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quinta-feira, 13 de julho de 2017

Os Itinerantes

Tempo de colheita, Grigoriy Myasoyedov, óleo sobre tela, 1887
Em 1863, um grupo de quatorze alunos decidiu deixar a Academia Imperial de Belas-Artes de São Petersburgo. Eles consideravam as regras da Academia restritivas e os professores conservadores. Também não concordavam com a separação rigorosa entre alunos com mais talento e os com menos, nem com a competição que era muito incentivada pela direção e professores. Eles defendiam que a arte deveria ser levada ao povo e deveria refletir a sociedade russa e não os padrões acadêmicos de então.

Retrato de Fyodor Dostoyevsky,
Vasily Perov, óleo sobre tela, 1872
Esses princípios da Academia ainda se regiam pelas convenções do academismo neoclássico, em grande parte inspirado pela arte italiana, assim como pela academia francesa. Para a Academia de São Petersburgo, além disso, a "grande pintura" era a histórica, gênero mais prestigiado, com temas geralmente retirados da Bíblia, da mitologia greco-romana e dos grandes eventos da história antiga. Somente se mantendo dentro destes limites é que os alunos podiam concorrer à medalha de ouro na competição anual, que dava direito a uma bolsa de estudos no exterior. Outros temas, como a paisagem e natureza-morta eram considerados menores e impróprios para o artista educado lá.

Por exemplo, dois artistas - Mikhail Shibanov e Nikolai Argunov - já haviam tentado pintar outras temáticas, como cenas com camponeses e as vilas do interior, mas encontraram a oposição de professores e da direção da Academia. Em 1840 outro artista, Pavel Fedotov, realizou estudos satíricos sobre a vida burguesa, obtendo mais sucesso que seus colegas e obrigando a Academia a fazer algumas concessões. Algumas obras nesse gênero foram premiadas, o que incentivou outros alunos a se dedicar a uma pintura do cotidiano, mas com avanços mínimos.

Mas em 1861, Vladimir Stasov levantou sua voz em defesa de mais liberdade na Academia. Ele era um influente crítico de arte e não apenas apoiou as inovações que começaram a surgir como criticou diretamente o conservadorismo dos acadêmicos. Também passou a defender que a pintura se voltasse para a realidade nacional e para temas populares.

Pintura de Ivan Kramskoi
Em 1863, veio a gota d’água que faltava para o rompimento definitivo com a Academia. Treze artistas foram selecionados para concorrer à medalha de ouro, conforme as regras do concurso. Anualmente, os jurados sempre determinavam qual seria o tema sobre o qual os artistas deveriam trabalhar. Naquele ano, diferentemente dos anteriores, os jurados resolveram deixar flexível a escolha do tema por parte dos estudantes, mas que levassem em conta seus próprios sentimentos. Vendo que os jurados alargavam seus critérios, os treze artistas solicitaram que fosse dada liberdade completa de escolha do tema. Pedido rejeitado, os jurados resolveram reagir de forma contrária e voltaram às regras antigas do concurso, com tema único, como sempre acontecera. O assunto escolhido foi: "A festa de Odin no Valhala". Revoltados, os pintores, liderados por Ivan Kramskoi, abandonaram a competição e a Academia, formando a Associação dos Artistas Livres.

Mas eles não estavam apenas se insubordinando. Sua rebeldia era também reflexo de suas convicções de que o artista deveria poder escolher seus assuntos de acordo com suas preferências e sua visão de mundo, sem ter de prestar contas disso a instâncias superiores.

Em 1870, esta organização - já ampliada com a presença de outros artistas - foi denominada “Sociedade de Exposições Itinerantes de Obras de Artistas Russos” (Peredvizhniki) - ou simplesmente “Os Itinerantes”. Eles queriam dar às pessoas das províncias a chance de seguir de perto as conquistas da arte russa e ensinar as pessoas a apreciar a arte. A sociedade manteve-se independente de apoio oficial, mas recebeu incentivos da parte de industriais, como Pavel Tretyakov, um grande colecionador de obras de arte, que incentivou exposições dos trabalhos desses artistas e deu-lhes importante suporte material.

Os objetivos do grupo eram: educar o povo possibilitando que entrasse em contato com a nova arte russa, formar um novo gosto e conceito de arte, e formar um novo mercado para essa arte nova.

É bom lembrar que, em Paris, Gustave Courbet se revoltou contra a Academia Francesa e inaugurou sua exposição individual intitulada "Realismo"; que Anders Zorn, pintor realista sueco, já causava admiração por onde passava; que Mariano Fortuny, na Espanha, já implementava os conceitos realistas em sua pintura; que Giovanni Boldini, na Itália, se juntara aos Macchiaioli e era um dos líderes deste grupo; que Adolph Menzel também rompera com as regras da academia alemã e se voltava ao realismo; que John Singer Sargent, um dos maiores gênios realistas do século XIX, já encantava e intrigava a todos com sua grande qualidade técnica... Que o Realismo abria espaços amplos para as vanguardas europeias do século XX... E que exercia grande influência sobre os artistas russos, em especial Courbet, Zorn e Fortuny...

As lavadeiras, Abram Archipow,
óleo sobre tela,1901
A primeira exposição pública de "Os Itinerantes" aconteceu em 1871 na própria Academia, com grande repercussão. Foi bem recebida até mesmo por críticos contrários, como Mikhail Saltykov-Shchedrin, sensibilizado com a ideia de que esta mostra deveria não só ser apresentada em São Petersburgo e Moscou mas também deveria percorrer outras cidades do interior. Foi a primeira vez que uma exposição de arte pode ser vista por um público mais amplo, pois até então a maioria das pessoas somente conheciam as novidades da pintura vendo reproduções em jornais, catálogos e gravuras. Esta exposição também foi um sucesso comercial; a própria família imperial adquiriu muitas obras. O colecionador Pavel Tretyakov, que já apoiava o grupo, adquiriu muitas obras.

“Os Itinerantes” foram influenciados pelas ideias de intelectuais como Vissarion Belinsky e Nikolai Chernyshevsky, críticos literários que defendiam idéias liberais. Belinsky dizia que a literatura e a arte deveriam ter responsabilidade social e moral. Como a maioria dos eslavófilos - movimento que defendia a tradição e a cultura russa - Chernyshevsky apoiou ardentemente a emancipação dos servos realizada em 1861. Na época, haviam 20 milhões de pessoas vivendo como servos. Para ele, a servidão, a censura da imprensa e a pena de morte eram influências ocidentais. Ele mesmo tinha sido censurado em seus escritos, por causa de seu ativismo político. Chernyshevsky era considerado um socialista utópico. Escreveu bastante sobre o papel da arte, o que influenciou os artistas Itinerantes.

