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segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

A palheta de Velázquez

Detalhe da obra As Meninas,
onde Velázquez se retratou
Aqueles que pintam, hoje em dia sabem a quantidade enorme de cores colocadas à disposição de qualquer palheta de qualquer um, seja estudante, seja profissional. Para cada pigmento vermelho, uma infinidade de variações que chegam às minúcias de cores chamadas de “tons de pele”; para cada amarelo, variações que vão do clássico amarelo de Nápoles, passando pelos cadmios e pelos cromos, sendo que marcas como a Winsor & Newton tem seus próprios amarelos. Mas o que pode ser uma grande facilidade para os pintores de hoje, pode se transformar nos piores pesadelos - ou nas piores obras - se o encanto consumista por tanta variedade se sobrepuser ao sempre bom e necessário costume do estudo pessoal. Todo artista necessita conhecer seus materiais de trabalho, e o conhecimento técnico deles tem grande responsabilidade no êxito de sua arte.


Ariano Suassuna retratado por mim,
num exercício com a Palheta de Apeles
(Branco, Amarelo Ocre, Vermelho, Preto),
óleo sobre tela, 40x60cm, 2014
 
Tenho feito alguns estudos com palheta reduzida, ou seja, pintando com poucas cores. Fiz 3 pinturas usando a chamada "Palheta de Apeles", o pintor grego da antiguidade que usava somente Amarelo Ocre, Vermelho, Branco e Preto. Comprovei que muito se pode conseguir com pouco, pois o que importa é o aprendizado da manipulação das cores, o domínio técnico das misturas. Mas como continuo intrigada com esse assunto, resolvi pesquisar como pintava um dos meus artistas preferidos: Diego Velázquez, o pintor espanhol.

Na minha busca por informações, fui ao site do Museu do Prado. Lá encontrei textos produzidos por Carmen Garrido Pérez, uma das funcionárias do museu. Ela é a chefe do Gabinete de Documentação Técnica, doutora em História da Arte pela Universidade Autônoma de Madrid e especialista em documentação físico-química para investigações técnicas sobre pinturas históricas. Escreveu vários livros e textos sobre o assunto. Um desses livros é o “Velázquez: técnica y evolución”, que se encontra esgotado. Mas encontrei também artigos publicados por ela, inclusive em PDF, que me trouxeram informações muito úteis, as quais compartilho aqui.

Uma das frases que Carmen repete em seus artigos, resume muito sobre o pintor espanhol. Diz ela: “Velázquez é um artista que pensa muito e pinta pouco, que descarta de sua arte o supérfluo para ficar sempre com o que é essencial”. E demonstra como ao longo de toda a sua vida o pintor sevilhano não usou mais dos que 16 cores em suas palhetas.

O bufão Dom Sebastião de Morra, 1645
Esta informação foi dada após muitos anos de estudos realizados sob o patrocínio do Museu do Prado, em seus laboratórios, a partir de experiências com Raios X e fotografias com luz infravermelha, além de outros instrumentos de medição científicos. O Gabinete de Documentação Técnica do Museu vem acumulando um grande arquivo, diz Carmen, de mostras de telas antigas e mais modernas e têm sido feito estudos muito aprofundados em obras de Zurbarán, Murillo e Velázquez.

Os dados recolhidos até agora, por esses estudos, abarcam cerca de 30 anos da carreira de Diego Velázquez, ainda faltando mais estudos sobre as etapas em que ele viveu em Sevilha e em sua segunda viagem à Itália. Mas, diz Carmen, as cores usadas por ele variaram pouco de um quadro a outro, incluindo o período em que residiu em Roma, de 1629 a 1631. Ela aponta ainda que há uma similaridade nos materiais artísticos usados por espanhois e holandeses, aproximando muito a prática técnica de Rembrandt com a de Velázquez.

As cores de Velázquez

Nos estudos de Carmen Garrido, baseados em micro-amostras de telas analisadas mediante dispersão de Raios X, ela identificou todas as cores que Velázquez teria usado ao longo de sua vida:

