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sábado, 3 de abril de 2010

"Vejo o tempo obrar a sua arte..."

Tela "Os operários" de Tarsila do  Amaral, uma das pintoras modernistas brasileiras.
Tela "Os operários" de Tarsila do Amaral, uma das pintoras modernistas brasileiras.
"Vejo o tempo obrar a sua arte
tendo o mesmo artista como tela
Modelando o artista ao seu feitio

O tempo, com seu lápis impreciso
Põe-lhe rugas ao redor da boca
Como contrapesos de um sorriso”.

(Tempo e artista, Chico Buarque, 1993)

Muiitas vezes nos perguntamos o porquê de necessitarmos, de vez em quando, olhar para o passado. É como nossa âncora, que, apoiada no leito do rio, nos fornece segurança. Olhar para trás com “o olho de águia do pensamento”, como dizia Marx, para sabermos exatamente onde pisamos. Ou para compreendermos melhor o momento presente, o que facilita nossa ação.

Voltemos à Semana de Arte Moderna de fevereiro de 1922 no Brasil, um evento que, por si só, seria desimportante, não fosse o contexto histórico em que se deu, tanto nacional quanto internacionalmente.

O mundo capitalista produzira uma Primeira Guerra sangrenta, enquanto na Rússia a Revolução Socialista saíra vitoriosa em 1917. O Brasil, especialmente São Paulo, se industrializava, e uma parcela muito grande de imigrantes chegava, em busca de trabalho. Greves operárias muito importantes estouraram em 1917, mesmo ano em que a pintora Anita Malfatti expôs pela primeira vez suas pinturas com clara influência do Expressionismo alemão, que tanto chocou o escritor Monteiro Lobato, avesso às novidades vindas de fora.

No próprio ano de 1922, enquanto os cabeças do movimento modernista preparavam a Semana de Arte Moderna, tenentes começavam a se sublevar nos quartéis e a preparar a famosa Revolta do Forte de Copacabana. Também germinava e frutificava a criação do Partido Comunista do Brasil, em 25 de março. Nas Artes, os sopros das mudanças que ocorriam na Europa desde o século passado, começava a incomodar nossos artistas, levando-os a buscar novos caminhos, na literatura, na música, na pintura...

Na pintura, predominava a arte acadêmica, monitorada pela Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro. Mantinha a tradição, ou, melhor dizendo, mantinha os ensinamentos que começaram com a chegada da Missão Artística Francesa, lá pelos idos de 1816. Predominava a pintura de figuras ilustres, de cenas bíblicas, de heróis e acontecimentos nacionais relevantes. É quando surge o pintor Almeida Júnior, formado inicialmente dentro do ambiente acadêmico. Este artista, depois de uma temporada na França de onde voltou em 1882, resolveu voltar os olhos para a temática regional, afirmando sua vontade de identidade com uma nação que fosse soberana. Inspirado na revolução estética do Realismo de Gustave Courbet (que preferia “pintar a verdade do que a formosura”), inaugurou o Realismo no Brasil e a primeira grande mudança nas Belas Artes brasileiras, voltando seu cavalete para a gente do povo. Ele foi a semente da futura ruptura estética causada pela Semana de 22.

O movimento modernista e modernizante, de um Brasil que se industrializava e caminhava para o seu segundo ciclo civilizatório representado pela Revolução de 30, espalhou-se em ondas pelo país, afetando as nossas artes.

Mário Zanini, Igreja de São Vicente, 1940
Em 1935, no centro de São Paulo, um grupo de trabalhadores iniciou o que ficou conhecido por Grupo Santa Helena. Eles se reuniam aos finais de semana no atelier de Francisco Rebolo localizado no Edifício Santa Helena, Praça da Sé. Para lá acorriam os pintores de parede Alfredo Volpi e Mário Zanini, o ferroviário Clóvis Graciano, o ourives Manoel Martins, o mecânico Alfredo Rizzoti, o dono de açougue Fúlvio Penacchi, o figurinista e bordadeiro Aldo Bonadei e o professor de desenho Humberto Rosa. Todos de origem humilde. Todos inscreveram seus nomes com fortes tintas na História da Arte brasileira! Pesquisando e estudando sozinhos, foram reconhecidos muito depois dos eventos da Semana de Arte Moderna, pela qualidade de suas obras.