“Os Itinerantes” retrataram aspectos multifacetados da vida social, muitas vezes criticando as injustiças. Pintavam  não apenas os temas da pobreza, mas também a beleza do estilo de vida do povo; não só seu sofrimento, mas também a força de seus personagens. “Os Itinerantes” condenavam o poder aristocrático e o governo autocrático em sua arte humanista. Retrataram os movimentos de emancipação, a vida social-urbana e, mais tarde, usaram a arte histórica para retratar as pessoas comuns. Tiveram seu apogeu entre 1870 e 1880.

Em seu período de formação (1870-1890), “Os Itinerantes” desenvolveram um ponto de vista amplo para suas pinturas, com imagens realistas, mais naturais. Em contraste com a paleta escura tradicional de seus tempos de estudante da Academia, escolheram uma paleta mais leve, com uma maneira mais livre em sua técnica. “Os Itinerantes” eram a sociedade que unia os artistas mais talentosos do país, que incluía artistas da Ucrânia, Letônia e Armênia.

Numa rua de Moscou, Vasily Polenov,
óleo sobre tela, 1878
Entre os temas de “Os Itinerantes”, estava a pintura de paisagem, que floresceu nos anos 1870 e 1880. “Os Itinerantes” pintavam paisagens próximas; alguns entre eles, como Polenov, usava a técnica de plein-air (pintura ao ar livre). Dois pintores, Ivan Shishkin e Isaak Levitan, pintaram apenas paisagens da Rússia. Shishkin - outro paisagista - é considerado o "cantor da floresta" russa, mas as paisagens de Isaac Levitan são mais famosas e expressam seus intensos sentimentos de artista. Os pintores paisagistas russos desejavam explorar a beleza de seu próprio país e incentivar as pessoas comuns a amar e a preservar seus lugares. Levitan disse uma vez: "Só imagino tal graça em nossa terra russa, esses rios transbordantes que trazem tudo de volta à vida. Não há um país mais bonito do que a Rússia! Só pode haver paisagistas na Rússia". “Os Itinerantes” deram este caráter nacional para as paisagens, inclusive permitindo que pessoas de outras nações pudessem conhecer como era a paisagem russa. Estas paisagens são a concretização simbólica da nacionalidade russa. Após “Os Itinerantes”, a paisagem russa ganhou importância como uma espécie de ícone nacional.

Ao longo dos anos, a quantidade de pessoas que viam as exposições de “Os Itinerantes” cresceu muito na população do interior da Rússia. Mas não só, pois elas atraíram também a atenção dos mais acostumados a frequentar exposições, assim como da elite urbana. Fotógrafos criaram as primeiras reproduções das pinturas de “Os Itinerantes”, ajudando a popularizar as obras, que poderiam ser compradas. Revistas, como a Niva, também publicavam artigos ilustrados sobre as exposições.

A origem de seus membros era variada; alguns eram camponeses, outros da burguesia urbana, e havia até nobres, mas todos se moviam com o objetivo comum de mostrar a vida em seu país. Associavam assim um estilo basicamente realista, de qual foram os principais divulgadores, com uma base ideológica de fortes traços românticos, idealistas e nacionalistas.

Velho camponês, Vasily Perov,
óleo sobre tela, 1870
Encaravam seu trabalho como uma missão sagrada. Vladimir Stasov, um dos mais ardentes incentivadores do grupo, disse que "os artistas que desejavam se unir para reformar sua sociedade não o estavam fazendo com o propósito de criar belas pinturas e estátuas com a finalidade única de ganhar dinheiro. Estavam tentando criar um alimento para as mentes e os sentimentos do povo".

Com o sucesso do grupo, que em pouco tempo aglutinou a maioria dos melhores talentos da pintura russa de sua época, a academia já não podia mais ignorá-los, e não só sua influência estética se fez sentir no meio acadêmico, mas também diversos deles foram contratados como professores, como Ilya Repin.

Muitos deles haviam ingressado no grupo porque acreditavam que a arte precisava alcançar um público mais vasto, e que deveria servir como uma força para o avanço social e o combate às injustiças e preconceitos. Mas quando seus ideais foram abraçados pela academia, começou a perder a vitalidade contestadora dos primeiros anos e as pesquisas mais arrojadas começaram a ser banidas pelo próprio grupo, que fora, em sua origem, uma vanguarda rejeitada pela oficialidade. O ciclo se repetia. Então diversos membros deixaram o grupo para prosseguir de forma individual, com mais liberdade. Com o passar dos anos, a arte dos Itinerantes já não espelhava os novos tempos e as mudanças na sociedade, e seu realismo de cunho social foi suplantado pelo decorativismo art nouveau do grupo Mundo da Arte e pelas vanguardas abstratas do modernismo.

Mesmo assim sua proposta original voltou a ser prestigiada quando o governo revolucionário assumiu o poder e estabeleceu as diretrizes para a formação do Realismo Socialista, do qual os Itinerantes foram um precursor, e onde diversos de seus representantes encontraram espaço para continuar em atividade. O Realismo Socialista resgatou as ideias iniciais de “Os Itinerantes”, quando estes artistas estavam convencidos de seu papel social como artistas em um país onde tudo estava em processo de transformação. Da arte à política.

“Os Itinerantes”, ao longo dos anos, produziram mais de 3.500 pinturas que foram vistas por mais de um milhão de pessoas em um grande número de cidades. O grupo durou até 1923, quando muitos de seus membros passaram a integrar a Associação de Artistas da Rússia Revolucionária (AKhRR, sigla em russo).

