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sexta-feira, 11 de julho de 2014

Caravaggio eterno

São Francisco recebendo os estigmas, Caravaggio
Caravaggio, por
Ottavio Lioni
Dois acontecimentos marcarão neste mês de julho as comemorações dos 404 anos da morte do pintor italiano, Michelangelo Merisi de Caravaggio, ou simplesmente Caravaggio.

No primeiro, a obra “São Francisco recebendo os estigmas”, uma pintura do mestre do barroco italiano estará em exposição a partir de hoje, 11 de julho, na sala de exposições da Galeria de Arte Antiga do Castelo de Udine, cidade a nordeste da Itália.

A mostra está sendo organizada em torno dessa pintura do Castelo, que foi considerada durante muito tempo como um trabalho original do artista. Após anos de estudo cuidadoso verificou-se que ela na verdade é uma cópia, a melhor já feita, do original que está no Wadsworth Atheneum de Hartford, nos EUA. A intenção dessa exposição é mostrar os resultados desses estudos e todo o material documental que foi sendo adicionado a ele, para estudiosos do tema, assim como para o grande número de fãs do pintor italiano.

Nessa pintura “São Francisco recebendo os estigmas”, Caravaggio retrata um episódio da vida do santo de Assis, quando ele teria recebido em seu corpo os mesmos ferimentos de Cristo na cruz, segundo relata São Bernardo no relato da vida de São Francisco de Assis conhecido como “Il Fioretti”. O santo está deitado, como se estivesse prostrado e um anjo o acolhe nos braços, quase como uma versão da “Pietá”, que foi esculpida por Michelangelo, mostrando Maria com o corpo do filho nos braços.

Esta exposição estará aberta até 30 de novembro, em Udine, Itália.

Local do Memorial que guardará
os restos mortais de Caravaggio em Porto Ercole
O outro evento, acontece no próximo dia 18 de julho, em Porto Ercole, localizado na ilha de Malta, quando será inaugurado o memorial que vai abrigar os restos mortais de Caravaggio.

Quatrocentos anos após sua morte, os restos mortais de Caravaggio foram localizados por Silvano Vinceti, o presidente da Fundação Caravaggio, e uma equipe de especialistas, em uma igreja local, em 2010. Caravaggio morreu numa viagem em que, desesperado, voltava para Roma. Isso foi em 18 de julho de 1610.

A operação de traslado dos restos mortais do pintor para o memorial está sendo coordenada pela Fundação Caravaggio. Os ossos de Caravaggio serão depositados sob um arco branco criado pelo escultor Giuseppe Conte, coberto com uma cesta de frutas em cerâmica inspirado numa natureza-morta feita pelo pintor, tudo rodeado por cores e aromas de ervas do Mediterrâneo, como jasmins, lavandas e alecrins. A ideia é fazer uma homenagem a um dos maiores artistas de todos os tempos e que seus admiradores possam ter um lugar a mais aonde ir em busca da história e da memória do mestre italiano.

A inauguração do Memorial está programada para o próximo dia 18 de julho, data de sua morte. Durante a cerimônia, os restos mortais de Caravaggio serão sepultados neste local definitivo.
Cesta de frutas, Caravaggio, óleo sobre tela, 31 x 47, Pinacoteca Ambrosiana de Milão
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Para saber mais sobre o mestre Caravaggio, neste mesmo blog:

-- Caravaggio, arte e rebeldia

E MAIS:

-- José de Ribera, caravaggesco

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

A alma do mundo

Gustave Courbet: A onda, óleo sobre tela, 1870
Acabei de ler o texto “Sobre a relação das artes plásticas com a natureza”, do filósofo alemão Friedrich Wilhelm von Schelling (1775-1854). Esse texto foi escrito para seu discurso de entrada na Academia Bávara de Ciências, em Munique, Alemanha, e foi proferido no dia 12 de outubro de 1807. A repercussão do texto foi grande, e até Goethe o felicitou. Schelling foi contemporâneo de Hegel, um dos filósofos que mais escreveu sobre Estética e sobre Arte.


Schelling
Pela atualidade do tema e por descobrir grande convergência entre a visão de Schelling sobre a pintura e minhas próprias convicções pessoais sobre arte Realista, faço abaixo uma tentativa de expor um resumo dessas ideias.


A arte realista busca beber na fonte inesgotável da realidade do mundo, realidade em permanente mudança, buscando ir além das aparências até alcançar o movimento interno que gera a vida. A pintura realista considera que expressar a forma de um objeto ou figura significa também expressar seu movimento interno, sua alma pulsante na alma do artista, num jogo dialético que abrange espaço, tempo, forma, cor, luz, valor, mas também conceito e visão de mundo.


Vale lembrar que a pintura realista sempre esteve presente nas artes plásticas desde tempos imemoriais. No período da Idade Média, incluindo o Renascimento, os artistas eram obrigados - por força das circunstâncias da época (econômicas, políticas, culturais e filosóficas) - a pintar o mundo idealizado do reino celestial com suas figuras de anjos e santos, além de ilustrar as histórias bíblicas e seus diversos personagens. Ticiano e Caravaggio inovaram a pintura de seu tempo, incluindo como modelos pessoas reais (Caravaggio) e uma forma de ver o mundo através do movimento das cores que rompiam as linhas do desenho (Ticiano). Depois deles, gerações de artistas se voltaram para o mundo concreto, para o Real e seu sentido de inesgotabilidade, de permanente mudança e movimento contínuo. Esse Real do qual não se vê mais do que a aparência, que é fugidio, se desnuda para a observação profunda e a contemplação silenciosa dos artistas.


Neste ponto, nos encontramos com Schelling, e com ele prosseguimos.


Logo no começo do seu discurso, ele traça uma diferença entre formas de descrever o mundo. Uma delas é por meio do discurso, da eloquência, da exposição oral. “Mas a arte - diz ele - possui essa vantagem de ser dada visualmente”, apresentando de uma maneira diferente - para os olhos - aquilo que é difícil de ser apreendido por palavras. E neste sentido a arte plástica se torna Poesia, “poesia muda”, como ele acrescenta. Silenciosa, a arte plástica cria um vínculo, uma ponte entre a alma humana e a Natureza, o Real.


O verdadeiro modelo e “fonte primordial” da arte plástica é a Natureza. Mas Schelling aponta os questionamentos que dizem que isso já é feito pela ciência e que há “tantas representações” da natureza quanto “os diferentes modos de vida”. Sim, mas mesmo aí há também diferentes tratamentos para o mesmo tema e isso é o que cria a enorme diferença de visão de mundo a partir das artes plásticas, o que se torna ainda mais claro nos dias atuais.


Schelling já falava daqueles (incluindo pintores) para quem o mundo não passa de um amontoado de eventos e objetos e coisas sem vida, como “uma imagem muda”, “completamente morta”:

“Um esqueleto oco de formas a partir do qual uma imagem igualmente oca
deveria ser transportada para a tela.”


Observa Schelling que esse era o modo rude de ser dos povos antigos e que somente com os gregos é que o mundo pulsante passou a ser visto como tal. E com isso, admitiu-se que “o perfeito está misturado ao imperfeito, bem como o belo àquilo que é destituído de beleza.” Em outras palavras: o mundo como ele é, ou como aparenta ser. Pois também aqui há que se ter mais acuidade: uma coisa é ver as formas do mundo separadas do todo, ou mesmo vazias, abstratas. Outra é enxergar através da forma a sua essência, acessível ao nosso espírito (mente). E Schelling adverte: àquele que enxerga do mundo somente a sua casca “jamais será facultado atingir o processo profundo”.


Mas sem idealização, pois as “formas ideais” estão tão mortas quanto aquelas que parecem sem vida a um observador sem alma. Portanto, é preciso - para apreender o Real - “acrescentar o olho do espírito, para penetrar sua casca e sentir a força que nelas se efetua”. Entenda-se esse “olho do espírito” como o olho da mente. O entendimento, portanto, não é fruto de uma observação passiva de um dado evento ou objeto, mas surge da interação entre a mente que observa (a inteligência) e a coisa observada efetivamente. Este é um tema muito antigo e para o qual Karl Marx também atentou: o mundo objetivo tem precedência sobre as ideias. Mais Schelling:


“... os artistas decerto mantiveram, desde tal época, um certo ímpeto idealista, bem como representações de uma beleza que se eleva acima da matéria, mas tais representações assemelhavam-se às belas palavras que não correspondem aos atos.