1 - Branco de Chumbo
2 - Amarelos - à base de Terras de Óxido de Ferro, Chumbo, Estanho, Antimônio e que hoje correpondem a: a) AMARELO DE CADMIO LIMÃO - b) AMARELO DE NÁPOLES (só usou uma vez) - c) AMARELO OCRE
3 - Vermelhos - foram detectados 3 nas análises, 01 de base de metal e 02 de terra: a) VERMELLION (base de Cinábrio, metal pesado de Sulfureto de Mercúrio) - hoje: VERMELHO DE CADMIO - b) TERRA DE SEVILHA - hoje: VERMELHO INGLÊS (Óxido de Ferro) - c) TERRA DE SENA QUEIMADA - base: Óxido de Ferro Laranja
4 - Marrons: a) TERRA DE SOMBRA NATURAL - b) TERRA DE SOMBRA QUEIMADA (bases: Óxido de Ferro e Manganês)
5 - Azuis - raramente Velázquez usou o Ultramarino, pois o preço do Lapislázuli era muito caro, pedra vinda do Afeganistão: a) AZUL DA PRÚSSIA (ou Azurita, base: Cianureto de Ferro) - b) AZUL DE COBALTO (Óxido de Cobalto ou de Alumínio) - c) AZUL ULTRAMAR
6 - Pretos - vários pretos extraídos da combustão de ossos e outros materiais. Hoje usamos o Preto de Marfim (Ivory Black)

Mais tarde ele também passou a usar um Terra Verde.
As meninas, 1656

No quadro mais conhecido deste pintor espanhol, se pode ver uma de suas prováveis palhetas, formada por 9 cores: Branco de Chumbo, Laranja (Vermellion de Cinabrio), Vermelho (Terra vermelha de Sevilha), Amarelo Ocre, Carmin, Sombra Queimada, Sombra Natural, Azul da Prússia, Preto de Fumo.

Entre seus pigmentos, Velázquez não introduziu substâncias químicas novas, e não aparece nenhum pigmento que ele já não tivesse usado, continua Carmen: “Sin embargo, en su manipulación de los pigmentos, se mostró un pintor ingenioso en un momento en que las novedades eran incontables a través de Europa”. E diz mais: “nos parece que uno de los aspectos más fascinantes de las prácticas de Velázquez fue su desviación de la teoría autorizada de su tiempo”.

Carmen Garrido diz que, salvo algumas exceções, Velázquez utilizou os mesmos pigmentos ao longo de toda a sua carreira, mudando apenas a maneira de misturá-los e de aplicá-los. Ele era “capaz de crear con sólo cinco o seis pigmentos una obra maestra”.


Menipo, 1639
As investigações técnicas sobre a obra de Velázquez no Museu do Prado têm revelado muito sobre a maneira de trabalhar de um dos maiores gênios da pintura mundial. A partir desses estudos, se tem visto que Velázquez escolheu cuidadosamente cada um dos materiais que usou para pintar, tanto por sua qualidade como por sua aplicação em cada momento. Assim, na medida em que sua técnica vai evoluindo, seus suportes e preparações de pigmentos também vão se modificando. “Los pigmentos, más o menos los mismos durante toda su carrera, irán variando en sus moliendas, en sus mezclas y en la manera de ser aplicados, ya que la evolución de su trazo así lo determina”, aponta Carmen.

Na época de Velázquez já era habitual para os pintores o uso das telas. Dependendo da etapa em que estava, ele escolhia como tecido o Linho ou Cânhamo com densidades diferentes. Ele sabia que estas texturas diversas alteravam a visão final da obra. De acordo com os efeitos óticos que ele desejasse, selecionava os suportes (telas), os pigmentos, a técnica e os recursos oportunos para conseguir materializar suas ideias.

Carmen Garrido, com sua experiência de décadas de trabalho em museus, diz que a maioria dos quadros que hoje vemos nesses espaços culturais já foram reentelados. Mas entre as obras de Velázquez do Museu do Prado existem oito com seus suportes originais, tal como o pintor os fez, o que possibilita uma grande quantidade de detalhes sobre seus métodos de trabalho, incluindo as pinceladas de provas, as costuras de pedaços de tecido adicionados, e as imprimações. “Además, estas pinturas conservan su capa pictórica en un estado próximo al de su ejecución, como puede verse en ‘La coronación de la Virgen’ o en el ‘Mercurio y Argos’”.

Uma vez colocado o tecido no chassi de madeira, era feita a preparação do tecido (muitas com cola de origem animal, para proteger o tecido da química dos pigmentos) e a imprimação. O objetivo da imprimação é o de servir de “fundo ótico” para o quadro e aos efeitos coloridos da pintura. Segundo Francisco Pacheco (pintor, escritor e sogro de Velázquez), na primeira etapa de sua carreira ele utilizava “Terra de Sevilha”, um Terra de tom ocre médio, como imprimação.

