Lorenzo Lotto, que também estará no CCBB.

Ticiano absorveu toda a clientela de Giorgione (após a morte deste), que era feita dos aristocratas locais. Mas atraiu também os interesses de príncipes das pequenas e ricas cortes da Itália central: Parma, os ducados de Este e Ferrare, Gonzaga e Mântova. Carlos V, o monarca francês, teve um retrato pintado por Ticiano em 1530. Isso atraiu ainda mais encomendas para o atelier de Ticiano.

Mater dolorosa, Tiziano, 1554, Museu do Prado, Madrid
Ele já dominava a técnica da arte pictórica e sua pintura era enérgica, dramática, colorida, características desconhecidas até então na pintura veneziana. Sua fama e o respeito por ele, por parte de outros artistas, só aumentava.

Começaram seus anos de intensa atividade, recebendo as mais diversas encomendas, desde a pintura de retratos a outras com temas mitológicos, alegóricos, religiosos. Sua capacidade de pintar paisagens o tornava o verdadeiro herdeiro de Giorgione. Muitos comerciantes flamengos e alemães presentes na cidade também lhe encomendavam pinturas.
Ticiano tornou-se o pintor oficial da República de Veneza e sua sobrevivência estava assegurada – não fosse pela quantidade de encomendas que recebia – também por um salário de cem ducados por ano. Ticiano ocupou esse cargo de pintor oficial de Veneza por mais de 60 anos.

Sua residência  e seu atelier sempre foram em Veneza. Lá também abriu uma loja, junto com seu irmão Francesco que a administrava, onde ele vendia suas obras.

Em 1525, Ticiano casou-se com Cecília Soldani, com quem já tinha dois filhos. Mas ela faleceu ao dar à luz à terceira filha, Lavínia. Abatido pela dor, Ticiano não consegue mais trabalhar por vários meses. Aos poucos sua vida vai voltando ao normal, mas Ticiano nunca mais se casou com ninguém. Dedicou-se aos filhos: Pomponio, que seguiu a carreira eclesiástica; Lavínia, que se casou com um nobre rico; e Orazio, o filho mais próximo a Ticiano, manteve-se ao lado do pai, ajudando-o em seu trabalho.

Ticiano faleceu em 27 de agosto de 1576, um mês depois de seu filho Orazio. Ambos foram acometidos pela peste. Ticiano não deixou discípulos diretos, mas a sua grande lição – a pintura pictórica onde impera o colorido, e ainda mais seus ideais humanistas e progressistas – ficou para as futuras gerações como um exemplo de artista a ser seguido.

Uma pequena amostra do que foi este grande pintor, poderá ser vista nesta exposição do CCBB.
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Exposição:
Mestres do Renascimento: Obras-Primas Italianas
Centro Cultural Banco do Brasil - CCBB
Rua Álvares Penteado, 112
Centro - São Paulo
Metrô: Sé e São Bento

quarta-feira, 19 de junho de 2013

Os mestres do Renascimento em São Paulo

Madalena, de Ticiano
O Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo fará uma exposição com 57 obras históricas assinadas por Leonardo da Vinci, Michelangelo, Rafael, Ticiano, Tintoretto, Giorgione, Veronese, Correggio, Bellini e outros. A mostra Mestres do Renascimento: Obras-Primas Italianas será inaugurada no próximo dia 13 de julho.

No ano passado, uma outra grande exposição com os pintores do Impressionismo (Paris, impressionismo e modernidade) atraiu 325 mil pessoas ao CCBB em São Paulo. Animados com isso, os curadores resolveram trazer mais uma mostra de peso, com peças de um dos maiores movimentos artísticos da história da arte, o Renascimento.

Os curadores da exposição serão a historiadora de arte italiana Cristina Acidini, do Museu da Cidade de Florença e Alessandro Delpriori, estudioso do Renascimento. As obras são provenientes de diversos museus italianos e de coleções privadas, informa o texto de divulgação do CCBB. A exposição, inédita no Brasil, reúne artistas do século XVI atuantes em Florença, Roma, Milão, Veneza, além de Ferrara e Urbino.


Cristo benedicente, Rafael Sanzio
Dois dos três andares do CCBB serão ocupados pelos artistas de Florença e Roma, mas a partir do subsolo do prédio os visitantes serão direcionados para ver as obras divididas em cinco núcleos espalhados em quatro andares, com pintores florentinos, romanos,  venezianos. A exposição será uma grande oportunidade de entender a evolução desse movimento artístico que foi o mais influente do Ocidente, e onde brilharam nomes como Leonardo da Vinci, Michelangelo, Tintoretto, Rafael, Ticiano, Veronese e outros tantos.