Há duas questões a se levar em conta: a beleza presente no conceito emanado da alma e a beleza da forma. O que une esses dois elementos numa pintura? Ele responde: “Se a arte não fosse capaz de estabelecer tal vínculo, tal como o faz a natureza, então, em geral, ela não estaria apta a criar nada.” E ele aponta que o artista que somente foi capaz de tomar como ponto de partida a forma em si, mesmo que tenha alcançado o mais alto refinamento de seu trabalho como pintor, ainda assim sua obra será a expressão do vazio. Pois não é possível CRIAR através “da mera forma”.


“Antes de mais nada, a natureza vem ao nosso encontro de modo hermético e sob uma forma mais ou menos rígida. Assemelha-se à beleza sóbria e serena, que não chama a atenção por meio de sinais gritantes e nem atrai o olhar vulgar. Como podemos fundir, digamos, do ponto de vista espiritual, aquela forma aparentemente rígida a fim de que a força mais clamorosa das coisas flua juntamente com a força de nosso espírito, transformando-as num só molde? Temos que ultrapassar a forma, para, aí então, readquiri-la como algo inteligível, vívido e verdadeiramente sentido. (grifo meu)


Leonardo da Vinci: Dama com arminho,
1485-90
Mais à frente em seu discurso, Schelling felicita aquele pintor que consegue, em seu espírito criador, nos mostrar uma obra em que a atividade consciente do seu espírito se une à força inconsciente presente na Natureza. Complementa: “a arte transfere à sua obra, com a mais elevada claridade do entendimento, aquela realidade inescrutável mediante a qual ela termina por se assemelhar a uma obra da natureza.”


Mas nada disto significa copiar. O filósofo alemão criticava aqueles que apenas copiavam o que viam, com “fidelidade subalterna”: “talvez lhe fosse dado produzir larvas, mas de modo algum obras de arte”, diz ele. Pois o critério para definir uma obra de arte é que ela possua em si aquela dupla união entre a forma e o conceito. Que, diga-se de passagem, vai muito além da simples discussão entre “forma e conteúdo”, temas que despertaram calorosos debates nos últimos cem anos. Em muitas pinturas dos mestres não só chama a atenção a sua qualidade técnica, mas também seu “pensamento”. É o que Schelling afirma, junto com outros estudiosos: “Esse espírito da Natureza, que atua no interior das coisas e fala por meio da forma e da figura como que através de imagens-sentido, decerto deve ser emulado pelo artista, haja vista que só quando este o captura com uma vívida imitação lhe é dado criar algo verdadeiro.”


Pois obras que emergem de uma composição de formas, ainda que belas,
seriam destituídas de toda beleza, já que a única coisa que concede beleza à
obra ou ao seu todo já não pode ser a forma. Trata-se de algo que está além 
da forma; é a essência, o universal, vislumbre e expressão do imanente
espírito da natureza.”


As imitações, inclusive levadas ao nível da ilusão, continua Schelling, sempre aparecerão falsas. “Ao passo que uma obra na qual vigora o conceito, termine por lhe arrebatar com a plena força da verdade, transpondo-o de saída ao mundo legitimamente efetivo”.


Michelangelo: Tondo Doni
Avaliando a evolução histórica da arte, desde sua tenra juventude dos tempos mais remotos até os dias atuais, Schelling destaca que a arte suprime algo que não é, segundo ele, essencial: o Tempo. Não “tempo” no sentido histórico humano, mas no sentido mais amplo do tempo como movimento que não se repete. O tempo daquele instante único capturado pelo pincel do artista e que o torna eterno: o instante em que a leiteira derrama o leite dentro de um recipiente e que foi eternizado por Jan Vermeer; aquele momento em que o velho Tiziano, com o rosto já marcado com os sofrimentos da vida, decidiu pintar seu autorretrato; ou o instante do olhar do filho Titus que foi marcado para sempre numa tela por seu pai Rembrandt; ou o momento de angústia de Gustave Courbet detido por sua participação ativa na Comuna de Paris…


Outra das grandes ideias defendidas por Schelling e que deve sempre nos nortear é a da percepção da totalidade das coisas, tendo consciência de que nada no mundo se encontra em separado. Tudo existe em relação. Eu me relaciono com o mundo em que vivo, sofrendo todo o tempo as influências do tempo presente, com sua cultura pulverizada, que tem pregado, nestes tempos pós-modernos, o reino da individualidade e do particular. A “maioria considera o particular em chave negativa”, diz o filósofo, ou seja, o particular como algo que não é parte do todo. Mas o particular só existe em face da totalidade: “morta e insuportavelmente rígida seria a arte que tencionasse expor a casca vazia ou a limitação daquilo que é individual.”


Jan Vermeer: A leiteira, 1658-1661
Nada pode ser separado de nada, nem o sólido do frágil, nem o determinante do determinado. Uma coisa pressupõe a outra e só pode existir em conjunto. Por isso, mesmo aquilo que não é belo, torna-se belo “mediante a harmonia do todo”. Por outro lado, Schelling faz uma admoestação ao artista: na distribuição do espaço, da luz, da sombra e do reflexo, há que se levar em conta as gradações da beleza, para que o quadro não se revele uma “antinatural monotonia”. Há que se particularizar um ponto da obra em que a beleza plena se destaca. Não é possível dar a todo o conjunto a mesma medida de beleza, mas, como Rafael, saber romper sua regularidade para que a expressão mais bela possa brilhar no centro do quadro. Schelling disse também que o “caráter” de uma pintura é aquilo que se extrai do ritmo interno, da “unidade de múltiplas forças” que agem em conjunto para “lograr uma certa harmonia e uma determinada medida”. Somente é possível criar uma unidade viva “se as forças, levadas à sublevação por meio de alguma causa, saírem do equilíbrio.” É a necessária assimetria que cria vida.


Ou seja: o edifício teórico que sustenta uma boa pintura é pleno de conceitos, de movimentos dialéticos entre o olhar do artista e sua observação do mundo.


Ticiano: Autorretrato, óleo sobre tela, 1550
Isto é fácil? Não, dificílimo! Por isso, essa postura tem sido não somente esquecida, mas deixada de lado pela arte dita contemporânea. Pois é melhor atender ao pragmatismo exigido pelo sistema de artes atual (que inclui o Mercado capitalista), mesmo que para isso seja feita uma mutilação no conjunto da teoria, que vem sendo enriquecida ao longo de toda a história humana. Esquece-se o rico legado teórico que herdamos e que poderia nos levar ao lado e além dos mestres do passado, em troca do utilitarismo pragmático que nada cria, a não ser fumaça. Ou que corta um pedaço do pé, para que caiba no sapato da teoria acadêmica atual...


Mas, diz Schelling, a pintura enobrece, modela as almas ou pelo menos indica o poder da alma que nela existe. Ao criar sua obra, o artista leva ao público observador uma possibilidade de mergulho na unidade do mundo, que eleva e dignifica. Mas que também lhe mostra seu potencial e capacidade de criador de seu próprio mundo. Também podemos lembrar do que pensava seu contemporâneo, o filósofo Hegel, que considerava a obra de arte como o meio privilegiado “através do qual o espírito humano se realiza”.


Ao final do seu discurso, Schelling faz menção a alguns dos grandes mestres do passado:


Rafael: Retrato de Agnolo Doni, 1505-06
- Michelangelo, “aquele espírito gigante”, atraído “pelos fundamentos mais recônditos da forma orgânica e, em especial, da figura humana, ele não evita o assustador, senão que o procura intencionalmente, despertando-o de seu repouso nas obscuras oficinas da natureza”;


- Leonardo da Vinci e Correggio apaziguam a violência inicial e “o espírito da natureza transfigura-se em alma” (entenda-se “espírito da natureza como a vida das coisas”). “A expressão geral dessa alma sensível é o claro-escuro (...) pois aquilo que o pintor põe no lugar da matéria é o escuro; sendo esse o estofo no qual ele deve afixar a fugidia aparência da luz e da alma”;


- Rafael “toma posse do sereno Olimpo e, consigo, conduz-nos da Terra à assembleia dos deuses”. “O florescer da vida perfeitamente formada, o perfume da fantasia e o tempero do espírito exalam, juntos, de suas obras. Ele já não é pintor, mas sim filósofo, sendo, a um só tempo, poeta.”;


Abaixo, destaco algumas questões colocadas por Schelling naquele 12 de outubro de 1807 e que até hoje rondam as cabeças de muitos artistas:


- “Como ainda seria possível contemplarmos essas obras dos antigos mestres, de Giotto ao professor de Rafael, movidos por uma espécie de devoção, inclusive por uma certa predileção, se a fidelidade de seus esforços e a grande seriedade de sua serena e espontânea limitação não nos impusesse respeito e admiração?”;


- “(...) temos de recriar a arte seguindo o mesmo trilho que eles seguiram, mas com nossa própria força, para nos igualarmos a eles.”;


- “Tudo o que cresceu a partir de inícios árduos e pequenos, mas terminou por adquirir vasto poder e altura, tornou-se grande por intermédio do entusiasmo. Isso vale tanto para impérios e Estados quanto para as artes e ciências. Não é porém a força do indivíduo que leva isso a efeito; tal tarefa cabe apenas ao espírito, o qual se espraia pelo todo.”;


- Ao artista, ninguém “pode ajudá-lo, já que ele mesmo deve ajudar-se; tampouco pode ser gratificado com algo que esteja fora de si, pois tudo aquilo que viesse a produzir sem vontade própria tornar-se-ia, de imediato, nulo; justamente por isso ninguém pode comandá-lo ou prescrever-lhe o caminho que deve peregrinar. Se é lamentável que tenha de lutar contra sua época, é tanto mais desprezível se com ela for indulgente.”