Já em Madrid, para onde se mudou em 1623, nosso pintor abandona os materiais sevilhanos e começa a trabalhar com um tecido com diferentes tipos de densidades e um trançado mais fino. Sobre ele, aplicava uma dupla camada de base, a primeira na cor branca e depois uma imprimação feita com Terra Vermelha, chamada “tierra de Esquivias” pelos pintores da escola madrilenha. Mas ele também adotou a forma italiana das preparações de tela brancas mais ou menos manchadas com cinzas ou em ocre, o que dava uma combinação perfeita para conseguir os efeitos de superfície, de luminosidade dos fundos e de suas cores.

Ainda segundo Carmen Garrido Pérez, durante a primeira viagem à Itália, Velázquez pintou dois grandes quadros: “A túnica de José” e “A Forja de Vulcano”. O primero, que se encontra no Real Monasterio del Escorial, é uma obra de experimentação com relação às telas (tela napolitana pavimentosa), os fundos (Terra napolitana) e a introdução de alguns pigmentos, como o Amarelo de Nápoles, que Velázquez não usou nunca mais. 


A Forja de Vulcano (1630), cuja imprimação
Velázquez fez só com Branco de Chumbo
Mas foi em “A Forja de Vulcano” que o pintor encontrou o caminho por onde seguirá desenvolvendo sua pintura nos anos posteriores. Sua preparação, continua descrevendo Carmen, foi aplicada com uma espátula e o Branco de Chumbo substituiu as imprimações anteriores feitas com os Terras. O Branco de Chumbo é muito opaco e denso, criando com isso um efeito ótico muito luminoso, observa ela. Velázquez dava muita importância a esses fundos bem preparados, o que se pode ver através desses exames radiográficos que mostram a evolução do pintor, tanto com os materiais como com a forma de aplicá-los, o que lhe dá uma identidade pessoal.

Carmen também observou, a partir de seus estudos técnicos, que salvo uma ou outra exceção, Velázquez nunca volta atrás em sua evolução. Quando adota um novo tipo de tela, algum material ou uma forma concreta de aplicá-los, “deixa de utilizar o anterior”. Por sobre as imprimações, ele fazia um esboço com poucas linhas para situar a composição, que também apareceu após os exames com reflectografia infravermelha. Além disso, ele "pinta siempre a la “prima”, aunque en su mente ha desarrollado con anterioridad la idea de lo que quiere llevar al lienzo. Si algún detalle no le satisface, lo corrige superponiendo el cambio en su trabajo directo sobre el cuadro”.

O espelho de Vênus, 1650
A pesquisadora espanhola também observa que os pintores do século XVII fabricavam suas cores misturando pigmentos de origem orgânica, como as lacas, ou os de origem inorgânico, como os minerais, com aglutinantes proteicos e substancias oleaginosas. As moagens e as misturas eram feitas nos ateliês,  procurando sempre a máxima estabilidade dos materiais. Velázquez sempre empregou pigmentos de boa qualidade e óleos preparados e depurados. Em vista desse cuidado, suas pinturas, apesar do tempo passado, não amarelaram e nem escureceram em excesso, conservando sua transparência e colorido. Em suas misturas, a proporção de aglutinantes como colas ou ovos, e dos óleos, eram determinadas pelas transparências que ele queria alcançar. 

A pintura de Velázquez é resultado “de un largo proceso intelectual”, afirma a pesquisadora. “Cada vez, con menos materia hacía más. Pensaba mucho y pintaba poco, veía el mundo con ojos nuevos y sólo una técnica original como la suya puede transmitirnos su original visión de las cosas, por esto es un gran innovador del arte de la pintura”. 

Como disse Rafael Mengs, no século XVIII, “Velázquez não pintava com os pincéis, pintava com a intençao”. Era um pensador, sobretudo.


Cores prováveis usadas por Velázquez, em sua denominação atualizada (o Branco de
Chumbo foi substituído pelo de Titanio, por causa da alta toxicidade do pigmento,
assim como hoje em dia é mais usado o Preto de Marfim. Os Cadmios são pigmentos
mais modernos, mas equivalentes aos usados no passado)

sexta-feira, 14 de março de 2014

A dignidade do ser humano

Há alguns dias me veio a vontade de fazer uma cópia da pintura “O tocador de pífano” do artista francês Édouard Manet. Comecei a procurar a imagem em alta resolução e, após baixá-la em meu computador, comecei um processo inicial de estudo da obra. Esta obra esteve exposta aqui em São Paulo no começo do ano passado, na exposição do CCBB sobre os impressionistas (leia sobre isso aqui).


