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sexta-feira, 7 de março de 2014

Uma trilha sonora para o inferno?

Jardim das Delícias, Hieronymus Bosch, 1503-1504, Museu do Prado, Madrid, Espanha


Retrato de Hieronymus Bosch,
anônimo, pintado por volta de 1575
Hieronymus Bosch, célebre pintor do Renascimento, tem sido citado diversas vezes nos últimos dias depois que uma estudante da Universidade Cristã de Oklahoma, EUA, resolveu decifrar as notas musicais que o pintor inscreveu na bunda de uma de suas figuras contidas no célebre quadro “Jardim das Delícias”.

Amelia Hamrick (nome da estudante) resolveu analisar o tríptico pintado por Bosch e viu que em uma das figuras dispostas no local onde seria o “inferno” havia uma inscrição de notas musicais. Ela resolveu transcrever essas notas e tocá-las para ver o resultado, que pode ser ouvido num vídeo divulgado no Youtube (veja abaixo).


Detalhe do "Jardim das Delícias"
Curiosidades e brincadeiras à parte, o pintor que teria pensado numa música para o reino de Hades, era muito sério. Este quadro - “Jardim das Delícias” - se encontra no acervo do Museu do Prado em Madrid. Foi pintado em 1504 e descreve a história da criação e os reinos dos céus e dos infernos. Mas essa pintura também representa simbolicamente as angústias e superstições das pessoas que viviam na mesma época do pintor holandês. Ele é o maior dos quadros pintados por Bosch e o mais intrigante. É composto de três partes, por isso chamado de tríptico.


Ampliação do detalhe
A primeira parte representa o Paraíso, expresso em cores claras em tons de verde, azul, amarelo e ocre. Tudo parece tranquilo, harmonioso. A parte central é uma verdadeira explosão de cores vivas e de figuras nuas, parecendo mostrar um paraíso um pouco mais voluptuoso. Na terceira parte do tríptico, as cores são mais escuras como preto, azul escuro e cinza, e diversos instrumentos musicais surgem como se fossem instrumentos de tortura, em meio a cenas de crimes, de guerras e de incêndio, a própria imagem do caos. Numa das figurinhas que se encontram embaixo de uma espécie de violoncelo e de uma harpa, Bosch tatuou em sua bunda uma anotação musical.

Vamos ver quem foi esse pintor que há 600 anos apresentava uma pintura tão intrigante.

Seu nome verdadeiro era Jeroen Anthonissen van Aeken e nasceu em 1450 na Holanda, num lugar chamado Hertogenbosch, numa família modesta, cujo pai e avô foram também pintores. Quase todos os membros de sua família foram pintores, incluindo seu irmão mais velho Goessen. Por isso acredita-se que ele tenha recebido sua formação no próprio estúdio do pai ou do avô.


"Julgamento", 1476-1516
Mas Bosch se casou com uma moça da rica aristocracia em 1478, e por causa disso foi aceito como “membro notável” da Confraria de Nossa Senhora, uma sociedade religiosa fundada em 1318, que era dedicada ao culto da Virgem Maria. Bosch vivia então uma vida tranquila, entre sua casa, seu ateliê e a Confraria. Logo seu nome passou a ser conhecido longe de sua terra natal.

Desde 1490 ele passou a assinar seus quadros como “Hieronymus Bosch”, sendo que o “Bosch” seria uma referência à sua terra de nascimento, Hertogenbosch.

A partir de suas leituras da Bíblia e dentro da atmosfera de misticismo que reinava em toda a Idade Média, Bosch abandonou a iconografia tradicional desde o começo de sua pintura para buscar representar coisas que seriam “sacrílegas” e pecaminosas. A danação infernal era um tema de grande inspiração para ele. Mas tudo se misturava, céus e infernos, e ele também não deixou de satirizar a moral da época. Bosch parecia se preocupar com a ideia da condenação eterna para a humanidade que vivia em pecado. Além do “Jardim das Delícias”, onde ele pintou o inferno, fez também o “Os sete pecados capitais” entre 1475-1480.


"Dois monstros", desenho feito por Bosch
com pena e tinta marrona sobre papel
No começo do século XVI, Hieronymus Bosch fez uma viagem à cidade italiana de Veneza, que lhe influencia no sentido de passar a pintar quadros com mais espaços e paisagens, que ele inseriu em suas telas representando a vida de santos. Por volta de 1510 havia surgido uma nova forma de pintar figuras nos quadros: aquelas que apareciam com somente a metade dos corpos, inclusive em primeiro plano.