- “Apenas uma mudança operada nas próprias ideias é, pois, capaz de erguer a arte de seu esgotamento; somente um novo saber e uma nova crença estariam aptos a incitá-la ao trabalho por meio do qual ela revela, numa vida rejuvenescida, uma opulência semelhante àquela do passado. Com efeito, uma arte exatamente igual, em todas as suas determinações, à arte dos séculos precedentes jamais retornará; pois a natureza nunca se repete. Não haverá um Rafael como aquele de outrora, mas um outro a quem, de maneira particularmente similar, será facultado atingir o vértice da arte. Desde que se atenda àquelas condições básicas, a arte revitalizada mostrará o objetivo de sua determinação, tal como mostrara, em suas primeiras obras, a arte que a antecedeu”.
Rembrandt: Titus, óleo sobre tela, 1655

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Valentin de Boulogne, o "Inamorato"

Sagrada Família com São João Batista, Valentin de Boulogne - exposto no Masp
Na sequência dos caravaggescos que participam da Exposição do Masp "Caravaggio e seus seguidores", apresentamos Valentin de Boulogne.

Valentin de Boulogne foi um pintor francês nascido em Coulommiers em 1591 e falecido em Roma em 1632.

Retrato de Raffaello Menicucci,
cerca de 1625, óleo sobre tela, 80 x 65 cm,
Indianapolis Museum of Art, Indianapolis, EUA
Seu nome verdadeiro era Jean Valentin e ele passou para a história da arte como um dos pintores franceses representativos da corrente dos “caravaggistas”. Era filho de um pintor de vitrais. Pouco se sabe sobre sua vida e quase nada sobre sua primeira formação, mas ele teria se iniciado em pintura no atelier do pai, antes de partir para Paris, por onde passou antes de ir morar em Roma.

Valentin conhecia e admirava o pintor francês, também caravaggesco, Simon Vouet. Não se sabe em que ano ele chegou em Roma, mas é possível que tenha aportado naquela cidade antes de Simon Vouet, que lá chegou em 1614. Não se encontra seu nome nos documentos a não ser depois de 1620. É possível, diz o texto da Enciclopédia Larousse, que ele tivesse freqüentado o ateliê de Bartolomeo Manfredi (também caravaggesco), assim como os ateliês de pintores nórdicos que moravam na Itália. A partir de 1624 ele teria freqüentado a Academia dos Bentvögels, onde teria recebido o apelido de o “Inamorato”.

Da sua carreira de pintor só foram documentados os últimos cinco anos de sua vida. Ele mantinha relação estreita com o meio artístico, especialmente os franceses que viviam na Itália, mas também conhecia os amantes da arte daquela época, notadamente os membros da família Barberini, na pessoa do cardeal Francesco, seu principal mecenas.

Judith, 1626-28, óleo sobre tela, 97x74 cm,
Museu dos Agostinhos, Toulouse, França
Da relação de suas obras, consta, entre várias outras:

de 1627: “David” e “Degolação de São João Batista” (perdido) ;
de 1628, “Alegoria de Roma (Roma, Villa Lante) ;
de 1630, um “Sansão” (Museu de Cleveland).

O “Martírio dos Santos Processo e Martiniano” de 1629, pintado para a Basílica de São Pedro, no Vaticano, que é comparado ao “Martírio de São Erasmo”, de Nicolas Poussin, testemunha que Valentin possuía certa fama na Roma artística de seu tempo.

Giovanne Baglione, biógrafo de alguns pintores como Caravaggio, falou sobre as circunstâncias da morte do pintor Valentin de Boulogne: ele teria mergulhado numa fonte de água gelada, após uma noite de bebedeira. As despesas com seu sepultamento foram assumidas por Cassiano dal Pozzo, um de seus mecenas. As cenas nas tabernas e as reuniões musicais das quais participava, que surgem em algumas de suas telas, mostram-no como um artista de vida livre, independente e boêmio. 

O trapaceiro, 1620, óleo sobre tela, 95x137 cm,
Gemäldegalerie, Dresden, Alemanha
No Museu do Louvre, por exemplo, estão dois desses quadros: “Reunião em um cabaré” e “A Cartomante de boa aventura”.

Mas Valentin teria pintado ousadas alegorias, dentro da veia realista de Caravaggio, assim como temas mitológicos, retratos (como o do Cardeal Francesco Barberini, seu protetor) e muitas pinturas religiosas “de um lirismo surdo e violento”, diz a enciclopédia Larousse. Todas essas pinturas indicam a influência de Caravaggio, a quem se manteve fiel, assumindo uma forma de arte muito pessoal, sensível às nuances sutis da luz, mas – diz o texto da enciclopédia – de uma “melancolia febril e delicada” que mostra como a pintura do século XVII possuía uma espécie de poesia muito característica daquele tempo.

Músicos e bebedores, 1625, óleo sobre tela, 95 x 133 cm, Museu do Louvre, Paris, França
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POSTS SOBRE CARAVAGGIO E OS CARAVAGGESCOS:

- José de Ribera, caravaggesco

terça-feira, 14 de agosto de 2012

Hendrick van Somer, caravaggesco da escola de Ribera

São Jerônimo
São Jerônimo, de Hendrick van Somer
Dando continuidade aos posts sobre os pintores influenciados por Caravaggio e que estão na mostra “Caravaggio e seus Seguidores” do Masp, nos detemos um pouco sobre um deles, Hendrick van Somer.

Quase nada se sabe sobre esse excelente pintor da escola caravaggesca. Ele nasceu em Amsterdam, Holanda, em 1615, viveu alguns anos na Itália onde ficou conhecido como Enrico Fiammingo, e morreu em sua terra natal em 1685.

Querubim com a lira, Aert Mijtens
De acordo com alguns historiadores, seu pai também teria sido pintor (conhecido como Barend Van Zomeren) e teria vindo da escola do pintor flamengo Franz Hals. Hendrick também era neto de outro pintor, Aert Mijtens, que exemplificamos com uma de suas pinturas inseridas aqui neste post (ao lado). Por ela, que está em alta resolução, dá para ver que o estilo do avô de Hendrick também era pictórico. Na verdade, Hendrick descendia de uma família de pintores que haviam vivido desde os Países Baixos até a Itália, especialmente Nápoles e Roma.

Hendrick foi aluno de José de Ribera, também presente na exposição do MASP. Depois da temporada de aprendizado em Nápoles, com Ribera, Van Somer foi para Bologna e estudou no atelier do pintor Guido Reni, um dos continuadores do classicismo implantado em Bologna pelos irmãos Carracci. Hendrick também pintou à moda desse mestre, como pode ser observado em suas pinturas feitas para a igreja de San Barbaziano, na mesma cidade.

Sua obra “São Jerônimo”, que se encontra na exposição, é uma grande pintura, dentro do estilo do mestre Caravaggio. Mas algo nela me chamou muito a atenção, e por isso fiquei bastante tempo observando a tela de perto. Não sabia ainda que ele tinha passado pela escola de Ribera, que como caravaggesco é um dos melhores. Com essa informação, voltei a ver melhor o “São Jerônimo” de Van Somer, inclusive lembrando que ele vinha de uma família de várias gerações de bons pintores dos países mais ao norte da Europa, tradicionalmente realistas e pictóricos. 