Abaixo, algumas das obras representativas de "Os Itinerantes":

Os rebocadores do Volga, Ilya Repin, óleo sobre tela, 1870-73

Procissão religiosa na província de Kursk, Ilya Repin, óleo sobre tela, 1880–83

Resposta dos cossacos de Zaporozhian, Ilya Repin, óleo sobre tela, 1880-91
Vigília, Arkhip Kuindzhi, óleo sobre tela, 1905-1908
Sessão do Tsar Michael I com a Duma Boyarda, Andrei Ryabushkin, óleo sobre tela, 1893
Procissão de Páscoa, Illarion Pryanishnikov, óleo sobre tela, 1893
Campo de centeio, Ivan Shishkin, óleo sobre tela, 1878
Chuva na floresta, Ivan Shishkin, 1891
Sonhos, Vasily Polenov, óleo sobre tela, 1895
Retrato de Isaac Levitan, Valentin Serov, óleo sobre tela, 1893
Ponte na floresta, Rafail Levitsky, óleo sobre tela, 1895-96
Pobres recolhendo carvão, Nikolay Kasatkin, óleo sobre tela, 1894
Retrato de Vladimir Solovyov, Nikolai Yaroshenko, óleo sobre tela, 1892
Os cegos, Nikolai Yaroshenko, óleo sobre tela, 1879
Consertando a estrada, Konstantin Savitsky, óleo sobre tela, 1874
Cristo no deserto, Ivan Kramskoi, óleo sobre tela, 1872
Retrato de uma desconhecida, Ivan Kramskoi, óleo sobre tela, 1883

terça-feira, 11 de julho de 2017

Colóquio na UnB sobre Realismo nas artes


O professor Alexandre Pilati (UnB), o ator Sergio Audi,
o escritor Jeosafá Fernandes e eu, Mazé Leite, na Mesa do dia 6 pela manhã
Com uma grata surpresa e me sentindo muito honrada, fui convidada a participar como palestrante do IV COLÓQUIO INTERNACIONAL “O REALISMO E SUA ATUALIDADE: ARTE, CULTURA E O CENTENÁRIO DA REVOLUÇÃO DE OUTUBRO”. O evento aconteceu na Universidade de Brasília nos dias 5, 6 e 7 de julho. 

Este evento ocorre anualmente há quatro anos e reune intelectuais acadêmicos de universidades como a USP, Unesp, Unicamp, UFRJ, UFF, UFG, UFRGS, UnB, entre outras, incluindo a Universidade de Buenos Aires, Argentina. São professores e alunos de graduação e pós-graduação da UnB os organizadores deste importante Colóquio, como os professores doutores Alexandre Pilati, Ana Aguiar Cotrim, Ana Laura dos Reis Correa e Ignacio Koval.

Em breve publicarei aqui o texto integral da minha palestra, intitulada “Realismo e Vanguarda”. Mas aqui vai um breve resumo: 

A pintura Realista do final do século XIX, cujo movimento principal foi o grupo Os Itinerantes, inspirou os movimentos de Vanguarda do início do século XX na Rússia. Era parte de um movimento mais amplo de mudanças que ocorriam naquele país, inclusive no campo da cultura. Era o questionamento dos métodos e pensamento da Academia de São Petersburgo e era um voltar-se mais para dentro de seu país. Os artistas da vanguarda russa que participaram ativamente do processo revolucionário de 1917, por seu turno, também questionavam os métodos clássicos de pintura, inventando novos meios, novas formas de se expressar. Os russos criaram a Arte Abstrata, o Suprematismo e o Construtivismo, além de muitos outros movimentos de estética artística. Inovaram o design gráfico e a arte de propaganda política que influenciou todo o globo. 

Em 1934 a arte passa a ser submetida ao controle estatal, por ocasião do I Congresso dos Escritores Soviéticos, quando Maximo Gorki e Andrei Zdanov anunciaram, a uma plateia internacional, o início oficial da vigência do Realismo Socialista como estética para as artes: a arte deveria ser, a partir de então, “socialista em seu conteúdo e realista em sua forma”. No que diz respeito às artes plásticas, este período da pintura russa era muito mais “idealista” do que realista. Mas deu muito o que pensar a artistas, críticos e intelectuais desde então.

Desenvolvi meu pensamento nesta linha, que irei publicar em breve na revista “Princípios”, da Fundação Maurício Grabois e os organizadores do Colóquio da UnB também irão publicar em livro todas as palestras do evento, que deverá ser lançado no começo de 2018.

Da minha parte, continuo minha pesquisa sobre a arte russa de todos os períodos, que continuarei publicando neste Blog, em especial neste ano de 2017 quando comemoramos uma efeméride: os 100 anos da Revolução de 1917 que mudou a face do mundo.

terça-feira, 25 de abril de 2017

Vassily Surikov, pintor da história russa

Dando prosseguimento aos textos sobre a arte e a cultura russas, nos próximos posts apresentaremos quatro pintores: Vassily Surikov, Mikhail Vrubel, Valentin Serov e Isaac Levitan que, junto com Ilya Repin (LEIA AQUI), foram grandes precursores dos movimentos estéticos do século XX na Rússia.

"A tomada da torre de gelo", Surikov, óleo sobre tela, 282 x 156 cm, 1891
"Uma pintura é um poema sem palavras."
(Horácio)

Vasily Ivanovich Surikov é considerado o maior pintor histórico da Rússia. Ele executou desde telas históricas a centenas de retratos, estudos e esboços. Mas era principalmente um mestre nas composições monumentais. No final do século XIX, os movimentos em prol da Rússia e de sua cultura, levaram os pintores a executar telas em grande formato, que retratassem grandes eventos e grandes personagens de sua história.

Autorretrato, Surikov, 1887
Surikov nasceu em Krasnoyarsk, na Sibéria, em 24 de janeiro de 1848. De uma família cossaca (kazak em russo, que significa "homem livre, aventureiro" era um povo que vivia nas estepes russas), seus antepassados participaram de levantes na Sibéria e no rio Don, ao sul da Rússia. Ele tinha muito orgulho desta origem. Escreveu: "Eu sou completamente cossaco e com um pedigree que vem de mais de duzentos anos!" Seu pai era um apaixonado por música, tocava guitarra com excelência e era considerado o melhor cantor amador na cidade. Sua mãe tinha refinado gosto artístico também. Portanto, ele cresceu em um meio muito favorável para a arte, e desde muito cedo começou a desenhar.