"O tocador de pífano", Édouard Manet, 1866,
óleo sobre tela, 161 x 97 cm, Museu d'Orsay, Paris
Observei, entre outras coisas, que o menino que toca a flauta está disposto em um espaço que não descreve nada, além do próprio menino. Não há objetos, nem um ambiente, ou mesmo uma paisagem onde ele pudesse estar. O espaço é neutro. O foco é o menino com sua flauta.

Esta tela foi recusada no Salão de Outono de Paris de 1867, que ainda vivia sob o domínio da estética acadêmica. Manet apresenta um menino humilde, que parece ser um pouco manco, vestido com o mesmo uniforme usado pelos filhos dos oficiais da Guarda Imperial de Napoelão III, que também usavam calças vermelhas com listras laterais pretas, jaquetas pretas com botões dourados, uma faixa branca na cintura, além do boné. Não bastasse isso, Manet o pintou em tamanho grande, o que gerou escândalos numa época em que as pinturas em formato grande era restrita às pinturas históricas ou de personalidades influentes.

Mas a minha pesquisa me levou ainda para mais longe! Fui procurar entender porque Manet fez esta pintura e descobri que ele havia passado por Madrid um ano antes e tinha ficado absolutamente fascinado por uma tela de Diego Velázquez, no Museu do Prado, intitulada “Pablo de Valladolid”. Esta obra tem 2,10 m de altura por 1,23m. Foi pintada em 1633 e seu modelo era um bobo da corte, desses personagens cômicos cuja profissão era fazer rir aos reis e seus séquitos nos palácios europeus.

Pablo de Valladolid

Diego Velázquez era o pintor oficial da corte do rei Felipe IV, desde os 24 anos de idade. Sua obrigação era retratar não só reis e rainhas, mas também a aristocracia com seus filhos e criados. Como trabalhador da corte, Velázquez convivia com os outros criados do palácio, que incluía anões, palhaços, bobos e toda sorte de homens e mulheres que deveriam servir ao rei e sua família.

Muitos destes eram seres com alguma deformidade física, o que também servia para fazer rir à corte. Isto devia tocar Velázquez muito profundamente, pois pintou vários destes criados do palácio demonstrando uma delicadeza especial no tratamento àqueles que eram deformados fisicamente, dando-lhes sempre um ar de dignidade, mostrando-os em sua humanidade mais terna, de forma bem diferente de outros pintores que também tiveram que pintar esses seres mais humildes, mas simplesmente os retrataram com aparente indiferença.


"Pablo de Valladolid", Diego Velázquez, 1632-1637,
óleo sobre tela, 213,5 cm × 125 cm,
Museu do Prado, Madrid
Pablo de Valladolid se apresenta na tela de Velázquez não como um bobo da corte exatamente, mas mais parece um poeta em pleno ato declamatório. A tela é grande, eu a vi de perto em abril do ano passado em Madrid. Ali há um homem em toda sua dignidade e até pode ter alguma deformidade física, pode ser manco, corcunda… mas isso não chama a atenção na tela pintada por Velázquez. Fiquei muito emocionada frente a esta tela! É uma verdadeira ode ao ser humano, à dignidade humana, à justiça e à igualdade de posição e de tratamento que todos deveriam ter.

Mas isto ainda não é tudo!

“Pablo de Valladolid” é simplesmente a primeira tela pintada no Ocidente cujo fundo não mostra nada a não ser espaço. Diz-se que ela é uma das mais assombrosas realizações da perspectiva aérea velazqueana. Pablo se encontra solidamente apoiado sobre uma superfície criada só com luz e sombra. Velázquez parece querer ter dito: aqui o que importa é este homem e nada deve retirar o foco de atenção em sua figura!

O Espaço

Esta pesquisa, que começou com o menino flautista de Manet e me levou a Pablo de Valladolid, também me encaminhou para uma outra temática: a do tratamento do espaço por esses grandes mestres.

A ideia de “espaço” é um dos grandes conceitos filosóficos e mesmo científicos que nos tem feito pensar desde a Grécia antiga. Platão - filósofo idealista - expõe em seu livro “Timeu” suas ideias sobre o espaço e relaciona o mundo dos corpos (objetos) físicos com formas geométricas. Segundo ele, o universo seria formado por 4 elementos essenciais: água, terra, fogo e ar. Mas já se apoiava na ideia de que o átomo dava forma a tudo o que existe. E criou aquela ideia dos cinco “corpos” (que ficaram depois conhecidos como “corpos platônicos”): a pirâmide, o cubo, o octógono, o dodecaedro e o icosaedro. Ou seja, ele tentava elaborar as primeiras ideias sobre a “ideia” do espaço.