Haverá também uma "Virada Renascentista" no primeiro dia da exposição, a partir das 15 horas do dia 13 de julho até às 21 horas do dia seguinte, sem interrupção.

Em breve, traremos mais artigos informativos e analíticos sobre essa exposição. Será muito bom para observar de perto como trabalhavam os pintores renascentistas, usando a técnica de pintura em camadas (velatura) e com pinceladas esfumaçando os pigmentos (sfumato). Além disso, fazer a comparação entre o método de trabalho de Ticiano, por exemplo, e Rafael. 

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Exposição:
Mestres do Renascimento: Obras-Primas Italianas
A partir de 13 de julho de 2013
Rua Álvares Penteado, 112
Centro - São Paulo
Metrô: Sé e São Bento
Adoração dos pastores, de Lorenzo Lotto

quinta-feira, 30 de junho de 2011

Peter Paul Rubens, um mestre para ser lembrado

Vênus e Adônis,  óleo sobre tela, 194x236cm, Metropolitan Museu of Art, New York, EUA 
Neste 28 de junho, tivemos motivos a mais para comemorar, além das nossas festas juninas: o aniversário de nascimento de um dos maiores pintores do Ocidente: Peter Paul Rubens, a quem Eugène Delacroix (pintor francês) deu o título de "o Homero da pintura".


Autoretrato, 1632
Rubens nasceu em 1577 na pequena cidade de Siegen, na Vestfalia, próximo a Colônia, cidade alemã. Para lá tinham fugido seus pais que apoiavam a independência dos Países Baixos da dominação espanhola, que perseguia os protestantes. Mas o exílio também foi provocado pelo fato de seu pai, Ian Rubens, ter sido amante de Ana de Saxônia, mulher de Guilherme I, e a punição era com pena de morte.


Rubens não tinha completado dez anos de idade quando seu pai morreu, ainda no exílio. Sua mãe resolveu voltar para Antuérpia (hoje na Bélgica), com seus dois filhos.


Desde cedo, Rubens queria pintar. Aprendeu desenho copiando as figuras que via numa bíblia. Passando por vários ateliês de pintores, onde estudo a técnica da pintura, foi admitido na Corporação dos Pintores de Antuérpia, como um dos mestres. E tinha somente 21 anos.


Aos 23, realizou seu sonho de ir para a Itália, apoiado por sua mãe. Em Veneza, copia Veronese, Tintoretto e Ticiano, de quem fez 21 cópias.


Em 1603, Rubens é indicado pelo duque de Mântua a quem se ligara, Vincenzo Gonzaga, para uma missão diplomática junto ao rei Filipe III da Espanha. Era o começo de sua vida política, do pintor que também sonhava com um mundo que vivesse em paz.


O Artista e sua mulher sob um caramanchão de
Madressilva, 1609-1610, óleo sobre tela, 174x143cm,
Alte Pinakothek, Munique, Alemanha
Em 1608, sua mãe adoece gravemente e ele volta para casa, nunca mais regressando à Itália. Ao chegar de viagem, sua mãe tinha morrido. Resolve ficar e trabalhar em sua cidade. No ano seguinte foi nomeado pintor da Corte e recebeu autorização para morar em Antuérpia. Logo, ele começa a receber uma quantidade tal de encomendas, que não conseguiria dar conta se não fosse a ajuda de seus alunos. Torna-se um homem rico, com a venda de seus quadros. Casa-se com Isabella Brant, de quem foi eterno apaixonado, tendo pintado o rosto de sua esposa em diversos quadros.


Rubens era famoso em toda a Europa. Pela França, Espanha e Inglaterra, seu trabalho era conhecido, admirado e solicitado. Para atender a tantas encomendas que chegavam de todos os lugares, ele tinha uma rotina de trabalho diária que começava às quatro da manhã e terminava às cinco da tarde. 


Nesse período, montou um atelier que era uma verdadeira fábrica de pinturas, com diversos discípulos e ajudantes, que o auxiliavam na execução das encomendas. Dois de seus discípulos se tornaram famosos como ele: Peter Brueghel, o Velho, e Anton Van Dyck.