No Rio de Janeiro, em 1931, cria-se o Núcleo Bernardelli. Seu primeiro presidente foi o artista Edson Motta, ligado à Escola Nacional de Belas Artes, mas que sonhava em trazer o modernismo para sua cidade. Organiza um Salão de Artes em 1931 com a finalidade de apresentar uma nova linguagem artística. É lá que se destacam pela primeira vez os artistas Manoel Santiago, Roberto Burle Max, Quirino Campofiorito, Rui Campelo, Cândida Cerqueira, entre outros.

Em 1938, no Rio Grande do Sul, é criada a Associação Riograndense de Artes Plásticas Francisco Lisboa, onde despontou a genialidade do artista Carlos Scliar (que foi durante muito tempo filiado ao PCdoB, como tantos artistas pelo Brasil a fora).

No Paraná, em 1940, destaca-se o gravurista Poty Lazzarotto e em 1948 é criada a Escola de Música e Belas Artes de Curitiba, com destaque para o pintor Lóio Pérsio.

Em Fortaleza, Ceará, em 1941, criou-se o Centro Cultural Belas Artes, onde se destacaram os artistas Antonio Bandeira, Inimá de Paula e Aldemir Martins. Este último, ganhou diversos prêmios com seus temas nordestinos, como na Bienal de São Paulo em 1955, e de Veneza em 1956.

Na Bahia, a partir de 1944 começou a ofensiva modernista em Salvador, com Carlos Bastos, Genaro de Carvalho, Rubem Valentim, Carybé, e outros.

Ainda em 1944, em Minas Gerais, o prefeito de Belo Horizonte Juscelino Kubitschek, organiza a primeira Mostra de Arte Moderna, além de apresentar ao público a arquitetura de Oscar Niemeyer.

Em Recife, no ano de 1950 criou-se a Sociedade Moderna do Recife, com os artistas Cícero Dias, Lula Cardoso Ayres, Reinaldo Fonseca e Francisco Brennand. Cícero Dias sempre se manteve fiel à temática de sua terra natal e seus quadros refletem a rica cultura pernambucana.

Em Natal, Rio Grande do Norte, em 1951 aconteceu a Primeira Mostra Moderna, nos Salões da Cruz Vermelha, destacando-se os artistas Dorian Gray Caldas, Newton Navarro e Ivan Rodrigues.

No Maranhão criou-se o Núcleo Eliseu Visconti, em 1959, com os artistas e intelectuais Ferreira Gullar, Luci Teixeira, Floriano Teixeira, Lago Burnett e Bandeira Tribuzi, que tinham a finalidade de renovar as artes maranhenses.

Ainda nos anos 40 foram criados o Museu de Arte de São Paulo (MASP), com o patrocínio de
Assis Chateubriand, assim como o Museu de Arte Moderna, também na capital paulista, e o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Em 1951, fruto de todo esse processo, é realizada a primeira Bienal de Arte de São Paulo.

Cena da peça de teatro do CPC da UNE:
A mais-valia vai acabar seu Edgar
Indo um pouco mais além, podemos dizer que os ventos da modernidade brasileira alcançaram os anos 60, com a fundação de Brasília, a Bossa Nova, o Teatro de Arena, o CPC da UNE, as Neovanguardas, o Cinema Novo, o Tropicalismo. Todos esses eram movimentos que guardavam uma crença na história e no sujeito, o que nos leva a refletir: nós, artistas, emitíamos nossos pontos de vista naquela época! Emitimos hoje? Alguém ouve o que não é dito? Ou diz-se hoje para uma minoria de iniciados que tratam o público dos museus e exposições como ignorante e atrasado porque simplesmente o público não “entende” e não gosta da sua “arte”? Como disse o poeta Ferreira Gullar sobre uma Instalação artística: “De gato morto e ovo frito no prato, sinceramente não sou obrigado a gostar!”