Nesta pintura
de Van Somer dá para notar
a influência de José de Ribera
A pintura fala por si mesma: o fluxo da luz atravessa o quadro, desvendando o personagem principal que lê e tem nas mãos uma longa folha de papel horizontal, escrita à mão. As sombras são quentes, como ensinou o mestre Caravaggio, seguido por Ribera. O corpo envelhecido do santo, coberto por um manto vermelho, recebe o foco principal da luz que também se reflete na cabeça arredondada, assemelhada à cabeça do “São Jerônimo escrevendo” de Caravaggio.

Hendrick van Somer fez mais de um São Jerônimo. Caravaggio também. José de Ribera também. Era um tema importante para a época, porque esse santo foi o intelectual responsável pela tradução da Bíblia do grego e do hebraico antigos para a língua latina, sendo também o patrono dos bibliotecários e tradutores.

Outra versão de "São Jerônimo" de Hendrick van Somer, segunda metade do séc. XVII,
óleo sobre tela, 98 x 79 cm, coleção privada
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segunda-feira, 6 de agosto de 2012

A sombra de Caravaggio

Caravaggio: São Jerônimo escrevendo, 1606, 112x157 cm, Galeria Borghese, Itália
Eu me dei uma tarefa muito difícil nestes dias: fazer uma cópia, em pastel, de um detalhe da pintura “São Jerônimo escrevendo”, de Caravaggio. A dificuldade já começa com o uso do material, o pastel, uma vez que ele fez o quadro em óleo, usando uma camada interna que, na pintura, denominamos underpainting. Depois, por cima dessa camada, ele usava a técnica da veladura (uma camada de tinta transparente sobre o fundo pintado) e empasto (uma camada de tinta densa, com bastante matéria).
Como fazer isso com pastel? Para quem não sabe, pasteis são pequenos palitos de pigmento, como lápis de cera, mas com uma densidade mais macia. A primeira dificuldade que encontrei foi o fundo denso, a sombra escura do quadro, que não é preto, mas há um misto de preto com cores quentes, principalmente o vermelho. As sombras de Caravaggio são quentes. Nada de azul, cinza, verde, preto puro. Muitos vermelhos misturados ao preto. Quanto à figura em si, a caveira sobre um livro e a mão do santo escrevendo, resolvi aplicar a técnica do atelier do qual participo – o do Maurício Takiguthi – procurando ser o mais pictórica possível, trabalhando as camadas, as sobreposições.
Caravaggio pintava somente a luz. Para ele interessava o jogo dos raios luminosos lançados sobre os objetos, e ia em busca do que a luz ia deixando pelo caminho, em forma de figuras humanas, objetos. Mas interrompi meu exercício de copiar Caravaggio. Peguei na minha prateleira o livro de Roberto Longhi – Caravaggio – e mergulhei em sua leitura, disposta a compreender um pouco mais desse mestre que tanto me atrai.
  O texto abaixo, para quem tiver vontade e tempo para ler, é um resumo do que estudei do livro de Roberto Longhi. Ele pode ajudar a esclarecer um pouco do mistério de Caravaggio.
Um pouco sobre Roberto Longhi: ele nasceu em Alba, Itália, em 1890. Estudou na Universidade de Turim, onde se formou em 1911 com uma tese sobre Caravaggio. Mudou-se para Roma, onde fez uma especialização em História da Arte. Era apaixonado também pela obra do pintor realista francês Gustave Courbet e a de Pierre-Auguste Renoir, assim como leitor fascinado da poesia de Charles Baudelaire e Stéphane Mallarmé. Trabalhou em diversas publicações especializadas em arte e se tornou professor de História da Arte da Universidade de Bologna e depois em Florença, onde morreu em 1970. Mas a maior atividade intelectual de Longhi foi tornar conhecida internacionalmente a obra de Caravaggio, assim como de reforçar a sua influência na pintura barroca do século XVII. Este livro sobre o qual me debrucei foi publicado pela primeira vez em 1951.
O texto de Longhi é uma leitura fluida, que se parece, muitas vezes, mais com uma conversa do que com um texto acadêmico. As frases são longas, onduladas, ele vai para frente e para trás no tempo, alternando dados da biografia do pintor com reflexões sobre suas pinturas.
Vamos tentar seguir o texto de Longhi como ele foi escrito, para nos focar, porém, em dois aspectos dos diversos que surgem no livro: o fascínio de Michelangelo Merisi pela Luz e pela Sombra e sua obsessão em pintar nada mais nada menos do que o Real.
Detalhe de "Amor vincit omnia", 1602-03, óleo sobre tela, 156 x 113, Staatliche Museum, Berlim, Alemanha

Primeiros passos 
No pequeno povoado de Caravaggio, norte da Itália, ele nasceu em 28 de setembro de 1573. Era filho de um pedreiro, que trabalhava construindo as casas dos marqueses locais. Mas seus pais morreram quando ele era ainda pequeno. Aos 11 anos, seu irmão Battista, o encaminha para Milão, cidade próxima. Lá, o menino estudou durante quatro anos com o pintor dos mais considerados em sua região, Simone Peterzano. A precocidade do garoto logo se fez mostrar e Peterzano lhe disse que com 15 anos de idade ele já poderia trabalhar sozinho.
Entre 1584 e 1589, Michelangelo Merisi de Caravaggio – assim ficou conhecido por causa de sua cidade de nascimento – viajou entre Bérgamo, Bréscia, Cremona, Lordi e Milão, sempre no norte italiano. Roberto Longhi diz que nessa região havia uma comunidade de pintores que vinha se mantendo há muito tempo como uma espécie de “santuário de arte simples”, mais voltado para pintar a humanidade mais próxima, a religiosidade dos humildes, o colorido mais verdadeiro, as “sombras mais marcadas”. O que eles queriam, diz Longhi, era “entender melhor a natureza dos homens e das coisas”. Esse tipo de pintura era feita naquela região por mestres que vinham desde Ticiano. E ela marcou profundamente a adolescência do jovem Caravaggio.
Milão, na época em que ele passou por lá, atraía aprendizes jovens e sem recursos, como ele próprio, órfão de um mestre-de-obras. Depois de passados quatro anos de “estudos conduzidos com diligência”, Caravaggio viaja para Roma, chegando lá por volta de 1589-90, com 16 ou 17 anos de idade.
Em Roma
Um dos biógrafos de Caravaggio que o conheceu desde sua chegada a Roma, Giovanni Baglione – que era também pintor e tem um quadro seu na exposição do Masp – atesta que ele veio com “ânimo de aprender com diligência este virtuoso exercício”. Naquela época, a viagem a Roma era uma viagem de estudos e Caravaggio tinha uma “sanha constante” em aprender.
Mas antes, em suas viagens, ele teria tomado anotações sobre uma obra de Annibale Carraci na “Deposição” da igreja dos Capuchinhos em Parma, que ele teria usado quando pintou a Nossa Senhora morta, 15 anos mais tarde. Em Florença, ele teria estudado os afrescos de Masaccio na igreja de Santa Maria del Carmine, além de ter lido pelo menos dois textos sobre pintura: um de Giorgio Vasari (autor da “Vida dos Artistas”, recentemente publicado em São Paulo pela Editora Martins Fontes) e o “Trattato” de Lomazzo. Ambos, no ateliê de seu professor Peterzano. No Trattato de Lomazzo, estava escrito que Masaccio “apenas iluminava e sombreava as figuras sem contorno”. Mais essa informação fica gravada na mente de Caravaggio.
Em Roma, onde prosperava a religião católica e diversas igrejas e casas religiosas iam sendo construídas, estava aberto um imenso campo de trabalho para os pintores que vinham de vários cantos da Itália e mesmo da Europa.
Quando o jovem Caravaggio chegou nessa cidade próspera e que apontava grandes possibilidades de trabalho também para ele, era muito pobre e necessitado. Nos primeiros meses, arranjou trabalho na oficina de Lorenzo Siciliano, que lhe pagava por dia. Seu trabalho era pintar cabeças, que ele fazia até três por dia. Um padre, Pandolfo Pucci, lhe ofereceu abrigo, em troca de algumas “cópias de devoção”. Mas pouco se comia por lá e logo Caravaggio lhe deu o apelido de “monsenhor salada”. Pouco depois, foi trabalhar no ateliê de um pintor pouco mais velho que ele, Antiveduto Gramatica (conhecido como o “grande cabeceiro”), onde Caravaggio fazia “cópias, na sua maioria, dos bustos de homens ilustres da coleção de Villa Médici e do Museu Gioviano, ou produções semelhantes em série para forasteiros de passagem”.
Rapaz com cesto de frutas, 1593,
óleo sobre tela,
70 x 67 cm, Galeria Borghese, Roma
Mas não demorou muito para Caravaggio começar a pintar por conta própria e são desse período seus quadros: “Menino mordido por um lagarto”, “Menino descascando uma pera” e o retrato de um taberneiro com quem se hospedara, o “Retrato de um alfaiate”.
Mas a vida era muito difícil naqueles tempos e Caravaggio vivendo na miséria, adoeceu gravemente. Foi internado no hospital dos indigentes, onde teria pintado “muitos quadros” para o  prior do hospital, que era de Sevilha, Espanha. E para lá levou essas pinturas de Caravaggio. Longhi observa que 20 anos depois, em Sevilha, nascia uma grande pintura local: aí estava o jovem Diego Velázquez, assim como Zurbarán e Cotán, “que pintavam naturezas-mortas”.
Quando se recuperou, ele foi passar uma temporada no atelier de Giuseppe Cesari di Arpino, um rapaz cinco anos mais velho que ele e também considerado pintor-prodígio. Mas a presença de Caravaggio lá não foi gratuita: Arpino se apropriou de duas pinturas dele: o “Jovem Baco Doente” e “Rapaz com cesto de frutas”.
Mais uma vez Caravaggio tenta se estabelecer por conta própria e encontra um quarto onde dormir na casa do monsenhor Fantin Petrignani. Dessa fase do artista, são seus quadros: “Baco”,  “A Cigana que lê a sorte”, “Repouso na fuga para o Egito”, “Madalena Arrependida”, nos quais ele já se mostra “dono de um modo novo e inédito de ver e pintar”. Um dos seus biógrafos dizem que o quadro “Menino mordido por um lagarto” foi vendido por menos de 25 giuli e a “A Cigana que lê a sorte” por 8 escudos, preços simplesmente irrisórios.
Mas a venda dos quadros era rara e, ainda segundo Giovanni Baglione, Caravaggio “acabou ficando sem dinheiro, e pessimamente vestido, de modo que alguns cavalheiros da profissão, por caridade, o andaram ajudando”.
Caravaggio em seus dias de maior miséria, jogado de lá pra cá, “entre os monsenhores de meia-pataca e colegas de caridade interesseira” muitas vezes tentava vender suas obras na rua dos comerciantes, quando conheceu o mestre Valentino. Foi um dos primeiros a reconhecer o talento do pintor. Impressionado, Valentino o apresenta ao cardeal Del Monte que era um apreciador da pintura e poderia ser um provável comprador. Mais do que isso, Caravaggio se hospedou na casa dele, ganhando comida e um salário, como pagamento para que ele pintasse quadros para o cardeal. Mas não era fácil conviver com o jovem pintor. Numa carta de Dom Del Monte a Federico Borromeo, de fevereiro de 1596, ele conta que o temperamento de Caravaggio era tão difícil que ele, o cardeal, precisava “armar-se de paciência”.
É desse tempo seus quadros “Os Trapaceiros”, o “Tocador de Alaúde” e a “Cabeça da Medusa”, encomendados pelo padre.