Clara Serena Rubens, 1615-1616,
óleo sobre tela, 37x27cm, Museu de
Liechtenstein
Em 1626, sua esposa morre aos 34 anos de idade, deixando-o desesperado e sem rumo. Para fugir do sofrimento da perda de Isabella, ele ainda viaja mais, em missões diplomáticas, pela Espanha, França e Inglaterra. Era o período que ficou conhecido como a Guerra dos 30 Anos, guerra provocada por razões religiosas e comerciais. A luta da Igreja Católica contra a Reforma Protestante chegava a ser sanguinária. Rubens morreu antes de ver terminada a guerra entre esses países.


Rubens era - como descreve Gilles Néret numa biografia do pintor - um homem erudito, além de um humanista cristão. Apaixonado pela antiguidade clássica, ele também escrevia em várias línguas, incluindo latim, além de ser arquiteto amador. "O capelão da corte de Bruxelas - diz Néret - descreveu-o como 'o pintor mais culto do mundo".


Depois de Ticiano, o pintor que ele mais admirava era Caravaggio, de quem fez versões de pinturas. Em 1614 ele pinta a tela "A Sagrada Família", cuja Virgem foi inspirada no rosto de sua esposa, e o pequeno João Batista era o seu próprio filho, Albert. Essa pintura era a virada em direção a uma arte mais livre, mais madura. E mais barroca. Envolvido na luta contra a Reforma, ele, que era católico, tornou-se o grande pintor também do catolicismo. 


As Três Graças, 1639, óleo sobre tela, 500x617cm,
Museu do Prado, Madri, Espanha
Mas as figuras pintadas por ele possuiam uma extrema sensualidade e os corpos de nus femininos povoavam suas telas, com mulheres rosadas, rechonchudas, sensuais. Mesmo nas pinturas de inspiração bíblica ou clássicas, via-se a beleza dos corpos nus das mulheres flamengas.  "Suas madonas e santos estão demasiado próximos da carne a partir da qual foram pintados", diz  Gilles Néret, que também destaca várias características desse mestre do Barroco: efeitos dramáticos e grandiloquentes, apaixonado culto ao movimento, busca do dinâmico em suas enormes telas, onde cada face é expressiva. 


Ele não distingue muito Nossa Senhora da deusa Vênus. Seus corpos - mesmo os dos santos e anjos - são corpos "claramente habitados" e muitos haviam que se incomodavam com a nudez e com a "excessiva fisicalidade, pelo realismo imoderado: o grão perlado das dobras de carne roliça" das pinturas de Rubens. 


Esse autor ousa dizer que Rubens "foi quem melhor transmitiu as cores e textura do corpo humano". Podemos acrescentar que foi Rubens o grande pintor que deu ênfase ao corpo da mulher, mostrando-o ao mundo com toda a sua pureza, beleza e sensualidade. Isso em si já era contra os cânones anteriores da pintura, impostos pela Igreja Católica, que exigia que as mulheres fosse pintadas quase que totalmente cobertas, como santas. Fora o fato de que os modelos eram sempre masculinos, como em Michelangelo.


É interessante observar isso: Ticiano, Caravaggio, Rubens, Rembrandt, Vermeer, Vélazquez... grandes mestres da pintura universal, têm uma coisa em comum além da excelência técnica: são pintores profundamente humanos e voltados à representação da figura humana de sua época. Entraram para a história não somente como grandes pintores, mas também como homens que, vivendo em um tempo específico, possuiam algo de revolucionário em seu tempo, trazendo e fazendo parte das mudanças que se operavam em seu mundo.


Quiçá os pintores de hoje fossem tão humanos assim...


Retrato de Susanna Fourment, 1625, óleo sobre tela,
National Gallery, Londres, Inglaterra

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Trabalho inútil? - Uma defesa da repetição

Sísifo, de Tiziano, pintura de 1549
Nestes dias, minhas tarefas como membro de um atelier de arte realista têm-me suscitado reflexões e angústias. Há uma luta que travo com o que desenho, luta livre entre eu e a forma que teima em me dominar. E eu que teimo em dominá-la. Nessa dialética, olho para o mundo à minha volta. E quando olho, acho que devo voltar ao meu desenho.

Viver atualmente, especialmente nas grandes metrópoles, é submeter-se a padrões de vida estonteantes. A velocidade da máquina desse sistema formado pela tecnologia e pela informação, parece impor às pessoas a necessidade de uma rapidez de mesma intensidade. Transformando os indivíduos em frenéticas partículas mantenedoras do sistema maior, o capitalismo contemporâneo.