Já Aristóteles ligava a ideia de espaço à ideia de movimento. O espaço é apreendido a partir da noção de “lugar”. Para ele não há o “vazio” e o espaço seria a soma de todos os lugares ocupados por todos os corpos. Mas não vamos entrar muito mais aí no reino da Filosofia, porque isso nos levará a complicações maiores.

Porém, continuemos ainda um pouco falando de “espaço”. Podemos dizer que a característica principal do espaço é aquela de algo que contém as coisas. Temos nossos espaços pessoais, como nossa casa, e nossos espaços coletivos, como templos, museus, escolas… Pronto! Ficamos mais tranquilos quando damos um “nome” a uma ideia tão abstrata quanto é esta do espaço. E por isso este tema tem tido um peso tão grande dentro do pensamento ocidental.

E da Arquitetura, que é a forma criada pelo homem para organizar os espaços, de criar lugares de acolhimento, de proteção da vida.

Que trouxe para a pintura um complexo problema: o da perspectiva. Como representar um espaço tridimensional no espaço bidimensional formado pela tela? Foi somente depois do século XV que as primeiras tentativas foram feitas, começando por desenhar menor aquilo que estava mais longe e maior o que estava mais perto do observador. Foi quando um tal Filippo Brunelleschi (1377-1446) criou o Ponto de Fuga, ou seja, descobriu que todas as linhas podem convergir para um mesmo ponto.

Esses estudos passaram por Leonardo da Vinci, por físicos e filósofos, e no século XVII teve novas contribuições teóricas a partir dos estudos de Isaac Newton e René Descartes. Mas mesmo que tenham sido ideias que fizeram evoluir ainda mais o conceito de espaço, elas ainda ligavam a ideia de espaço à de Natureza e continuam interpretando o Real como ele é percebido pelos nossos sentidos. Hoje as pesquisas científicas avançaram e dentro da ideia de espaço surgiram teses como a Teoria da Relatividade do Espaço e do Tempo, a tese do Big Bang, a Teoria do Caos, a teoria dos Multiversos, etc. Hoje convivemos diariamente com um espaço “virtual” que amplia enormemente nossos espaços pessoais dentro do sistema chamado Web.

Mas vamos voltar para Pablo de Valladolid e tentar fazer com que tudo isto faça algum sentido.

O fundo do quadro de Velázquez fascina, não só por ter sido o primeiro, mas por representar a ideia de espaço em toda a sua abstração, “com a concepção matemática da época”, na observação do matemático espanhol Francisco Martín Casalderrey, um estudioso das relações entre a matemática e a pintura. E acrescenta:

“É o espaço de Descartes e Newton, plasmado genialmente em sua mínima expressão, apenas um pouco de cor, apenas sobras de sua palheta, sem arestas, contínuo, infinito, imóvel, sem relação a nada externo, com a única intenção de ressaltar a figura de Pablo de Valladolid”.

Por isso, quando olhamos para este quadro não vemos somente um homem humilde em sua profissão de fazer rir seus patrões: vemos um homem gigante em sua dignidade, cheio de vida. E vemos pela primeira vez retratado na pintura o Espaço cartesiano que contém esse homem que Velázquez fez grande.

Por isso agora compreendemos toda o fascínio causado em Édouard Manet quando este foi a Madrid e viu esta tela. E na mesma fonte do mestre espanhol, o mestre francês bebeu. Pintou seu pequeno tocador de flauta da mesma forma, dando-lhe dignidade, roupas honradas, porte de grande artista, não só de um simples saltimbanco ou “musicien ambulant”, como os que existiam nas ruas naquela época em Paris.

São duas telas pintadas por dois grandes mestres, nas quais o recado é o mesmo, e que serve para os dias de hoje: todos os seres humanos são iguais e dignos de toda a consideração!

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Desenho Pictórico e Linear

Detalhe do quadro "Moça com brinco de pérola", Jan Vermeer

Na quarta-feira, dia 21 de agosto, estive na PUC de São Paulo para fazer uma palestra para os alunos do professor Luís Carlos Petry, do curso de Tecnologia e Jogos Digitais. Eles já vêm estudando os mestres, neste semestre, especialmente Vermeer e Rembrandt. Assistiram aos filmes “Moça com brinco de pérolas” de Peter Webber e “A ronda noturna” de Peter Greenway. Depois do filme sobre Vermeer, eles tiveram uma palestra sobre esse filme com a pesquisadora Cristina Sisigan, da Universidade do Porto, Portugal. Na sequência, a minha palestra sobre “Desenho Pictórico e Linear” e minhas experiências de estudo da pintura de Rembrandt e Vermeer. Abaixo, um resumo do que falei para eles.