O tocador de alaúde, 1595-96, óleo sobre tela, 100 x 126 cm
Museu Hermitage, São Petersburgo, Rússia

Realismo, sua obsessão
Estudando esses primeiros trabalhos, pode-se notar o que Caravaggio estava procurando. Desde seu início em Roma ele já tinha a ideia fixa em “uma pintura fiel à realidade”. Isso, numa cidade de pintores clássicos, fazia dele uma espécie de herege. Longhi diz que em Roma “o que se pedia à pintura não era a verdade, e sim ‘devoção’ ou ‘nobreza”, dos temas, das ações”. Mas para o ele a pintura era fruto da “unidade de visão, talvez dura e firme, mas sempre total e penetrante, do jovem Caravaggio diante do objeto”. A pintura deveria espelhar a realidade.
Giovanni Baglione também disse que Caravaggio pintou seus primeiros quadros “retratados no espelho”, provavelmente porque sem dinheiro para pagar modelos, ele se dedicava a “contínuos autorretratos”. Mas outros estudiosos de sua obra discordam dessa informação. O espelho era um recurso usado na pintura para fazer autorretratos, ou para fazer com que o modelo aparecesse bidimensionalmente. Mas essa aplicação era mais rara.
Mas Caravaggio, diz Longhi, olhando em redor, via a realidade como “‘pedaços’ parados de universo, onde não havia lugar para contornos, relevos ou cores como fórmulas de abstração”.
Ele tinha um respeito obstinado pelo verdadeiro, pelo real. Se voltava para a vida como um todo, para os sentimentos simples, para as pessoas simples, para o “aspecto cotidiano dos objetos”. Em seus primeiros temas, Caravaggio pintava basicamente figuras de adolescentes, provavelmente – diz Roberto Longhi – porque, como era pobre, não tinha condições de pagar os modelos que precisasse e recorria aos amigos da mesma idade, como ele filhos de pedreiros, ajudantes de tabernas, “rapazes de rua”, vagabundos.
Por isso suas primeiras pinturas não foram compreendidas por seus contemporâneos. Foi preciso passar 50 anos depois que ele morreu para que se concluísse que ele pintara seus “semelhantes”.  E esse tipo de pintura só recebia críticas. Longhi dá o exemplo de um pintor holandês que se fixara em Roma entre 1625-39 chamado Pieter van Laer (1592-1642), que pintava cenas de rua. Segundo um biógrafo da época, Laer “pintou os piores”, “ou seja, aquela pobre gente que é assunto de rua e não de história”. O nível de depreciação era tão grande que, pelo simples fato do pintor ser gordo, foi apelidado de Il Bamboccio, o gorducho que só pintava pobres.
Mas Caravaggio não se rendia às exigências de seus contemporâneos. O tema do cotidiano era sua ideia fixa desde o começo, tipo de pintura que além de tudo era considerada sem decoro. É bom observar que naquela época quase se pintava somente temas impostos por encomenda quase exclusiva de padres ou nobres colecionadores. Quem não se rendesse a essas exigências estava condenado à miséria e ao anonimato.
Entre 1585 e 1595, a teologia dos jesuítas encheu Roma de pinturas de anjos. Todos os artistas eram contratados para pintá-los pelas igrejas e casas eclesiásticas da cidade. Um deles foi o pintor Scipione Pulzone, que ele usava pessoas comuns como modelo para seus anjos de pé. Eram tão belos pictoricamente, diz Giovanni Baglione, “que pareciam respirar vida e movimento”. Mas as pessoas usadas como modelos eram conhecidas de todos, eram cidadãos simples da cidade. O resultado disso foi que os quadros dos anjos foram retirados do local.
Mas Caravaggio, que viu os anjos de Pulzone, não se deixava desviar de seu caminho e insistia em voltar sua pintura para o campo “daquele realismo cotidiano que teve enorme continuidade nos seguidores de todo o mundo”, arremata Roberto Longhi.
Naturezas-mortas
E fez mais uma inovação: inaugurou em Roma a “rubrica, absolutamente nova” para aquela cidade, a “natureza-morta”. Para Caravaggio, segundo um de seus amigos, a dificuldade em pintar a figura humana ou uma natureza-morta era a mesma. Ele tinha, no dizer de Longhi, um olhar permanente para as coisas do mundo, “a realidade contínua na vida dessas coisas paradas e silenciosas sob o crescer e o diminuir da luz e da sombra”, mas que refletem o olhar daquele que criou aquele encanto. Fosse um retrato, fosse uma natureza-morta.
Foi quando ele pintou o “Tocador de Alaúde”, “a mais bela peça que jamais fiz”, segundo teria dito aos amigos e que foi adquirida pelo cardeal Del Monte. Nesse quadro, um jovem rapaz toca seu instrumento ao lado de uma natureza-morta com flores e frutas.
Natureza-morta com cesta de frutas, 1596-98,
óleo sobre tela, 31 x 46 cm,
Pinacoteca Ambrosiana, Milão
O que ele queria mostrar com isso? Segundo Longhi, nada mais nada menos dizer que não havia superioridade, na pintura, entre “uma natureza superior glorificada no homem e uma inferior natureza”, coisa que o Renascimento distinguia. Para os padrões de pensamento da época, muito influenciados pela filosofia católica, as pinturas com temas de flores e frutas, jarros e outros apetrechos, não podiam representar uma “apreensão direta da verdade”. Além de tudo, diziam, “pertenciam às cozinhas ou aposentos da criadagem”. Quando se pintava natureza-morta no sentido renascentista, se escolhiam os objetos mais belos, como cristais, copos de Murano e petiscos das mesas dos cardeais. Mas Caravaggio - contra a moda - pintava as cestinhas simples de frutas baratas, com maçãs meio apodrecidas ao lado de outras boas, folhas verdes e também folhas secas e murchas.
E tinha um outro problema em relação às naturezas-mortas, que as diminuíam aos olhos do sistema de pensamento daquela época: elas representavam “temas parados”, quando o que se exigia era a ação nas pinturas de cenas históricas. Esse era mais um ponto de crítica ao trabalho de Caravaggio. Diziam dele que suas pinturas não tinham “ação”. Olhavam para o quadro do rapaz simples descascando uma pera, ou para o músico “tocando de leve as cordas de um alaúde” e o acusavam de serem ações insignificantes, quase inexistentes. Nada a ver com os temas que se esperavam de qualquer grande pintor: os de histórias de ações humanas grandiosas e ilustres, ou os temas religiosos.
Giulio Mancini, outro biógrafo de Caravaggio, escreveu dez anos após a morte do pintor: “Essa escola de Caravaggio é muito observante do verdadeiro, e sempre o tem diante de si quando trabalha; faz bem uma figura sozinha, mas na composição da história, e para apresentar emoção, tomando-a da imaginação e não da observação da coisa para retratar o verdadeiro que sempre tem à sua frente, não me parece que seja válida, sendo impossível colocar num aposento uma multidão de homens que representem a história com aquela luz de uma única janela, e ter alguém que ria ou que chore ou faça o gesto de andar e fique parado para ser copiado, e assim as suas figuras, embora tenham força, carecem de movimento, de emoções e de graça”.
Mas, diz Roberto Longhi, o tipo de movimento que interessava o pintor Caravaggio era aquele que podia ser captado num instante: um rosto de dor, como em vários quadros seus, desde o “Menino mordido por um lagarto” até a “Medusa”. O Cardeal Del Monte foi quem encomendou a cabeça da Medusa, o que ele fez num “velho escudo oriental de torneio”. (Este quadro está exposto no Masp). O tema mitológico não era um tema real para ele, mas mesmo assim Caravaggio o tornou real: pintou o próprio rosto no rosto da Medusa e, diz Longhi, “os cabelos são cobras muito verdadeiras”.
Repouso na fuga para o Egito, 1596-97, óleo sobre tela, 135 x 166 cm,
Galeria Doria-Pamphilij, Roma