Seu professor de desenho na escola do distrito de Krasnoyarsk, Grebnev, foi seu primeiro grande incentivador e apoiou seu desejo de se tornar pintor. Com a morte de seu pai em 1859, Surikov precisou trabalhar como funcionário de um escritório, para sustentar sua família. Mas seus desenhos atraíram a atenção do governador de Krasnoyarsk, que enviou sua indicação para o conselho da Academia de Artes de São Petersburgo. A resposta foi positiva, mas ele não receberia uma bolsa de estudos. Um rico dono de uma mina de ouro em Kuznetsov, amante de arte e colecionador, ofereceu-se para pagar por seus estudos e manutenção.

Em dezembro de 1868, Surikov partiu em uma longa viagem a cavalo para a capital, acompanhando um carregamento de mercadorias. Na capital russa ficou estupefato: “Chegando a Moscou, aquele centro da vida nacional, eu imediatamente entendi o meu caminho”, escreveria ele mais tarde.

Já como estudante da Academia, Surikov não se importava muito com a vida noturna da cidade e se concentrou firmemente em aprender pintura, trabalhando dia e noite para dominar essa profissão muito desafiadora, em especial a pintura histórica. Em 1870 já estava trabalhando em sua primeira pintura autoral: “Vista do monumento a Pedro, o Grande na Praça do Senado em São Petersburgo”

Surikov fez grandes progressos na Academia, extraindo o máximo benefício de suas aulas. Ele era especialmente talentoso com a composição de seus quadros, tanto que passou a ser chamado de "compositor" por seus colegas. Em suas composições, o expectador se sentia como parte de suas imensas telas históricas.

"Suvorov cruzando os Alpes",
Surikov, óleo sobre tela,
1899, 373 x 495 cm
Vassily Surikov foi aluno de Pavel Chistyakov, que treinou muitos mestres da arte russa. Com ele, Surikov executou uma série de composições sobre temas clássicos e também uma representação do início da história da Rússia “O julgamento de um príncipe” (1874). Em abril de 1875, participou da competição por uma medalha de ouro com o quadro “O Apóstolo Paulo expondo o dogma do cristianismo a Herodes, Agripa, sua irmã Berenice e o procônsul romano Festo.” Em termos de composição, a pintura segue os cânones acadêmicos, mas já se via o interesse do artista pela psicologia de seus personagens. Mas ele não ganhou a medalha.

Graduando-se com honras em 1875, Surikov recebeu o prêmio de uma viagem de dois anos ao exterior, pago pelo Estado. Ele recusou, pedindo em troca uma autorização para pintar os murais para a catedral de Cristo Salvador em Moscou. Esta encomenda lhe rendeu muito dinheiro e foi a única que recebeu ao longo da vida.

Em 1877, Surikov estabeleceu-se em Moscou. Em 1878, se casou com Elizaveta Share. Sua tranquila vida familiar e a relativa segurança material lhe permitiram pintar cenas da história russa. Produziu algumas obras-primas como “A Manhã da execução do Streltsty”, “Menshikov em Beryozovo” e “A boiarda Morozova”.

Retrato de Surikov,
por Ilya Repin
Vassily Surikov foi o primeiro de 'Os Itinerantes' a combinar os ideais nacionais com o desejo de expressar esses ideais. Para ele, a maior representação da beleza podia ser encontrada na Sibéria, com toda a sua severidade, com seus costumes às vezes cruéis, com seu povo corajoso e sua velha Rússia.

A obra-prima de Surikov, como é largamente considerada, “A boiarda Morozova”, está ambientada nas ruas da Moscou medieval. É uma pintura enorme - tanto em tamanho quanto em escala, ela tem as características de um mural. A construção pictórica desse trabalho lembra alguns dos grandes pintores monumentais italianos cujas obras Surikov tanto admirava, como Michelangelo, Tintoretto, Ticiano e, mais ainda, Veronese. 

Com Surikov a paleta de cores peculiares da arte bizantina é igualmente reavivada - os ricos marrons, vermelhos escuros e amarelos claros são os mesmos que encontraremos novamente no trabalho de Natalia Goncharova, anos depois. “Um ritmo de superfície decorativo e uma horizontal vigorosa são outras características comuns à arte russa, tanto antiga quanto moderna, e igualmente recuperadas pela primeira vez no trabalho de Surikov”, diz a escritora Camilla Gray.

Sua tela "A manhã da execução do Streltsy" (1878-81) representa um dos períodos mais cruciais da história russa, no episódio da luta pelo trono entre Pedro o Grande e sua irmã Sophia, cujo resultado foi a derrota dela. "Não foi a execução dos opositores que eu queria transmitir, mas a solenidade dos últimos minutos", escreveu Surikov sobre a pintura, que logo foi comprada por Tretyakov.

Em 1888 o artista sofreu um grave choque: sua esposa morreu. Desesperado com a perda trágica da mulher que ele amava, Surikov parou de trabalhar. Seu bom amigo Mikhail Nesterov mais tarde se lembrou: "... depois de uma noite tortuosa, ele se levantava de madrugada e ia fazer uma oração matutina. Lá, no silêncio da velha igreja, orava por sua falecida esposa batendo a testa ardente contra o chão de pedras frias. Então, chovesse ou fizesse sol, ia direto para o cemitério de Vagankovo ​​chorando no túmulo de sua amada, chamando-a e orando desesperadamente... "

"Pugachev",
desenho de Surikov, 1911 
Atendendo ao conselho de sua família, Surikov e suas filhas foram para Krasnoyarsk, na Sibéria. Escreveu: "Na Sibéria o povo é diferente do resto da Rússia: livre, corajoso... As montanhas são verdadeiras jóias... (...) A Sibéria me deu a inspiração para meus personagens históricos, com aquele espírito e força. Eu não compreendo as ações históricas sem povo, sem multidão ".

A tela "A tomada da fortaleza de gelo" (1891), a obra mais alegre do artista, que ele fez após três pinturas históricas, o ajudou a superar a dor e a adversidade. Nela, vê-se seu profundo amor pela vida.

Surikov passou vários anos trabalhando em seu grande último trabalho, a tela "Stepan Razin" (1907-10). Stepan Razin foi um cossaco, líder de um grande levante contra a nobreza e a burocracia do czar no sul da Rússia. Esta pintura lhe causou alguns problemas com os governantes, que a consideraram uma provocação.

Seu último trabalho foi “Pugachev”, mostrado acima num estudo feito em 1911, que mostra o líder de uma revolta camponesa do século XVIII preso.

Surikov morreu em 19 de março de 1916 e foi enterrado ao lado de sua esposa no cemitério de Vagankovo, em Moscou.