Detalhe de pintura do Paleolítico superior
Para começar, é sempre bom lembrar da história. Há mais de 35 mil anos antes de Cristo, o ser humano começou a fazer seus primeiros desenhos nas paredes das cavernas onde viviam. Esses artistas da pré-história que decoraram abrigos e cavernas exerceram seu talento no Paleolítico superior sobre um período em torno de 25 mil anos: do Auriaciano (ou Aurignaciano - 35 mil a.C.) ao Madaleniano (em torno de 13 mil anos a.C). Desde esses primeiros desenhos e pinturas, nós temos buscado ampliar nossos conhecimentos sobre o mundo em que vivemos, e desenhamos e pintamos o que vemos desse mundo.


O ser humano inventou a linha para traçar seus desenhos, uma abstração que não existe na natureza. Mas ao traçar desenhos, seja no papel seja em outro meio qualquer, o ser humano está descrevendo também, através do desenho, o mundo que o rodeia.


Escultura de Michelangelo: David
Mas vamos dar um salto grande da pré-história ao período do Renascimento italiano, por volta dos séc. XIV e XVI. Nessa época, se desenvolveu a arte de observação da natureza, mas que pretendia ir além da desordem das aparências para encontrar a ordem subjacente no mundo. O modelo era a antiguidade clássica da Grécia e de Roma e seus ideais de Beleza e Perfeição. Naqueles longínquos tempos, a beleza do corpo humano era um ideal a ser buscado. Os atletas se desenvolviam na cultura física, os filósofos buscavam interpretar o mundo e compreender a condição humana.


No Renascimento, o lugar do ser humano no mundo voltou a ser valorizado. Não se pintava a realidade como ela era, mas buscando nela a Beleza e a Perfeição. Os modelos humanos eram idealizados, as composições dos quadros deviam ser claras, limpas, buscando a Simetria. Tudo isso dava à arte produzida nesse período uma qualidade algo estática. As figuras, pintadas ou desenhadas, estavam encerradas entre fronteiras e obedeciam a regras rígidas ditadas pela intelligentzia da época, em geral os doutores da Igreja.

"Nascimento de Vênus", de Sandro Botticelli, cerca de 1483
Foi quando Sandro Botticelli, um pintor italiano, pintou o “Nascimento de Vênus”, por volta de 1483. Como se pode ver neste quadro, as figuras se encontram recortadas em relação ao fundo. Os objetos estão separados entre si. Todos se voltam para o centro, onde se encontra a deusa grega Vênus e seu corpo nu, perfeitamente imaginado. Uma prova de que novamente, mesmo em meio à moral da época, o corpo humano voltava a ocupar lugar de destaque no mundo das ideias, voltava a ter grande valor.



Neste detalhe ao lado, podemos ver as linhas traçadas por Botticelli, onde ele encerrou sua Vênus. A  pintura, em sfumato, é plana. Sombras profundas, não há. A luminosidade parece deixar tudo plano, tudo parte de uma ordem que não pode ser mexida.

Mas em seguida… as sombras desceram de vez sobre a terra, para susto de alguns. Mas para os artistas, estas sombras trouxeram novas possibilidades de penetrar ainda mais fundo na realidade do mundo. No final do século XVI, com o surgimento disso que ficou depois conhecida como Arte Barroca, o artista desejou mergulhar na multiplicidade das coisas, nos fluxos da vida, no movimento.

Suas composições passaram a ser mais dinâmicas, abertas. O movimento se fazia presente nas artes, que agora mostravam uma tendência a romper com todas as fronteiras, mostrando uma variedade de formas de expressão que eram, inclusive, adaptáveis às culturas locais. O Barroco, nascido na Itália, se espalhou pela Europa e pelo mundo. Aqui no Brasil, as montanhas de Minas Gerais inspiraram o nosso maior artista barroco, o Aleijadinho.


"Amor vitorioso", Caravaggio, 1601
Caravaggio, na Itália, mergulhou profundamente nessa nova estética. Usou as sombras mais densas a favor da luz, em seus quadros. Montava suas composições em ambientes com pouca luz e era dali que fazia com que emergissem as figuras.