Temas religiosos
Mas ele tinha que sobreviver e queria muito ser reconhecido como artista. Voltou-se para os temas religiosos, que não dominava muito, e pintou o quadro “Repouso na Fuga para o Egito” e “Madalena Arrependida”, também acusados de serem temas “parados”. Mas... a paisagem do quadro “Repouso na Fuga para o Egito” era muito real, assim como o corpo do anjo que está em frente a José, o carpinteiro, um velho de mãos calejadas e pés descalços muito concretos. O tema da Madalena era comum entre os pintores da época, que usavam como modelos cortesãs apresentadas como se fossem santas. A Madalena de Caravaggio, pelo contrário, “era uma pobre camponesa traída, com uma lágrima pendente no rosto, num quarto escuro e sem mobília”.
Sua visão sobre os assuntos religiosos eram de um leigo, e ele quase não usava as famosas auréolas em torno das cabeças dos santos. Caravaggio não parecia ter alguma formação religiosa. Pelo contrário, Longhi observa que a única coisa que Caravaggio sabia “da condição evangélica era que os apóstolos provinham de gente do povo”.
As primeiras pinturas religiosas que lhes foram encomendadas não foram para igrejas, mas para colecionadores privados, que gostavam de enfeitar suas casas com temas religiosos.
Mas Roma, no dizer de Longhi “a maior fábrica de quadros de altar para toda a Europa”, exigia que ele se voltasse mais ao que o mercado demandava. Deve ter pedido apoio ao cardeal Del Monte, para que intercedesse por ele e recebesse encomendas para os altares, o que era uma forma de também torná-lo conhecido.
O primeiro quadro encomendado para uma igreja, a capela Contarelli em San Luigi dei Francesi, “deve ter sido” o “São Mateus e o Anjo”, que ficou pouco tempo no altar da capela, porque não agradou muito.  Em sua ignorância das lendas religiosas, ele não sabia, por exemplo, que São Mateus tinha sido um coletor de impostos, e o tratou como se fosse uma pessoa simples, de aparência rude, analfabeto, que franze as rugas diante de um papel escrito “sob a pressão da mão do anjo, rapagão insolente, envolto num lençol de atravessado”, como se fosse a cena de uma peça “sacra de um pequeno teatro paroquial”. Isso por volta de 1592-93. Rejeitado o quadro, o marquês Giustiniani ficou com ele em sua coleção. Essa primeira versão do São Mateus foi perdida em Berlim, na II Guerra, em 1945.
Em todos os quadros de temas religiosos de Caravaggio, surgem em qualquer ponto que se observe do quadro, o pensamento do artista: ele queria ser fiel ao real, e essa fidelidade ele o levava às últimas consequências. Não se importava se fossem criticar, ou mesmo rejeitar seu quadros, mas jamais abria mão de ser verdadeiro.
Longhi exemplifica essa questão em diversos quadros religiosos do artista:
- “Conversão de São Paulo”: uma tempestade é que faz empinar o cavalo que derrubou Saulo, que coloca as mãos nos olhos como se eles tivessem sido feridos pelo raio. Ao fundo, a escuridão das nuvens densas, com uma iluminação fulgurante cortando o céu tão escuro como “um fundo de Géricault ou de Courbet, está um pouco distante da versão bíblica que atribui esse fato a um evento divino.
 - “Sacrifício de Isaac”: a paisagem é tranquila “como numa vista italiana de Corot”, diz Longhi. Mas era uma paisagem italiana, dessas que ele pode ter estudado nos arredores de Roma.
- “Ceia em Emaús”: a cena parece ser a de uma taberna comum em Roma: sobre a mesa, uma natureza-morta, as pessoas ao lado de Jesus, pessoas comuns, idosos, sofridos, mal-vestidos. Ele fez duas pinturas desse mesmo tema, em 1602 e depois em 1606.


A vocação de São Mateus, 1599-60, óleo sobre tela, 322 x 340 cm,
Igreja San Luigi dei Francesi, Capela Contarelli, Roma