Porque hoje assistimos a essa “arte” que se voltou a falar para si mesma, quando deveria abandonar esse autismo-narcisismo e voltar a falar do mundo e da vida. A arte da moda, a arte-mercadoria, arte-coisa, arte-objeto, arte-conceito, arte discurso. Antiarte não é Arte. O cálculo, mesmo que conceitual, da arte contemporânea me faz lembrar o bom e velho Mário de Andrade em sua Ode ao Burguês, de onde extraio o verso que encerro por hoje a minha revolta:

“Fora os que algarismam os amanhãs!”

Nós, os antropófagos, e a Semana de 22

Cartaz da Semana de Arte Moderna de 1922
Em junho de 1556, os índios caetés – que habitavam uma parte do litoral alagoano – fizeram um verdadeiro banquete antropofágico: devoraram o primeiro bispo do Brasil (que era português), dom Pedro Fernandes de Sardinha. Por causa disso, os índios foram dizimados em cinco anos de guerra. “Tupi, or not tupi, that is the question”, diria Oswald de Andrade, 370 anos depois, em seu Manifesto Antropófago.

Em 1913, a Pinacoteca de São Paulo realizou uma Exposição de Arte Francesa, trazendo da Europa exemplares de mobiliário e decoração franceses, além de pinturas, com o intuito de inspirar, na sociedade paulistana, a estética do bom gosto europeu. A elite brasileira fazia questão, desde o século 19, de se manter em conformidade com a cultura europeia, importando os valores estrangeiros. Isso gerava também, é claro, alguns aspectos de distinção de classe, uma vez que não desejava ser confundida com negros, índios, mulatos, mestiços. Mais uma vez Oswald: “Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais. E nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental”...

Mas o que esses dois fatos têm em comum? Exatamente a Semana de Arte Moderna de fevereiro de 1922, que se realizou há exatos 88 anos completados no próximo dia 13 de fevereiro.

A nata da sociedade paulistana que, naquelas três noites, subiu as escadas do Teatro Municipal de São Paulo – vestida rigorosamente à caráter para assistir a apresentações musicais de Heitor Villa-Lobos e Guiomar Novais, conforme dizia um pequeno reclame escondido num canto dos jornais da época – jamais poderia imaginar de que seria, muito à contragosto, testemunha histórica de um momento de virada na vida artística e cultural brasileira. Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Graça Aranha, Menotti Del Picchia, Di Cavalcanti, Anita Malfatti e outros jovens artistas brasileiros convencidos de que um salto havia que ser dado – um salto para DENTRO do Brasil, pois os ventos da modernidade forçavam esse salto – chocaram a platéia do teatro lotado, enquanto Ronald de Carvalho declamava em alto e bom som o poema “Os Sapos”, de Manuel Bandeira, que criticava o gosto da refinada poesia parnasiana:

“Em ronco que aterra,
Berra o sapo-boi:
- "Meu pai foi à guerra!"
- "Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!"
O sapo-tanoeiro,
Parnasiano aguado,
Diz: - "Meu cancioneiro
É bem martelado.”

As linhas neoclássicas dos detalhes arquitetônicos do Teatro Municipal pareciam vir abaixo! Vendo-se pega numa espécie de flagrante, a elite paulistana desabou em uivos, gritos e vaias, e o caos tomou conta da Semana de Arte Moderna de 1922. Nos dias que se seguiram, os jornais registravam aquele evento como uma “verdadeira falta de respeito” à gente tão refinada, à nata da sociedade paulistana! Um bando de rapazes e moças enlouquecidos, recitando poemas sem rima, sem metro, e mostrando pinturas e esculturas que eram um acinte ao gosto neoclássico e parnasiano da época! Um horror! As damas e os cavalheiros de Higienópolis e dos Campos Elíseos tinham sido acintosamente agredidos por aquele bando de loucos futuristas (denominação que se dava aos modernistas na época).