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Referências bibliográficas:

- Gray, Camilla. O grande experimento. Arte russa. 1863-1922. São Paulo: Worldwhitewall Editora Ltda, 2004
- Site: russiapedia.rt.com
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"A manhã da execução de Streltsy", Surikov, 1881,
óleo sobre tela, 218 x 379 cm
"Stepan Razin", Surikov, óleo sobre tela, 1909-1910

"A boiarda Morozova", Surikov, óleo sobre tela, 1887, 587 x 304 cm
"A conquista da Sibéria por Yermak", Surikov, 1895, óleo sobre tela, 599 × 285 cm

"O cavaleiro de bronze", Surikov
"Vista do monumento a Pedro na Praça do Senado em S. Petersburgo", Surikov, óleo sobre tela, 1870

terça-feira, 26 de abril de 2016

Pintar de imaginação?

John Singer Sargent pintando uma de suas obras, com as modelos posando à sua frente
Há algum tempo atrás, dois amigos em dois momentos diferentes me fizeram a mesma pergunta: os artistas pintam seus quadros "de imaginação" ou eles usam modelos/referências?

Isto parece ser uma questão clara para os pintores, mas é uma espécie de "lenda urbana" para os que não o são. A "culpa" disso pertence aos pintores modernistas, estrangeiros e brasileiros, que começaram a "criar/inventar" seus próprios modelos.

A resposta é muito simples: - Não! Nenhum grande mestre pintou de "imaginação", em especial as figuras humanas de seus quadros. Um dos meus amigos se disse "decepcionado": - Não? perguntou-me para confirmar. - Não! reforcei eu.

Clotilde Sorolla, esposa de Joaquín Sorola,
serviu de modelo para diversas telas do marido
Mas é assim que são as coisas. Há inúmeras idealizações causadas por profundo desconhecimento da maioria das pessoas sobre as artes plásticas...

A não ser que o pintor siga uma linha mais modernista - de cubista a expressionista, abstrato ou conceitual, quando aí sim, o artista se vê "livre" para criar suas próprias figuras, como fez Picasso, por exemplo - os pintores figurativos, desde os primórdios da pintura na Idade Média, lá pelos séculos XIV-XV, vêm utilizando a Natureza como modelo para seus quadros. Ou seja, a Natureza (com N maiúsculo mesmo, porque mais ampla) vem sendo o modelo de todos os pintores figurativos que se baseiam naquilo que vêem em seu mundo, o real.

Durante muito tempo, na história da Arte, os temas principais que aparecem na pintura foram temas de cunho religioso, para os quais se usava e abusava da "imaginação"... O poder da igreja impunha que, para catequizar os homens e mulheres em sua maioria analfabetos, as imagens eram uma boa forma de ensinar as lições contidas na Bíblia, por serem de fácil compreensão a todos. Era preciso fazer propaganda de sua filosofia, de sua visão de mundo, de seus santos e regras de vida.

Os pintores têm sido usados para isto há muitos e muitos séculos. Muito antes mesmo da Idade Média, pintores eram contratados para criar cenas bíblicas, terrestres ou celestes, assim como dar uma "cara" a seus santos, anjos, profetas. Pode ser que na época alguns tivessem se inspirado em modelos reais (na Alta Idade Média), mas a maioria "criava" os rostos sagrados de Maria, de Jesus, dos santos e mesmo de Deus. Podemos ver, por exemplo, nos ícones da igreja ortodoxa russa, como havia um certo padrão para os rostos de santos e de figuras sagradas. Não precisavam se basear em pessoais reais. Aliás, não DEVIAM se inspirar em pessoas reais!

"A costureira", de Diego Velázquez,
para cuja pintura serviu de mod
elo,
sua própria esposa
Só que quando o ser humano foi colocado no centro das atenções, em especial no período que conhecemos como Renascimento, por exemplo, pintores como Leonardo da Vinci, Michelangelo, Ticiano, Rafael e tantos outros - só para ficar na Itália - começaram a se apaixonar pela anatomia do corpo humano e a pintar figuras humanas cada vez mais reais. Lembre-se, por exemplo, do grande Caravaggio que usava como modelos, para seus quadros de santos, pessoas bem concretas das ruelas e becos de Roma, seus amigos vagabundos e prostitutas...

Alguém pode conceber a "Gioconda" de Da Vinci como uma criação de sua imaginação? Claro que não! Da Vinci usava modelos bem concretos, de carne e osso, em seu ateliê. Aliás, ele tinha um modelo preferido, um de seus alunos. Assim como é impossível que alguém possa concluir que o grande "David" de Michelangelo tenha surgido de sua cabeça somente, sem que nenhum ser humano tenha posado para que ele pudesse tão bem esculpir a anatomia masculina em sua grande escultura!

Diego Velázquez usou como seus primeiros modelos de pintura sua própria família, pais e esposa. Depois que foi para a Corte do rei Felipe IV, além dos membros da família real, que pintou, Velázquez também retratou os trabalhadores que, como ele, serviam ao rei, desde bobos da Corte às damas de companhia...

Rembrandt e Vermeer, lá nos Países Baixos, pintavam suas figuras a partir de muitos e muitos estudos de observação com modelos bem vivos. A "Moça com brinco de pérola" foi pintada a partir de uma modelo bem real e feminina. Disse-se que era uma das empregadas de sua casa.

Meus amigos, a profissão de modelo que posa para artistas é tão antiga quanto a pintura figurativa!

Não tenho eu, pobre de mim, a menor capacidade de inventar uma outra maneira de pintar realisticamente o que vejo sem ver! Se nem mesmo os velhos mestres, os grandes pintores do mundo, pensaram que podiam ser capazes disso...! Os exemplos que eu poderia dar aqui fariam parte de uma lista enorme, além destes que citei acima.

Mas vamos lembrar de mais alguns:

Gustave Courbet, Renoir, Édouard Manet, Francisco Goya, John Singer Sargent, Jean Dominique Ingres, Van Gogh, Edgar Degas, Eugène Delacroix, El Greco, José Ribera, Zurbarán, Joaquin Sorolla, Rubens, William Turner, Frans Hals, William Bouguereau, Camille Corot, Hans Holbein, Paul Gauguin, Van Dyck, Francisco de Zurbarán, Ilya Repin, Rodin... a lista é imensa dos artistas figurativos e TODOS eles usavam a Natureza (o que inclui tudo o que pode ser visto e pintado, de animais a seres humanos) como modelo para suas obras.