Sombra e luz
E tudo envolto por alguma obscuridade sempre. Eu me pergunto: o que Caravaggio queria mostrar com isso? Por que essa atração por pintar o contraste tão forte entre sombras muito densas e raios de luz que dão forma aos objetos? Queria ele dizer que o real, esse que a luz desvela, esconde camadas pastosas e quentes de obscuridade que colocam o mundo em equilíbrio entre luz e trevas? Queria ele descrever a obscuridade como um evento tão verdadeiro quanto misterioso e que em pé de igualdade com a face iluminada do mundo faz parte da nossa natureza, inclusive humana? E que não existe gradação de superioridade x inferiodade na verdade do Real? Lembremos que desde a Alta Idade Média a Filosofia se voltava a ensinar aos homens que o mundo espiritual era o mundo luminoso a ser buscado e alcançado; que o mundo terreno, da matéria, era o mundo da obscuridade, do pecado a ser evitado. Havia essa distinção entre o mundo celeste e o terrestre, entre o espiritual e o material, entre a alma e o corpo... Não teria o nosso mestre Caravaggio querido demonstrar que toda aquela forma de ver e ensinar era uma grande balela, que nada está separado de nada, que luz e trevas são parte do nosso mundo? E ele com sua própria vida desregrada, vagabunda, arruaceira, que era capaz de executar uma obra de tão alto nível, não sintetizava em si mesmo tudo o que ele pensava sobre a natureza dos homens?
Por tudo isso também ele foi revolucionário.
Mas voltemos ao livro de Roberto Longhi.
Quanto mais Caravaggio amadurecia, mais reforçava os escuros dos quadros, diz Longhi. Ele se via forçado, para viver, a pintar cenas religiosas, com bases em histórias da Bíblia. Mas isso não o impedia de continuar sua resistência, não fugindo à sua ideia fixa de pintar o que era real. Por isso usava figuras comuns, pessoas que ele encontrava pelas ruas de Roma, ou de seus amigos e amigas, miseráveis. Seus fundos escuros eram para ele uma questão de conteúdo, como se quisesse dizer que já que tinha que pintar aqueles temas, ele os inseriria em meio a escuridões “revestindo-se inevitavelmente com o clarão abrupto da luz reveladora entre os rasgos incognoscíveis da sombra.” Ele queria mostrar “a forma das trevas” que interrompem os corpos e todos os personagens inseridos nesse trágico jogo de sombra e luz.
Entre 1592 e 1594 ele pintou mais dois quadros para a mesma capela de San Luigi que tinha recusado o seu São Mateus inicial: “A Vocação de São Mateus” e o “Martírio de São Mateus”. Observando a primeira tela, Longhi diz que parece ser uma cena dentro de uma taberna, com jogadores de azar. Mais uma vez ele se arriscava publicamente num tema religioso. Uma rajada de luz penetra no local através de uma janela no alto. A figura do Cristo, vem da mesma direção, está envolta pela sombra. Apenas a mão dele, que indica a mesa onde está Mateus, se encontra iluminada na parte direita do quadro. A luz, junto com a mão, parece indicar a mesa onde está Mateus, clareando os rostos dos jogadores, que parecem pegos de surpresa. A cena, para uma história religiosa, era mundana. As cores muito vivas. As sombras, densas. A luz, revelava as cores das roupas e os rostos dos jogadores. O rosto do Cristo, na sombra. Agora Caravaggio já sabia que Mateus tinha sido um coletor de impostos.
Já no outro quadro, o “Martírio de São Mateus”, Longhi observa que mais uma vez a dramaticidade do quadro é movida pelo jogo de luz e sombras e acrescenta que Caravaggio “tem a ousadia” de transformar um tema sagrado “num crime de página policial dentro de uma igreja romana da época”. Parece que ele queria provar, observa Longhi, “que o verdadeiro às vezes também nos aparece assim, mas decidisse que, para imergi-lo na realidade natural é preciso ‘macerar-lhe a carne’ e interrompê-lo com as travessas enodoadas da sombra”.
Giulio Mancini escreveu em 1620, sobre o ateliê de Caravaggio: “Um feixe unido de luz que vem do alto sem reflexos, como seria num quarto com as paredes pintadas de preto de maneira que, assim ficando os claros muito claros e as sombras muito escuras, elas venham a dar relevo à pintura, mas de modo não natural, nem feito nem pensado por outro século ou por pintores mais antigos”.
Roberto Longhi observa: “Em Caravaggio é a própria realidade que é atingida pela luz (ou pela sombra) em ‘incidência’”.
Seus anjos, quando os pinta, sempre têm as asas escuras e nunca estão voando. No máximo, pousados sobre uma nuvem densa e bem concreta.
Mas Caravaggio, diziam seus amigos e biógrafos, nunca “elogiava abertamente nem a si próprio”. Estava sempre obcecado em alcançar o real de uma forma que saltasse aos olhos dos que pudessem ver. Quando estive observando seus quadros expostos aqui em São Paulo, no Masp, tive essa certeza: a pintura de Caravaggio fala, e fala muito. Ela diz muito do que ele era, de como ele enxergava o mundo e o seu tempo. Basta ter olhos e ouvidos para “ouvir” sua pintura.
Ao final de sua fase de pinturas para a igreja de San Luigi, Caravaggio se voltou para um tema que parecia ser seu preferido: São João Batista, santo briguento, selvagem, intratável. Que se vestia de pele de cordeiro, comia insetos e esbravejava contra o mundo, profetizando novos tempos. Talvez Caravaggio, ao conhecer sua história, se identificou com ele, para quem usava como modelo um jovem companheiro. Ele pintou vários “São João Batista”. Inclusive este “São João Batista alimentando o Cordeiro” que se encontra no Masp. Longhi conta que, para pintar o cordeiro, esse e outros de seus quadros, Caravaggio alugava algum dos rebanhos que no começo do inverno ainda atravessavam Roma durante a noite. E lembra que Gustave Courbet, no século XIX, alugou um boi e levou-o para dentro de seu ateliê de Paris.
Retrato de Caravaggio,
por Ottavio Leoni
Caravaggio , o inquieto
Com apenas 27 anos de idade, conquistou a fama e o reconhecimento que queria, porque sempre “apresentava todos os sinais de uma precocidade inata excepcional e uma capacidade de crescimento sem fim”. Em 1601, Karel van Mander, amigo íntimo de Dom Arpino, descreve no norte da Europa o que via como uma novidade artística daquele ano:
“Ele tem o defeito de não se dedicar estavelmente ao estúdio; depois de trabalhar quinze dias, fica de folga por um mês. Espada ao lado e um pajem atrás, ele vai de um campo de jogo a outro sempre pronto para brigar e se bater, de modo que não é cômodo acompanhá-lo”.
Uma descrição feita em 1672, por Giovan Pietro Belori, dizia: “ele era de tez sombria e tinha os olhos escuros, negros os cílios e os cabelos, e assim foi também naturalmente na sua pintura”.
“De fantástico humor decerto estranho, descorado no rosto e nos cabelos, bem alto, encaracolado, os olhos vivos, sim, mas encovados”, disse Giulio Cesare Gigli.
Ottavio Leoni, outro artista, cruzou muitas vezes com Caravaggio em Roma e fez dele o retrato conhecido.
Ele era um jovem de caráter irritadiço. Um dia jogou alcachofras na cara do atendente luganense da Osteria del Moro que o tratara mal. Lançava improprérios aos guardas às cinco horas da madrugada quando bêbado, saía pelas ruas. Feriu o sargento de Castello e feriu mais forte a cabeça do tabelião Pasqualone.
Um dia recebeu a visita do irmão Battista, a quem não via há muitos anos. Ele era agora padre, homem de letras e bons costumes. Caravaggio não o recebeu bem, diz Longhi: “Quem poderá explicar por que, naquele certo dia, afirmando ser sozinho no mundo, ele negou, cara a cara, reconhecer o irmão padre, “homem de letras e bons costumes” que dizia ter vindo de tão longe para revê-lo?” Battista nunca tinha vindo ver o irmão antes de saber que ele agora era famoso pintor em Roma.
Com sua fama e o reconhecimento público da qualidade de sua obra, as rivalidades cresciam. Mas ele as resolvia a seu modo, com seu temperamento irrefreável. Em 1603 seu futuro biógrafo Baglione (Giovanni Baglione, que está no Masp) abre um processo contra ele, acusando-o de “grosserias e versos obscenos”, mas no fundo invejava a fama de Caravaggio. Baglione era pintor também, mas não chegava aos pés do concorrente. Inventou que Caravaggio e seus amigos tinham posto em circulação versos obscenos. Caravaggio teria respondido ao juiz que não compunha versos nem em língua vulgar, nem em latim, mas “exige que a pintura seja respeitada e não admite que nenhum que não seja valenthuomo se intrometa” no campo da pintura. Também teria dito ao juiz: “Um pintor de valor quer dizer alguém que sabe pintar bem e imitar bem as coisas naturais” e completou: “Os homens de valor são aqueles que entendem de pintura e julgarão bons pintores aqueles que eu julguei bons e maus; mas os que são maus pintores e ignorantes julgarão bons pintores os ignorantes como eles”.
Orazio Gentileschi (também no Masp), que foi testemunha nesse processo e que “também tinha um humor um tanto estranho” declarou sobre o caso Baglione-Caravaggio: “Baglione, andando por Roma, espera que eu lhe tire o barrete e eu espero que ele é que tire o barrete para mim, e também Caravaggio, embora seja amigo, espera que eu o cumprimente”. Ou seja, as rivalidades andavam à flor da pele.