O estilo de Bosch é basicamente caracterizado por apresentar personagens caricaturizados e figuras que pertenciam ao repertório imaginativo da Idade Média. Seu estilo foi imitado depois por vários artistas, incluindo Pieter Brueghel, o Velho, além de ter influenciado até mesmo a pintura expressionista do começo do século XX, assim como os surrealistas.

Por outro lado, pintores alemães como Martin Schongauer, Matthias Grünewald e Albrecht Dürer influenciaram a obra de Bosch.

Além de sua religiosidade voltada ao culto de Maria, especula-se também que ele teria participado de seitas que se dedicavam à prática do ocultismo. Mas não se tem prova disso porque pouco se conhece sobre sua vida. Mas em alguns de seus quadros se encontram símbolos ligados à alquimia, assim como cenas que parecem ter sido retiradas de seus sonhos ou pesadelos. Vale lembrar também que o ano de 1500 representava para as pessoas do século XV o ano do fim do mundo, quando a besta do Apocalipse seria solta sobre a terra e Deus iria julgar os bons e os maus, enviando estes últimos para queimar eternamente nas chamas do inferno.

O Museu do Prado possui a maior coleção das pinturas de Bosch, pelo fato do rei Filipe II da Espanha ter sido um ávido admirador e colecionador de obras do pintor holandês. Isso é muito curioso, pois parece combinar muito com a cultura e o espírito espanhol que gerou um Miguel de Cervantes e artistas como Francisco Goya, El Greco e mesmo Salvador Dali. No Prado podem ser encontradas obras como “O carro de feno”, “O jardim das Delícias”, “Os sete pecados capitais”. Em nosso Masp - Museu de Arte de São Paulo - podemos ver um suposto estudo seu para o quadro “As tentações de Santo Antão”, cujo original se encontra em Lisboa, no Museu Nacional de Arte Antiga. Na Espanha, Bosch é também conhecido como “El Bosco”.

Bosch entrou para a história como “criador de demônios” e pintor satírico. Mas sua importância é particularmente importante por ter inovado a pintura de seu tempo, criando novas composições.

Hieronymus Bosch morreu em agosto de 1516.


"As tentações de Santo Antão", Bosch, óleo sobre madeira, entre 1495-1515


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Ouça a música "copiada" por Amelia Hamrick:


sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Neoconservadorismo: há algo no ar além dos aviões de carreira...

Quadro de William Blake, no qual
Urizen reza diante do mundo que
ele mesmo criou
Diria o Barão de Itararé a respeito de uma intuição de que algo muito estranho está acontecendo, de forma um tanto velada ainda, mas que se escancara as poucos.

Na quarta-feira, dia 12 de setembro, Jorge Coli, professor titular de História da Arte e História da Cultura do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, fazia uma palestra dentro do ciclo “O futuro não é mais o que era”, organizado pelo filósofo Adauto Novaes, quando soube que a transmissão pela internet ao vivo tinha sido cortada. A Academia Brasileira de Letras (ABL), responsável pela transmissão, censurou a conferência quando o professor Coli apresentou a imagem de uma pintura do francês Gustave Courbet “A Origem do Mundo” (abaixo).

O tema da palestra era “O sexo não é mais o que era”, que trazia à tona o contexto atual de ascensão do conservadorismo e moralismo e como o erotismo, a sexualidade e a pornografia se localizam nestes tempos atuais. Ao apresentar o quadro de Courbet e dizer a palavra “buceta”, a transmissão foi sumariamente interrompida, por ordens da diretoria da ABL, responsável pela transmissão da palestra.

No site do ciclo "Mutações", o professor Coli publicou esta nota:

“Ontem dei uma conferência na Academia Brasileira de Letras, intitulada: Sexo não é mais o que era. Tratava-se de uma análise reflexiva sobre as noções de pornografia, erotismo e sexualidade dentro das artes. Ela sublinhava o caráter conservador do moralismo atual e criticava os puritanismos repressivos que oprimem o imaginário, e não apenas ele. A conferência deveria ter sido transmitida via internet. Soube hoje que ela foi censurada, e que essa censura teria vindo por ‘ordem da diretoria’. De início, as imagens que a ilustravam foram suprimidas da transmissão (eu começava com duas obras de Jeff Koons). E, quando citei o trecho de um autor que continha algumas palavras indelicadas (crítica de Philippe Murray ao quadro de Courbet, a Origem do mundo, publicada em 1991 na revista Art Press), a palestra foi interrompida. Ou seja, a ABL ilustrou, de modo preciso, o acerto de minha tese sobre a hipocrisia pudibunda (termo no qual certamente ela ainda censurará as duas últimas sílabas) de nosso tempo. Não apenas os acadêmicos são imortais: eles também não têm sexo, como os anjos.”