Decepcionei mais alguém?

"Titus", filho de Rembrandt, que posou para ele
diversas vezes
Não seria conveniente raciocinar que se eu me considero uma pintora figurativa, de caráter mais realista, não seria uma incoerência eu me ligar a pintores mais modernos e que se desligaram da realidade para "inventar" minhas próprias figuras?

Por trás do uso de modelos bem concretos para que eu possa me expressar artisticamente, há toda uma linda filosofia de trabalho que diz, em resumo, o seguinte: a inesgotabilidade do Real é o que causa em mim a grande paixão de me expressar artisticamente ao observar modelos bem concretos (sejam humanos ou não). Que eu seja capaz de desenhar e de pintar, e através dessa minha relação com eles e com meu mundo eu tenha a capacidade de produzir meus quadros, isto é algo verdadeiramente extraordinário!

Há uma história que aconteceu com Claude Monet, por exemplo. Eu estive em Paris, há alguns anos atrás, e puder ver uma exposição de várias pinturas que ele fez da mesma igreja, a catedral de Rouen, em vários momentos do dia, porque ele queria captar a luz dos vários momentos do dia! Então ele usou a mesma igreja como modelo para várias telas, pois seu interesse estava na luz e nos efeitos que esta produz no mundo.

Não é incrível que eu possa me inspirar num modelo (vamos dizer que num mesmo modelo) e a partir dele - do Real - eu possa criar quadros diferentes, com temas diferentes, com luzes e cores diferentes? Por que teria mais valor criar minhas figuras de "imaginação"?

Minha opção de vida como pintora, até agora pelo menos, é de usar a realidade como referência! A realidade é de uma riqueza inesgotável! Há artistas que abriram mão dela, que preferem pintar "de imaginação". Conheço muitos deles, vários dos quais são brasileiros e estão fazendo seus trabalhos hoje. São muito bons no que fazem, vários deles. Pintam seus mundos internos, suas visualizações pessoais, colorem seus quadros a seu modo, pintam suas figuras com "liberdade" de invenção...

Mas a minha "liberdade" de invenção garanto que é tão ampla quanto a deles (senão mais!), mesmo que pareça que eu esteja "presa" à figura real... Porque eu não "copio" o que vejo, eu interpreto.
Ocorre que a realidade do mundo à nossa volta é movimento, é impermanência, é inesgotabilidade...

Menino posando para o artista inglês Lucien Freud

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Burton Silverman: em busca do humano - II

A pintura de Burton Silverman é a pintura da "vida real", caminho que ele escolheu e segue há quase oito décadas. Seu primeiro retrato foi pintado aos 13 anos de idade, era o de um camponês. Nesta linha, ele segue até hoje em suas representações de trabalhadores, ou mesmo de párias ou de outros indivíduos que fazem parte da sociedade. Com 87 anos de idade, o artista se realiza na busca do que é real e genuíno em sua arte.

Ao longo dos anos, Silverman tem orientado e inspirado muita gente, seja com seu ensino, seja com sua pintura. Em seu ateliê em Manhattan, desde 1971 ele tem recebido centenas de aprendizes, seja em cursos regulares, seja em workshops. Ao mesmo tempo, deu aula na Liga dos Estudantes. Com quase 80 anos de atividade no mundo da arte de Nova York - que passou pelos modismos do expressionismo abstrato, da pop-art, do foto-realismo ao pós-modernismo - ele interagiu com figuras importantes de todos os lados. Silverman é um verdadeira fonte de história da arte nos EUA dos últimos 80 anos. Além disso, é sempre franco ao dar suas opiniões e é sempre alguém a quem muitos artistas podem recorrer para obter uma crítica sincera de seu trabalho ou do de outros artistas.

Mesmo tendo se formado em arte e música em boas escolas de Nova York, assim como na Columbia University, Silverman é principalmente autodidata. Ele diz sempre que o aprendizado acadêmico trouxe-lhe mais formação em história da arte do que qualquer outra coisa. E que aprendeu mais com seus dois companheiros e amigos de vida e ofício (que ele conheceu no colégio) Harvey Dinnerstein e Dan Schwartz. Silverman diz que a melhor maneira de aprender pintura é “experimentando, praticando e pintando". Ele e seus amigos se perguntavam como os grandes artistas do passado fizeram o que fizeram. “Os museus se tornaram a nossa sala de aula”, diz ele. Iam lá, analisavam as telas, as técnicas usadas e em seguida desenhavam e pintavam continuamente. “Até que fomos capazes de descobrir alguma coisa”.

Foi com Dinnerstein e Schwartz que ele criou seu movimento e manifesto “Visão Realista”. Eles lançaram esse Manifesto Realista em meados da década de 1950 junto com David Levine, Aaron Shikler e mais outros três artistas, assim como fizeram uma exposição de seus trabalhos. O manifesto falava da importância da Arte Realista em contraposição ao Expressionismo Abstrato que crescia muito na época, especialmente após as obras de Jackson Pollock. Estes artistas faziam um esforço consciente para criar um contraponto intelectual a estas novidades modernistas. Fizeram várias exposições e protestos em defesa do realismo.

A respeito, Silverman diz que ele e seus companheiros sempre se sentiram em desacordo com os movimentos predominantes no dia. "Desde Jackson Pollock em 1950, passando pela arte da década de 1960, 1980, 1990... Eu nunca estive esteticamente relacionado a qualquer desses movimentos", admitiu. "Eu sempre estive meio que entre as fendas. E, para ser honesto, ainda me sinto fora do que ocorre atualmente. Não de forma negativa ou com raiva, mas apenas no sentido de que eu realmente não me ligo a um monte de outros pintores que estão fazendo outros tipos de arte”. Na verdade, Silverman aspira que as gerações mais jovens de realistas alcancem um alto padrão e sejam conscientes da história da arte do passado recente, tanto do realismo como da tradição histórica da qual ele se originou.

Parte das críticas de Burton Silverman sobre a chamada “arte contemporânea” diz respeito, “muitas vezes” à falta de conteúdo ou de convicção dos artistas. Ele diz que há exceções significativas, mas em geral ele vê “uma proliferação de demonstração de habilidade técnica e de aumento do tamanho de obras que não têm conteúdo para sustentá-las", disse ele.