Até o começo do período do Barroco, nos fins do século XVI, o desenho e a pintura ocidentais seguiam o estilo linear, onde predominava o uso de linhas - mesmo na pintura - e as composições planas, luminosas. Mesmo Leonardo da Vinci que em um tratado sobre a pintura recomendava que o artista não respeitasse os limites da linha, ele mesmo pintava desta forma. Michelangelo, o grande, inquieto e pródigo artista do Renascimento também ele respeitava as linhas. O mesmo aconteceu com Sandro Botticelli, ou com Rafael di Sanzio ou com outros grandes.

Mas Ticiano… não! A Escola Veneziana, à qual ele pertencia, era a escola da pintura cheia de cor, que ousou ir mais longe do que a Escola Florentina, que praticava um desenho e uma pintura mais lineares. Ticiano foi um dos pioneiros do estilo pictórico, rompendo os limites da linha, abrindo mão de descrever os detalhes do que via em prol do que era essencial aos olhos. A importância de Ticiano na história da arte deve-se ao fato de que ele deixou para seus contemporâneos e para a posteridade uma concepção de pintura verdadeiramente revolucionária, pois foi ele quem libertou a pintura dos limites da linha e da forma, dando todo o poder às cores.

"Madalena", de Ticiano - ainda pode ser vista no CCBB de São Paulo
Linear e Pictórico


Em seu livro “Conceitos fundamentais de história da arte”, Heinrich Wölfflin explica de forma bastante didática essas duas concepções da arte, que pode estar presente no desenho, na pintura, na escultura, na arquitetura.

Em resumo, são na verdade duas visões de mundo: uma, em que o mundo se encontra encerrado entre linhas limítrofes e com regras mais claras; a segunda, uma visão de que tudo no mundo se relaciona e há que se buscar ver a realidade como resultado de um conjunto de relações e que dá unidade a tudo.

O estilo Linear vê o mundo em linhas. O sentido do objeto é buscado primeiro no contorno dele e os olhos são conduzidos através dos limites da forma. Limites firmes, ao qual tudo se subordina.


Exemplos de pintura e desenho linear:

Estilo Pictórico


O estilo Pictórico, por seu lado, confere à forma um caráter indeterminado. Busca o movimento que ULTRAPASSA o conjunto dos objetos. As formas isoladas têm pouca importância, pois vale a Unidade do todo, o conjunto do quadro. O pictórico emancipa as massas do degradée do chiaro-oscuro e do sfumato, um jeito de pintar que alisa as tintas e cria uma sensação de profundidade através da passagem suave das sombras para a luz, ou vice-versa. No estilo Pictórico, o visível parece REAL aos olhos: o pintor reproduz a aparência do objeto / da Realidade. Mas isso não significa superficialidade, já que a aparência é o resultado de um jogo de forças distribuído em camadas em diversos níveis de profundidade. O artista pictórico vê o mundo como massas, não como linhas.



Rembrandt van Rijn (15/071606 - 4/10/1669)
Este artista holandês fez um esforço para subtrair as figuras à zona tátil e eliminar o que sobra. Para ele, os contornos não são importantes. Cada detalhe está tão ligado ao contexto maior que dá a impressão de MOVIMENTO contínuo. Rembrandt usava grossas camadas de tinta para mostrar o movimento das massas em direção à luz. Para ele quanto mais luz, mais densidade de tintas. Na medida em que ele amadurecia em idade e em produção artística, mais se tornava um exemplo de que o progresso na concepção pictórica pode caminhar paralelamente em direção a uma crescente simplicidade.

O estilo pictórico é o despertar para um novo sentido da beleza, diz Wölfflin. Quando Rembrandt pinta uma figura sobre um fundo escuro, a luminosidade do corpo parece emanar naturalmente do escuro do espaço. Franz Hals (1580 ou 1585 — 10/8/1666) não queria reproduzir mais do que o olhar apreende do conjunto. Jan Vermeer (31/10/1632 - 15/12/1675) em seu trabalho lento e meticuloso de pintor, busca expressar a fragilidade dos limites entre as formas, as suaves e profundas distinções entre a luz e a sombra.


O estilo pictórico mostra a realidade como ela é apreendida pelo olhar do artista. É a arte do “parece ser”. A pintura, em seu conjunto, tem movimento, ritmo, amplitude além da forma. O artista renuncia à ideia anterior sobre a cor local. As cores servem ao movimento. Elas são um novo ideal de beleza. A sombra já não é dominada pelo preto, mas por tons mais intensos. Luz e sombra são parte da mesma coisa.