Entre os 20 e os 30 anos de idade, Caravaggio atravessava, “por assim dizer, Roma inteira”. Brincava com seu cão preto, estudava seus quadros, joga pela, frequentava as prostitutas, ia às tabernas onde tinha amigos “de todas as raças e extrações”, se embriagava de vinho e partia para as ruas em gritaria, lançando palavrões para a polícia, se envolvendo em brigas com seus rivais, e jogando pedras na janela da senhoria. Os frequentadores das tabernas também eram os comerciantes de quadros (de Lorenzo Siciliano ao mestre Valentino), estudantes, livreiros, artistas, como o arquiteto Onorio Longhi, amigo íntimo de Caravaggio, assim como Orazio Gentileschi, que mais tarde em Londres deixa a barba pontuda, à la Van Dyck. Nas tabernas também iam os pintores franceses e flamengos que vinham a Roma estudar.
Mas Caravaggio também era visto às vezes dedilhando seu violão “pelas ruelas de Campo Marzio”. Parecia “saber transcrever bem músicas de câmara”. Será por isso que sua tela preferida era o "Tocador de Alaúde?"
Nos últimos dias de Caravaggio em Roma, o cardeal Scipione Borghese, sobrinho do papa, “se apropria de todos os quadros de Caravaggio que encontra pela frente, desde os da época inicial da adolescência até, creio eu, os dos últimos anos meridionais, que surgiram no mercado após a morte do artista”.
Em 1601 pintou a “Conversão de São Paulo” e a “Crucificação de São Pedro”, com um realismo chocante, como ele gostava. Em 1602-04, pintou o “Sepultamento de Cristo”, uma tela de 3 por 2 metros, que gerou dúvidas sobre se representava mesmo a crucificação ou o “funeral do chefe de uma tribo de ciganos”. É preciso entender que ele queria pintar “os seus semelhantes, os iguais, trazendo-os para aquela parcela da humanidade comum que melhor preserva uma autoridade quase imanente dos gestos e dos sentimentos, mesmo nos momentos mais extremos”.
 Um antigo biógrafo criticava-o dizendo que Caravaggio não sabia fazer retratos parecidos com seus modelos. Ele nem ligava. Pintava como achava que era pra ser pintado, sempre preocupado com a luz. Entre 1604 e 1605 se dedica a pintar a Nossa Senhora do Loreto. E ele pintou, mais uma vez recorrendo ao seus iguais: pintou “um homem e uma mulher do povo, peregrinos dos mais simples que chegando ao fim da longa jornada, têm a sorte de encontrar a Virgem que, saindo de casa e detendo-se por um instante em atenção a eles, encosta-se no antigo umbral da porta.” Mais uma vez ele perturbou os defensores dos costumes da época, de uma forma quase “insuportável”. O alarido em torno da pintura foi grande e diz-se que pessoas do povo também entraram na polêmica, aplaudindo o pintor e o fato de se verem colocados sobre o altar.
Em 1605, o monsenhor De Massini encomendou um “Ecce Homo” a três pintores: Caravaggio, Cigoli e Passignano. Acabou escolhendo a obra de Cigoli. Mais uma vez, porque não dava para aceitar o que o pintor “maldito” fizera: prevendo que o padre não ia escolher seu quadro, Caravaggio pintou o próprio rosto, carregado de mal humor, no rosto do “Ecce Homo”.
Os Trapaceiros, 1594-95, óleo sobre tela,
Kimbell Art Museum, Fort Worth, EUA
Mais uma encomenda, mais uma censura: a Nossa Senhora com a serpente para o altar dos Palafraneiros, na basílica de São Pedro. Sua Sant’Ana, no quadro, é uma velha camponesa; a Mãe tem a manga arregaçada, como se fosse “uma lavadeira”; o Menino “nu como Deus o criou” ajuda a mãe a esmagar a cabeça da serpente pondo seu pé em cima do dela. Giovan Pietro Bellori, um de seus biógrafos da época diz que ele tinha “retratado vilmente a Virgem com Jesus menino desnudo”.
E não parava por aí. Meses depois, pintou a “Morte da Virgem” para a capela do advogado Cherubini em Santa Maria della Scala in Travestere, que foi imediatamente retirada de lá pelos padres. Roberto Longhi observa que esse quadro foi salvo pouco tempo depois pelo próprio Peter Paul Rubens, o pintor flamengo, que o enviou para fora de Roma e chegou a expô-lo publicamente. Mas por que os padres não aceitaram o quadro? Pelo simples fato de que ele pintou no rosto da Virgem o rosto de uma cortesã que ele amava... Seus biógrafos questionavam por que ele tinha “pintado com pouco decoro Nossa Senhora inchada e com as pernas descobertas?”; “Por que ter imitado em demasia uma Senhora morta inchada?”. “Na realidade, o quadro parece mostrar os lamentos pela morte de uma plebeia da periferia, no quartinho de aluguel, separado no máximo pelo toldo sanguíneo que pende das traves do teto, e sem outras peças além de uma cama, uma cadeira e a bacia para os lenços molhados. Quase uma cena de albergue noturno”.
O assassinato e a fuga
Com isso tudo, sua vida ia se tornando mais difícil. Ele via suas maiores obras sendo recusadas uma a uma, enquanto seus rivais eram premiados. Nessa época, ainda por cima, sofreu mais um processo por agressão. Enquanto isso pintou o “São Jerônimo escrevendo”: “Enquanto escreve um fúnebre paralelo entre o seu próprio crânio calvo e a caveira que, no lado oposto, figura como ‘natureza-morta’” junto com velhos livros e uma toalha que pende da mesa de qualquer jeito”, descreve Longhi.
Sobre o assassinato cometido por Caravaggio, Roberto Longhi transcreve no livro alguns relatos da época: “Em 29 de maio de 1606, “em Campo Marzio (...) noite de domingo, uma disputa bastante notável com quatro de cada lado”, sendo chefe de um dos grupos “um tal Ranuccio da Terani” que foi morto depois de uma discussão com Michelangelo da Caravaggio “pintor de certa fama em nossos dias, que dizem que ficou ferido, mas não se encontra onde quer que seja”. Um amigo dele, Antonio de Bologna, ficou ferido e foi preso. A causa da briga foram questões de jogo e “de dez escudos que o morto tinha ganhado do pintor”, conta uma notícia enviada de Roma à corte de Urbino, e está registrada na biblioteca do Vaticano.
Caravaggio teve que fugir porque havia um decreto que o ameaçava pelo assassinato cometido. Fugindo de cidade em cidade, acabou indo para Nápoles, chegando lá no outono de 1606. Passou por Nápoles durante dois perídos: em 1606 e 1607 e depois em 1609 e 1610.
Nossa Senhora do Rosário,
1607, 362 x 249, óleo s/ tela,
Kunsthistorisches Museum, Viena
Na sua primeira estada em Nápoles, pintou a “Nossa Senhora do Rosário” sob sobressalto, porque ele levou para a “sacristia dos padres inquisidores os pedintes mais extraordinários e perfeitos (parecidos com os que serviram a Velázquez para os seus Borrachos), e os arranjou de joelhos, inocentes, com os pés sujos, os braços estendidos, os dedos colados, entre os mais tétricos e patéticos dominicanos (...) no gesto de implorar aqueles pobres amuletos (terços de osso) contra as misérias do seu destino”.
O quadro foi visto à venda em setembro de 1607 em Nápoles, mas logo chegaria à Bélgica e de novo Rubens interviria em favor de Caravaggio, enviando o quadro para a igreja dos Dominicanos de Antuérpia.
Caravaggio resolveu ir para Malta, atrás de uma “cruz de obediência”. Mas lá também pintou alguns quadros, como o “Cupido Adormecido” e outro “São Jerônimo” (1608). No dia 14 de julho de 1608 ele recebeu a cruz de cavaleiro, mas se desentendeu com um oficial de justiça e vai preso por isso. Fugiu da prisão no dia 6 de outubro e foi em direção à Sicília.
Voltou a pintar, desta vez entre os sobressaltos da perseguição dos malteses. O autor do livro “Caravaggio” diz que esses quadros do período siciliano “não trazem senão novos acréscimos à arte”, mas estão muito degradados atualmente, pelas diversas restaurações que tiveram que passar. Fez mais uma inovação, inédita na Itália: diminuiu a medida dos homens em relação ao espaço “sombreados por paredes gigantescas”, que Roberto Longhi diz que era a preparação do caminho paraas futuras “gravuras de Rembrandt”.
Em 1609 voltou a Nápoles, mas foi encontrado “pelos emissários do seu rival maltês” e foi espancado brutalmente. Segundo Giovanni Baglione ele ficou tão desfigurado “que quase não se reconhecia mais por causa dos golpes”. Mas logo se pôs a trabalhar, como sempre fazia, e produziu a Salomé e um Cristo que foi perdido no terremoto de 1805.
Enquanto isso, foi revogado o decreto que pesava sobre ele. Voltando de Nápoles para Roma resolveu ir pelo mar, passando por Port’Ercole. No desembarque, foi confundido com um malfeitor espanhol e detido, mas logo liberado. Mas perdeu seus pertences, que ficaram na embarcação. Sem destino, vagando pela região, foi acometido pela malária.
Morreu de febre em 18 de julho de 1610, sendo enterrado “ali por perto”, segundo seu biógrafo e seguidor Giovane Baglione.
Assim foi a vida e a obra de um homem que mudou os rumos da pintura e influenciou grandes mestres pelo mundo a fora...


Cupido adormecido, 1608, óleo sobre tela, 72 x 105 cm, Palazzo Pitti,
Galleria Palatina, Florença, Itália
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POSTS SOBRE CARAVAGGIO E OS CARAVAGGESCOS:

José de Ribera, caravaggesco