"A Origem do Mundo",
pintura de Gustave Courbet,
óleo sobre tela, 1866, 46x55cm,
Museu d'Orsay, Paris.
A conferência acabou recebendo uma ilustração concreta do conservadorismo e do moralismo atual: foi censurada pela Academia Brasileira de Letras, uma entidade que, em tese, deveria ser, como a Universidade, um local de reflexão, de estudo, de pesquisa sobre a contemporaneidade em todos os seus aspectos. Mas falou mais alto o falso moralismo, o conservadorismo gritante, incapaz de ouvir palavras ligadas ao sexo e incapaz de ver uma imagem do sexo feminino, pintada por um artista realista, sem incomodar-se com seus próprios recalques e puritanismos.

Vivemos tempos complicados, com muitas coisas no ar, além de aviões e helicópteros... Cabe perguntar o que há de mal em falar de sexo numa sociedade que vende dezenas de revistas de sacanagem em qualquer banca de jornal? Uma sociedade que produz vídeos pornográficos disponíveis a qualquer um em inúmeros sítios da internet? Uma sociedade que oprime o imaginário e o simbolismo que nos enriquecem como seres humanos, merece, sim, cada vez mais repúdio e denúncia, por seu puritanismo repressor, seu conservadorismo direitista, seu moralismo intimidador.

Conservadorismo em ascensão

O medo começou com Regina Duarte e se
espalhou 
pela classe média:
medo do julgamento eterno?

(Quadro"O ancião dos dias", de William Blake)
Neste mesmo período em que está acontecendo este ciclo “O futuro não é mais como era”, acontece também, em São Paulo, um outro ciclo cujo tema é “A ascensão conservadora em São Paulo”, organizado por estudantes do movimento “Em defesa da Educação Pública”.

E esses dois eventos que estudam a sociedade brasileira atual, têm muito em comum.

A filósofa da USP Marilena Chauí foi uma das convidadas para o primeiro seminário, que aconteceu no final de agosto. Em sua palestra, ela chamou a atenção para o caráter ainda autoritário da sociedade brasileira, que transforma todas as diferenças sociais em desigualdades, de uma forma que as desigualdades são tratadas como se naturais fossem. “Ela opera com a discriminação e o preconceito de classe, religioso, sexual, profissional e racial”, diz a professora.

A sociedade brasileira - continua Marilena Chaui em sua palestra - é “extremamente violenta. Mas tem a tendência a situar a violência apenas na região da criminalidade”. Mas essa violência está presente em todos os tipos de violência física e psíquica que uma pessoa é capaz de cometer contra a natureza de uma outra pessoa, explica a professora. Em nossa sociedade, o grau máximo da violência - continua ela - é quando uma pessoa não reconhece a humanidade do outro. Uma sociedade que enxerga as pessoas de profissões mais humildes - por exemplo, empregadas domésticas, porteiros, funcionários de padaria, faxineiros, pedreiros - como se fossem “coisa”, como seres irracionais, subalternos e que devem permanecer mudos, inertes e passivos.

Individualismo atual, reforçado pelas ideias
conservadoras e neoliberais, aprisionam os
indivíduos e causam inércia e paralisação
(quadro de William Blake)
“Essa sociedade assim estruturada, na hora em que recebe o impulso neoliberal, isso funciona para ela como a mão e a luva, como a sopa no mel”, continua Chaui, que explica: “Porque uma das características mais importantes do neoliberalismo é que ele opera pelo encolhimento do espaço público e pelo alargamento do espaço privado. Seja o espaço privado do mercado, seja o espaço da vida privada”.

E ela disse que a ideologia da classe média hoje é a ideologia da ética, como se ética se resumisse a um conjunto de regras para o bom funcionamento de uma empresa. “A sociedade paulistana pensa que ética é isso: um conjunto de normas e preceitos que lhes dá o controle cotidiano de todos os comportamentos”. Mas Ética não é isso, diz a filósofa. Ética é “o exercício da consciência, da liberdade e da responsabilidade”. Com esse tipo de visão, está havendo uma deterioração do sentido da ética, do sentido da vida social e das relações interpessoais.

Por isso, esse tipo de sociedade não está interessada no Saber e no Conhecimento. “O que ela quer é um diploma”, complementa Marilena Chaui. Saber e Conhecimento trazem mudanças estruturais nos comportamentos sociais, mas isso seria uma ameaça a uma classe média cujo imperativos fundamentais, cujo núcleos ideológicos são a Ordem e a Segurança.

Neste mesmo sentido, foi a palestra do professor André Singer, cientista político da USP.