Com isso, temos uma sociedade ansiosa, pautada pelo efêmero, que parece repudiar o que é lento, sistemático, metódico. Num tempo em que a superficialidade predomina e onde reina a estética pessoal que incentiva o individualismo, há ainda, mesmo assim, os que resistem.

Falo agora de Arte.

A chamada Arte Contemporânea é, assim como o sistema todo atual, efêmera, passageira. Criar, hoje, é  ter uma ideia instantânea; seu produto é um objeto construído em instantes, para uma observação apenas superficial. O “produto” desse ato criador não necessariamente precisa ser mais do que um simples arrazoado escrito ou transformado em vídeo. Ou qualquer coisa.

Há ainda, mesmo assim, os que resistem.

Desenhar – um ato que não se pratica mais no sistema de arte atual – é um trabalho lento, moroso, doloroso até. Dura talvez meses, talvez anos, talvez uma vida inteira. O artista fica lá, arqueado sobre uma folha de papel, ou sobre uma tela, repetindo movimentos, extraindo formas, linhas, massas, numa árdua tarefa de buscar a perfeição que faz o Mestre. Coisa mais “fora de moda”, para o sistema acima, não pode ter...

Lembro de uma entrevista com meu amigo, o artista Rubens Ianelli que recorreu a um dito do pintor Van Gogh onde este comparou o ato de desenhar ao trabalho de abrir um buraco numa chapa de ferro, usando-se apenas uma lima... Porque é isso, porque há um poder intrínseco à repetição... Como diz o poeta Affonso Romano de Sant’Anna, Poesia (num sentido amplo) é repetição. Acrescento: Música é repetição, Pintura é repetição...

Penso no mito grego de Sísifo, o que desafiou os deuses. Por sua afronta, foi condenado a, por toda a eternidade, empurrar uma pedra montanha acima, até o topo. Chegando perto do topo, a pedra rolava para baixo e ele tinha que recomeçar tudo. A vida do artista se assemelha muito ao trabalho de Sísifo. Aparentemente inútil, aparentemente uma condenação. Albert Camus, escritor franco-argelino disse certa vez que Sísifo é a imagem daquele que vive sua vida ao máximo e que mesmo que outros não vejam sentido no que faz, ele continua executando sua tarefa diária. E compara esse mito com a vida dos trabalhadores: "O operário de hoje trabalha todos os dias em sua vida, faz as mesmas tarefas. Esse destino não é menos absurdo, mas é trágico quando em apenas nos raros momentos ele se torna consciente", diz ele. Mas diz também, e tão bem, o poeta Vinícius de Moraes em Operário em Construção: “O operário faz a coisa e a coisa faz o operário”... Nessa aparente falta de sentido de seu trabalho, oculta-se a genialidade.

E o domínio técnico, que transforma simples mortais em gênios. A repetição cria o mestre. Cria também calos nas mãos, marcas no corpo e na alma. Assim como cria vícios, acomodamentos e dores. Porque há momentos em que o artista necessita se recriar, rolar de novo a pedra montanha acima. Recomeçar. Nunca mais do zero, pois a experiência anterior joga a seu favor.

Ainda bem que a vida não se resume à tensão masoquista pós-moderna. Há ainda o trabalho lento, metódico, de bordadeiras, de rendeiras, de artesãos, de poetas, de pescadores solitários lançando sua rede, de agricultores silenciosos lançando sementes ao solo. E de músicos. Há o trabalho diário do violonista, sentado horas e horas diante da partitura, violão abraçado ao peito, dedilhando acordes fáceis e complexos, num ritual sagrado de repetição em busca da perfeição, do domínio absoluto do instrumento, do seu violão que vai tocar aquela sonata que irá enlevar a alma dos que o irão ouvir...

Ou o trabalho solitário e silencioso do pintor em seu atelier, anos a fio debruçado sobre uma folha em branco, ou sobre uma tela, trabalhando o desenho, achando a proporção certa, dada pela observação dos movimentos da luz. Trabalho quieto de olhar para as coisas do mundo e ver na realidade o que a maioria não vê. E transformar o que vê no desenho ou na pintura perfeitos. Não uma mímese perfeita do real, mas a captação do momento pictórico tornado perfeito. Tornada perfeita a expressão dos movimentos da luz que incide sobre o mundo, em suas infinitas gradações que vão da sombra mais profunda à luminosidade mais incandescente...

Sim, é necessário empurrar a pedra morro acima, diariamente. Repetição é movimento e movimento é Vida.