Diego Velázquez ( 31/10/1632-15/12/1675): Retrato de Juan Pareja, 1650
À distância, tudo está completo. Próximo, só podemos enxergar as pinceladas do artista. As raízes do Impressionismo do século XIX na França já tinham sido lançadas pelos artistas holandeses. Eles já haviam descoberto o caráter pictórico da Natureza: a beleza das roupas rotas de um mendigo, de uma casa em ruínas, das águas inquietas de praias e cachoeiras, das nuvens em perene autocriação, das multidões se movimentando nas feiras e praças…


As ideias de Heinrich Wölfflin se refletem também nas do pintor realista norte-americano David Leffel, que complementa: o pintor não pinta “coisas”, pinta a luz nas coisas. Ele não vê seu modelo como um conjunto de detalhes separados, mas em termos de movimentos de massa. Não pensa em características especificas como “boca”, “nariz”, ou “olhos”; mas vê massas movendo-se para dentro e para fora. Vê movimento entre a luz e a sombra, que vai dando materialidade ao modelo. A realidade é a referência permanente do artista. Ele não pinta o que não está lá, ou o que ele não vê, mas aquilo que para ele é significativo da sua observação do mundo. Através do seu olhar, ele mostra como “pensa” o mundo, qual é sua atitude, sua capacidade de ver e de sintetizar o que vê


Estudo sobre pintura de Rembrandt feita com carvão
e lápis-carvão, em 2011
Para finalizar a conversa com os estudantes da PUC-SP, falei da minha própria experiência no estudo destes mestres, especialmente Rembrandt e Vermeer. Dois artistas holandeses que foram contemporâneos, mas que não se conheceram, e eram tão diferentes entre si. Um, voltado para o mundo externo, que adorava o teatro e produzia intensamente. O outro, Vermeer, mais lento, mais quieto, que usava pinceis pequenos para quadros pequenos que pintava durante meses de trabalho. Chegou a pintar pouco mais de 40 pinturas em toda sua vida, enquanto Rembrandt deixou centenas de telas que hoje estão espalhadas por diversos museus do mundo.

Estudei e pintei algumas pinturas de Rembrandt no Atelier de Arte Realista de Maurício Takiguthi, onde ainda estudo aqui em São Paulo. Para compreender como ele, Rembrandt, movimentava suas massas, trabalhava a incidência da luz naquilo que tocava. Mostrei aos alunos do professor Petry dois estudos meus: um em carvão e o outro em pastel.

Mas também fiz uma cópia do “Moça com brinco de Pérola”, de Jan Vermeer. Trabalhei nesse pequeno quadro durante umas 45 horas, no Atelier Vermeer em Paris. Somente para captar um pouco da concepção dos movimentos das cores que definem a boca e o nariz da “Moça”, devo ter trabalhado dois dias inteiros, num total de umas 18 horas.


Estudo meu em óleo sobre tela sobre o original de
Vermeer "Moça com brinco de pérola" - Paris 2011
No momento, a pintura realista retoma um fôlego muito importante em diversos lugares do mundo. Só para citar alguns, do meu conhecimento e experiência: Rússia, França, Espanha e Estados Unidos. Nos EUA, onde ainda se pratica a pintura acadêmica e começa a criar grande força o Hiperrealismo, a pintura realista conta hoje com os mais importantes mestres, o que não deixa de ser curioso, uma vez que a Guerra Fria produziu lá o Expressionismo Abstrato em contraposição ao Realismo. Muitos destes velhos artistas norte-americanos, que ainda estão vivos e produzindo muito, passaram por toda aquela fase de perseguição do macarthismo que identificava pintura realista com comunismo.


A pintura realista e pictórica toma como referência a realidade, que é inesgotável. Enquanto nos fixamos nas formas das coisas do mundo, vamos penetrando cada vez mais em camadas de conhecimento que nos surpreendem a cada momento. Após cada coisa apreendida, cada conquista feita, algo surge lá como novidade, mostrando o fluxo das massas de cores, os pequenos toques que configuram um olho, por exemplo, num jogo de valores que vão da luz às sombras mais densas.

O prazer de enxergar a possibilidade de romper os limites, de ir além das formas, de ultrapassar as bordas do mundo, de buscar o que há mais lá dentro, no fundo, escondido dos olhos dos apressados, é o que me move.


Para romper limites, é preciso coragem! Inclusive para nadar contra a maré do mercado de arte atual e dos pensadores da arte dita "contemporânea".

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Bibliografia:
- Wölfflin, Heinrich. Conceitos Fundamentais de História da Arte. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2006
- Bazin, German. Barroco e Rococó. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2010