Ele lembrou que a grande onda neoliberal iniciada no final dos anos 1970, foi gerando esse sentido conservador “porque está a serviço daquilo que o capitalismo tem de mais destrutivo: a mercantilização de todas as áreas da vida, o individualismo feroz, a concepção de que os problemas sociais se resolvem pela iniciativa privada”. E no Brasil observa Paul Singer, essa onda neoliberal teve reflexos contraditórios.

Ele faz um histórico da influência das ideias da esquerda aqui no Brasil que, segundo sua visão, predominava fundamentalmente em vários setores da cultura, e que teria se prolongado até os anos 1990. “A gente está vivendo ainda agora as ondas de choque do neoliberalismo” de ideias de direita que tem uma certa repercussão de massas: “na classe media fundamentalmente”.

A Nau dos Insensatos, de Jerônimo Bosch
Podemos ver isso como parte do pensamento de tipo neoliberal, individualizante, mercantilizante, privatizante que traz repercussões em setores de massa da sociedade. “O pensamento de direita ainda está se estruturando, mas os sinais são muito claros: colunistas, autores, pessoas que tem um público e que defendem esses pontos de vista, com repercussão, coisa que não havia até pelo menos até os anos 1990”, diz Singer.

E ele aponta um reflexo dessa onda neoliberal no fenômeno religioso, que sofreu uma intensa mudanças na história mais recente do Brasil: “da igreja católica - lembra ele - que era muito progressista” e com isso influenciava amplas camadas da população, incluindo a classe média, “à entrada do evangelismo”. Ele observa que a igreja católica mudou muito com a eleição do papa João Paulo II e Bento XVI, mudando de lado, “influenciando vários setores”. Mas as igrejas evangélicas - acrescenta - se “casam muito com  pensamento neoliberal, com o discurso da ascensão individual, da redução dos espaços públicos, isso sem falar em aspectos morais”.

Essa “onda conservadora ainda está em curso no Brasil”, aponta Paul Singer. Segundo ele, a melhoria nas condições de vida do povo, os 35 milhões de brasileiros que ascenderam socialmente, tem despertado na classe média um “ódio ao governo”. E a classe média, diz ainda André Singer, “se vira contra as ideias de esquerda que tinha na época da ditadura, quando se colocou do lado dos movimentos de resistência.” Mas agora está havendo uma “intensa polarização na sociedade brasileira como não se via desde 1964”, o que ele chama da “onda de médio prazo”. Quando aconteceu a famosa Marcha da Família organizada pela classe média paulistana em 1964, estava havendo uma intensa mobilização dos trabalhadores. 

Atualmente, diz ele, estamos vivendo um momento semelhante, do ponto de vista ideológico, àquele de 1964: a classe média destila seu ódio a um governo que promoveu a ascensão social de 35 milhões de trabalhadores. E mesmo uma parcela desses 35 milhões se juntou ao pensamento da classe média, auxiliada pelas igrejas evangélicas, que lhes convencem de que sua ascensão, sua prosperidade se devem a esforço pessoal. E se juntam contra aqueles que ainda são pobres e recebem os benefícios dos programas sociais do governo, como o bolsa-família. Mas André Singer diz que isso é uma onda de curto prazo.

No cômputo geral vivemos em um período de ascensão do conservadorismo, que traz consigo toda uma carga moralista, controladora, repressora, manipuladora da opinião pública. Para isso, o papel dos meios de comunicação de massa é fundamental. Na televisão imperam canais abertos e pagos com programas de igrejas evangélicas disseminando ideias de individualismo neoliberal. O monopólio midiático resumido a poucos órgãos de imprensa - Rede Globo, Estadão, Folha, Editora Abril - promove uma verdadeira militância política de direita, buscando influenciar toda a sociedade com as ideias que ainda são de um Neoliberalismo retardatário, com a defesa das privatizações de toda a ordem, do consumismo, da indústria cultural, da mercantilização das artes, do incentivo à despolitização social e individual, dos ataques aos serviços públicos.

Dentro desse contexto, a censura à palestra de Jorge Coli mostra uma sociedade incapaz de refletir sobre si mesma. Uma sociedade com medo. Com medo do quadro de Courbet. Com medo da politização das pessoas. Com medo da perda de controle sobre o cotidiano dos indivíduos. Com medo do futuro.

Ou - como escreveu a filósofa Marilena Chaui no capítulo “Sobre o Medo” do livro “Os Sentidos da Paixão” - MEDO do “alto celestial que nos vigia”, do “baixo infernal que nos vigia”.

Os monstros que a sociedade cria se voltam contra ela e contra os indivíduos
(Gravura "O sonho da razão produz monstros" de Francisco Goya)