Mas além dos gritos histéricos e dos apupos, as senhoras e os senhores deixaram bilhetes malcriados atrás das pinturas expostas no hall do teatro, incapazes de achar beleza num homem que parecia sofrer do fígado de tão verde, numa tela de Anita Malfatti. Os modernistas haviam conseguido sacudir a modorrenta e provinciana elite de São Paulo, como o desejara Di Cavalcanti, que havia sugerido a Paulo Prado (escritor) a realização de "uma semana de escândalos literários e artísticos de meter estribos na burguesiazinha paulistana".

Eram os índios caetés de volta ao palco, sobre os ombros de Oswald de Andrade, Anita Malfatti, Mário de Andrade, Di Cavalcanti e dos outros! A elite brasileira concentrada no Rio de Janeiro e em São Paulo, vivia sob os eflúvios da vida europeia, sua referência para todos os seus valores. A Europa estava lá para ser imitada e idolatrada! Nada da cultura da gentalha nacional, “peste dos chamados povos cultos e cristianizados”, diria Oswald de Andrade.

A Semana de Arte Moderna amplificou-se ao longo das décadas, e suas influências se seguiram além das três noitadas caóticas e ruidosas. Teriam feito ruído, os índios, enquanto comiam o bispo? Sua antropofagia alcançou os tempos novos que começavam com o modernismo brasileiro: já que “o de fora” é inevitável e deve ser assimilado, que ele seja primeiro deglutido! Deglutição pós deglutição, nas artes plásticas, Anita Malfatti e Di Cavalcanti, e depois Portinari, Tarsila do Amaral, Clovis Graciano, Carlos Scliar, Quirino e Hilda Campofiorito, Lívio Abramo – e tantos outros – expressaram em suas obras o efeito colateral da refeição cujo prato era (sempre) o modelo europeu: já que a nova estética exigia novos pincéis e novas formas de pintar, que se pintasse o Brasil. Que se modernizasse o Brasil.

Alguns dos modernistas de 22:
Mário de Andrade e outros
Essa onda modernista alcançava também o outro lado da cidade, a região do Brás e do Cambuci, aonde viviam os operários e os imigrantes pobres, como o pintor Alfredo Volpi. Esses artistas que estavam desse lado da cidade, criaram o chamado Grupo Santa Helena, que era uma comunidade de artistas que se encontravam para trabalhar e aprender juntos num mesmo prédio do centro de São Paulo. Desses modernistas de outro calibre – uma vez que não eram intelectuais como os outros – surgiram pintores como Rebolo, Aldo Bonadei, Clovis Graciano, Mário Zanini, etc, que foram reconhecidos a partir da década de 30.

Hoje, ano 454 da Deglutição do Bispo Sardinha, os efeitos da Semana de Arte Moderna de fevereiro de 1922 ainda continuam lançando suas questões: como defender a cultura brasileira em meio a um mundo “globalizado”? Como defender as artes plásticas dessa “arte” vazia de sentido e conteúdo, minimalista e cansativa (e já agonizante)? Como argumentar contra o idealismo conceitual que antecede a obra? Como permitir que possibilidades infinitas não sejam subjugadas pela mesmice estética imposta pelo sistema de arte atual? Como vencer o velho problema da falta de espaço para os reclames (e obras de arte) que não sejam os preferidos da mídia? Como continuar engolindo os novos Sardinha e não sofrer de indigestão? Como voltar a meter estribos na burguesiazinha metropolitana?

Oitenta e oito anos depois da eclosão modernista no Brasil, ainda vemos, felizmente, que os componentes e as facetas da realidade são riquíssimos e inumeráveis! À contragosto do atual establishment...

Como bons antropófagos, comamos-lhe!