Se a pessoa leva em conta critérios duradouros de excelência, vê que “a grande arte vai além de quaisquer regras. Eu percebo que para uma obra de arte sobreviver ao longo do tempo, desde os primórdios da história da arte até o presente, há algo que é inevitável: uma qualidade que toca em nossas raízes humanas e em nossos anseios históricos para algum tipo de espiritualidade que chamamos de 'belo'. Mas não acho que 'beleza' deve ser o objetivo da arte, apesar do apelo para isso nos dias de hoje”.

Ele dá um exemplo: veja a diferença entre dois artistas pintando um retrato. Um deles só registra e se preocupa exatamente em que o rosto se pareça com a pessoa. O outro pinta um rosto onde se pode ler, através dele, o que é a vida dessa pessoa. Ou a diferença entre uma pintura feita a partir de um cartão postal de um lugar bonito, contra um artista que pinta o lugar em que ele vive, ou mesmo viveu e sonhou, mas que "possui" como parte de sua experiência diária. “Como fizeram Innes ou Constable ou Wyeth”, aponta Silverman.

Herb Steinberg pintado por Silverman
Não é o que se vê hoje na arte do momento. Crítico à respeito, Burton Silverman mostra como é difícil um debate deste tema que não caia na passionalidade: “Sempre recai sobre uma defesa emocional de posição. Então, não é racional nunca. Por quê? Porque toda a arte chamada de contemporânea, modernista, realmente é, em grande parte, emocional e subjetiva. As ideias podem até infiltrar-se dentro dela, mas a maioria das discussões acabam num beco sem saída e voltam a cair na questão de gosto, ou então naquilo ‘que move’ a pessoa individualmente."

Ele diz que nos primeiros anos de sua vida como pintor, lhe foi solicitado que escrevesse em defesa da arte realista em oposição à suposta superioridade da arte abstrata. “A base filosófica para a arte abstrata foi dada de Roger Fry a Clement Greenberg, dizendo que queriam "purificar" a arte de seu apego ao mundo real, e isolar a beleza do contexto real. Eu nunca entendi o que queriam dizer com isso: por que as imagens seriam "impuras" ou tinham uma natureza contaminante? Eu me senti pessoalmente atingido por essas ideias! Parecia um ataque à validade da minha arte! Mais recentemente, no entanto, eu realmente abandonei essa polêmica cansativa “Realismo versus Arte Modernista”. Eu não posso simplesmente rechaçar as pessoas que pintam abstratamente, nem quero abolir o modernismo, mesmo se pudesse. Isso aí já é um fato inescapável da história da arte, e da arte que satisfez um monte de gente. Mas às vezes é difícil ficar quieto quando a própria ideia de realismo é constantemente ridicularizada na imprensa da arte do mainstream”.

Questionado sobre a também velha polaridade forma e conteúdo de sua obra, Silverman disse que sempre busca um equilíbrio entre estas duas coisas. “Eu quero ligar o corpo e a alma, a forma e o conteúdo na minha arte”.

Herb Steinberg,
segundo retrato feito por Silverman
Mesmo no auge do domínio da arte abstrata nos Estados Unidos, diz Silverman que muitos artistas figurativos como ele estavam produzindo coisas muito interessantes, como os pintores Andrew Wyeth e o “recentemente canonizado Edward Hopper”. Não tinha muita gente “olhando para o trabalho que estávamos fazendo”. Mesmo assim houve alguns críticos do antigo “New York Times” na década de 1940, como “Howard Devree, continua Silverman, que escreveu coisas terríveis mas de forma simpática sobre meu trabalho”. Alguns poucos críticos gostavam dessa ideia de haver esses ateliês pequenos, quase invisíveis, onde em pequena escala, agradáveis ​​pinturas estavam sendo feitas. “Isso mudou drasticamente depois do surgimento das imensas telas de Jackson Pollock (artista abstrato). As pinturas em galerias tornaram-se enormes”.

Ainda sobre a experiência do movimento “Visão Realista” do qual participou com seus amigos, Burton Silverman lembra que as pinturas nem eram muito “boas”, mas parecia ser mais interessante o fato de que mantinham a tradição pictórica do século XIX. Embora usassem os mesmos recursos pictóricos e realistas “foi muito diferente da pintura do século XIX. Nós pintamos as pessoas em nosso mundo, em nossas vidas”, observa ele.

Perguntado se guarda algum ressentimento por sua arte não ser a defendida pelo mainstream, Silverman diz que “não, pelo menos não mais”. De alguma forma ele atraiu seu público também sem precisar recorrer aos recursos dos artistas “contemporâneos” que precisam chocar para atingir a crítica e dar-lhe algum assunto para escrever. “Eu tenho feito meu trabalho, porque eu pinto o que me comove. Atualmente tenho acesso crescente que vai além das galerias, a um museu ou dois, onde meu trabalho pode ser julgado por seus méritos. Agrada-me ainda mais, não pelo prestígio de ter algumas exposições em museus, mas porque é minha visão de mundo que está sendo vista. E ainda com a vantagem de estar livre da necessidade de vender minhas obras”.

- “Há um princípio de prazer em toda a arte e, para mim, uma coisa que é extremamente importante é o elemento humano presente nela”. E complementa: ”Estou fazendo algo sobre o mundo em que vivo.”

Perguntado sobre os artistas que mais admira, Silverman responde que são poucos: Velázquez e Degas, Eakins e Sargent. “Rembrandt, é claro. Holbein, Hals, van Eyck, Vermeer, Caravaggio e Lautrec”. E Ingres. Mas com diferente valor e importância em cada fase de sua vida e formação.

Como pintor retratista, ele tem recebido muitas encomendas ao longo de sua carreira. Trabalha com aquarela, óleo, pastel, carvão ou simplesmente lápis-grafite. Já participou de inúmeras exposições coletivas e mais de 30 exposições individuais, nos EUA e no Exterior. Já recebeu 32 prêmios e menções honrosas por seu trabalho. Suas pinturas estão presentes em mais de 20 coleções públicas, como o Museu do Brooklyn, o Museu de Arte de Filadélfia, o Museu New Britain, o Museu Casa da Moeda, o Denver Art Museum, o Museu Nacional de Arte Americana, o Museu de Arte Delaware, o Columbus Museum e a National Portrait Gallery. Em 1999, ele recebeu o Prêmio “John Singer Sargent” da Sociedade Americana de Artistas Retratistas.

Ele diz que seu modo de pintar mudou um pouco ao longo dos anos, mas a motivação continua a mesma. "Se  olhar para trás, as pinturas que fiz há 20 ou 30 anos, todas elas são resultado da minha observação pessoal. Ou seja, me deparo com algo que provoca em mim algum sentido ou importância, mesmo que nem sempre eu saiba porquê. Ou fui atraído por alguém - não porque ele ou ela tinham qualidades atrativas por si - ou porque eu estava intencionalmente tentando retratar um certo status social, ou porque havia talvez algo inexplicavelmente especial sobre a sua humanidade."
O pedreiro, Silverman, óleo sobre tela

Um exemplo é a pintura de um pedreiro, um trabalhador sem camisa, com a barriga de quem bebe cerveja e uma expressão que revela seus muitos anos de trabalho. Ou a de uma mulher que Silverman conheceu durante seus verões passados ​na Itália, quando ele tinha uns 40 anos de idade e que lhe lembrou sua própria avó. Ou de duas pinturas que Silverman fez de seu amigo, artista como ele, Herb Steinberg: a primeira quando o amigo tinha por volta de 20 anos, e a outra feita muitos anos mais tarde, quando estava na casa dos 60 anos, pouco antes de morrer. Ele diz que o primeiro retrato do amigo é “um mau exemplo de minha pintura" e ele muitas vezes pensou em jogar fora. Mas se diz feliz por não ter feito isso “porque agora eu posso ver de onde vim. E mesmo assim, havia algo muito real sobre esta pessoa retratada”. Ele mais tarde percebeu a importância de incluir o cigarro nas mãos do amigo em ambos os retratos. "Pois ele constantemente estava com um cigarro na mão. Era a sua proteção contra o mundo: contra suas hostilidades, seus medos e suas ambiguidades. Infelizmente, o cigarro também acabou levando-o à morte."

Assim como Antonio López (pintor espanhol realista - leia aqui sobre ele), Silverman também evita pintar a partir de fotografias. Ele diz que tem grande dificuldade de pintar retratos de pessoas ausentes fisicamente porque não dá para observar o espírito e a personalidade dos sujeitos em tempo real. “Eu preciso pintar o ser humano como ele é”.

Em 2004, Silverman pintou um autorretrato, que causou alguma estranheza em alguns. Ele explica que estava apenas respondendo a uma reflexão pessoal sobre sua vida. "Eu pintei este autorretrato três anos depois de ter tido um ataque cardíaco. Eu estava certo dia entrando em meu ateliê, em um dia extremamente quente de verão, e vi meu reflexo na porta de vidro. Daí pensei: meu Deus, eu ainda estou vivo! E não só estou ainda vivo, como ainda estou pintando quadros! Eu preciso comemorar isso! Eu estava, na verdade, sobrevivendo em dois níveis: no físico e no artístico, no sentido de que as minhas convicções sobre o realismo ainda estavam produzindo pinturas. Eu apareço vulnerável nesse trabalho, quase nu, e acho que é por isso que incomodou. Acho que quando uma obra de arte alcança alguma noção universal, quando não se trata apenas de um momento mas sobre algo mais atemporal, é quando ela causa impacto. Eu uso sempre a jangada do Medusa de Théodore Géricault como exemplo. Foi a resposta de Géricault a um tema que veio à tona na época (o naufrágio de uma fragata que a monarquia francesa restaurada tentou sufocar, ocorrido em 2 de julho de 1816, na costa do Senegal, país africano, quando sobreviventes ficaram à deriva durante 13 dias). Mas tantos anos depois, esta pintura ainda é considerada uma das grandes obras da história da arte. Por quê? Porque as questões temporais podem até ter desaparecido, mas o que resta dela é universalmente compreendido. O tema da sobrevivência fala também sobre esperança, morte, medo, etc. São todas as mesmas emoções que continuamos a enfrentar!"

Em seu ateliê de Manhattan, Silverman tem uma rotina de trabalho que já dura mais de 40 anos. Mora no mesmo endereço, com sua esposa. "O ateliê é um lugar privado, e quando entro aqui, fico meio insano. Falo sozinho, falo com as vozes em minha cabeça. Há uma grande frase de um outro artista que disse algo como ‘quando estou no ateliê, estou com 100 pessoas, mas quando saio de lá saio sozinho'. Para mim, isso significa que mesmo que todos nós somos animais sociais e somos perseguidos pelas exigências dos outros, como  artista quando eu entro em meu estúdio e começo a trabalhar, é só eu e minha pintura. A responsabilidade é toda e só minha."

Com relação aos planos futuros de ensino, Silverman diz que sua contribuição para a instrução pode estar chegando ao fim. "Eu não acho que eu vou ensinar muito mais", admite. "O que tenho ensinado, do ponto de vista técnico, pode ser ensinado por outros. Os métodos de pintura, certos dispositivos pictóricos, são todos muito familiar agora e há inúmeras pessoas ensinando. Isso, a parte técnica, é quase banal. Não tenho certeza de que estou acrescentando algo de útil neste momento. Mas o que não se pode ensinar é como realmente ser um artista - isso faz parte de uma autodescoberta. Toda a arte tem que sair dessa complexidade da personalidade, das experiências, dos afetos, dos aborrecimentos da vida de alguém. Estas são emoções altamente individuais, isso não pode ser ensinado."

A experiência de vida é de fato individual, e cada um tem a sua. Não há como ensinar o sentido que tem uma visão mais humana sobre o mundo a uma pessoa que está muito longe dos acontecimentos do dia a dia, a alguém que vive como se estivesse dentro de uma bolha, avesso a saber o que acontece com as vidas dos outros seres humanos, preso na visão de seu próprio umbigo… Burton Silverman quer dizer exatamente isso, pois ao longo de sua vida esteve sempre ligado aos acontecimentos de seu mundo, fazendo suas representações diretas da vida urbana cotidiana, acompanhando, por exemplo, as movimentações civis em defesa dos direitos humanos por ativistas da década de 1960.

Certamente o legado de Silverman vai sobreviver a ele, pois seu modo de pensar tem inspirado inúmeros alunos e colegas de profissão. Inclusive aqui no Brasil, inclusive eu.


"Signora", pintura feita na Itália