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terça-feira, 26 de abril de 2016

Pintar de imaginação?

John Singer Sargent pintando uma de suas obras, com as modelos posando à sua frente
Há algum tempo atrás, dois amigos em dois momentos diferentes me fizeram a mesma pergunta: os artistas pintam seus quadros "de imaginação" ou eles usam modelos/referências?

Isto parece ser uma questão clara para os pintores, mas é uma espécie de "lenda urbana" para os que não o são. A "culpa" disso pertence aos pintores modernistas, estrangeiros e brasileiros, que começaram a "criar/inventar" seus próprios modelos.

A resposta é muito simples: - Não! Nenhum grande mestre pintou de "imaginação", em especial as figuras humanas de seus quadros. Um dos meus amigos se disse "decepcionado": - Não? perguntou-me para confirmar. - Não! reforcei eu.

Clotilde Sorolla, esposa de Joaquín Sorola,
serviu de modelo para diversas telas do marido
Mas é assim que são as coisas. Há inúmeras idealizações causadas por profundo desconhecimento da maioria das pessoas sobre as artes plásticas...

A não ser que o pintor siga uma linha mais modernista - de cubista a expressionista, abstrato ou conceitual, quando aí sim, o artista se vê "livre" para criar suas próprias figuras, como fez Picasso, por exemplo - os pintores figurativos, desde os primórdios da pintura na Idade Média, lá pelos séculos XIV-XV, vêm utilizando a Natureza como modelo para seus quadros. Ou seja, a Natureza (com N maiúsculo mesmo, porque mais ampla) vem sendo o modelo de todos os pintores figurativos que se baseiam naquilo que vêem em seu mundo, o real.

Durante muito tempo, na história da Arte, os temas principais que aparecem na pintura foram temas de cunho religioso, para os quais se usava e abusava da "imaginação"... O poder da igreja impunha que, para catequizar os homens e mulheres em sua maioria analfabetos, as imagens eram uma boa forma de ensinar as lições contidas na Bíblia, por serem de fácil compreensão a todos. Era preciso fazer propaganda de sua filosofia, de sua visão de mundo, de seus santos e regras de vida.

Os pintores têm sido usados para isto há muitos e muitos séculos. Muito antes mesmo da Idade Média, pintores eram contratados para criar cenas bíblicas, terrestres ou celestes, assim como dar uma "cara" a seus santos, anjos, profetas. Pode ser que na época alguns tivessem se inspirado em modelos reais (na Alta Idade Média), mas a maioria "criava" os rostos sagrados de Maria, de Jesus, dos santos e mesmo de Deus. Podemos ver, por exemplo, nos ícones da igreja ortodoxa russa, como havia um certo padrão para os rostos de santos e de figuras sagradas. Não precisavam se basear em pessoais reais. Aliás, não DEVIAM se inspirar em pessoas reais!

"A costureira", de Diego Velázquez,
para cuja pintura serviu de mod
elo,
sua própria esposa
Só que quando o ser humano foi colocado no centro das atenções, em especial no período que conhecemos como Renascimento, por exemplo, pintores como Leonardo da Vinci, Michelangelo, Ticiano, Rafael e tantos outros - só para ficar na Itália - começaram a se apaixonar pela anatomia do corpo humano e a pintar figuras humanas cada vez mais reais. Lembre-se, por exemplo, do grande Caravaggio que usava como modelos, para seus quadros de santos, pessoas bem concretas das ruelas e becos de Roma, seus amigos vagabundos e prostitutas...

Alguém pode conceber a "Gioconda" de Da Vinci como uma criação de sua imaginação? Claro que não! Da Vinci usava modelos bem concretos, de carne e osso, em seu ateliê. Aliás, ele tinha um modelo preferido, um de seus alunos. Assim como é impossível que alguém possa concluir que o grande "David" de Michelangelo tenha surgido de sua cabeça somente, sem que nenhum ser humano tenha posado para que ele pudesse tão bem esculpir a anatomia masculina em sua grande escultura!

Diego Velázquez usou como seus primeiros modelos de pintura sua própria família, pais e esposa. Depois que foi para a Corte do rei Felipe IV, além dos membros da família real, que pintou, Velázquez também retratou os trabalhadores que, como ele, serviam ao rei, desde bobos da Corte às damas de companhia...

Rembrandt e Vermeer, lá nos Países Baixos, pintavam suas figuras a partir de muitos e muitos estudos de observação com modelos bem vivos. A "Moça com brinco de pérola" foi pintada a partir de uma modelo bem real e feminina. Disse-se que era uma das empregadas de sua casa.

Meus amigos, a profissão de modelo que posa para artistas é tão antiga quanto a pintura figurativa!

Não tenho eu, pobre de mim, a menor capacidade de inventar uma outra maneira de pintar realisticamente o que vejo sem ver! Se nem mesmo os velhos mestres, os grandes pintores do mundo, pensaram que podiam ser capazes disso...! Os exemplos que eu poderia dar aqui fariam parte de uma lista enorme, além destes que citei acima.

Mas vamos lembrar de mais alguns:

Gustave Courbet, Renoir, Édouard Manet, Francisco Goya, John Singer Sargent, Jean Dominique Ingres, Van Gogh, Edgar Degas, Eugène Delacroix, El Greco, José Ribera, Zurbarán, Joaquin Sorolla, Rubens, William Turner, Frans Hals, William Bouguereau, Camille Corot, Hans Holbein, Paul Gauguin, Van Dyck, Francisco de Zurbarán, Ilya Repin, Rodin... a lista é imensa dos artistas figurativos e TODOS eles usavam a Natureza (o que inclui tudo o que pode ser visto e pintado, de animais a seres humanos) como modelo para suas obras.

Decepcionei mais alguém?

"Titus", filho de Rembrandt, que posou para ele
diversas vezes
Não seria conveniente raciocinar que se eu me considero uma pintora figurativa, de caráter mais realista, não seria uma incoerência eu me ligar a pintores mais modernos e que se desligaram da realidade para "inventar" minhas próprias figuras?

Por trás do uso de modelos bem concretos para que eu possa me expressar artisticamente, há toda uma linda filosofia de trabalho que diz, em resumo, o seguinte: a inesgotabilidade do Real é o que causa em mim a grande paixão de me expressar artisticamente ao observar modelos bem concretos (sejam humanos ou não). Que eu seja capaz de desenhar e de pintar, e através dessa minha relação com eles e com meu mundo eu tenha a capacidade de produzir meus quadros, isto é algo verdadeiramente extraordinário!

Há uma história que aconteceu com Claude Monet, por exemplo. Eu estive em Paris, há alguns anos atrás, e puder ver uma exposição de várias pinturas que ele fez da mesma igreja, a catedral de Rouen, em vários momentos do dia, porque ele queria captar a luz dos vários momentos do dia! Então ele usou a mesma igreja como modelo para várias telas, pois seu interesse estava na luz e nos efeitos que esta produz no mundo.

Não é incrível que eu possa me inspirar num modelo (vamos dizer que num mesmo modelo) e a partir dele - do Real - eu possa criar quadros diferentes, com temas diferentes, com luzes e cores diferentes? Por que teria mais valor criar minhas figuras de "imaginação"?

Minha opção de vida como pintora, até agora pelo menos, é de usar a realidade como referência! A realidade é de uma riqueza inesgotável! Há artistas que abriram mão dela, que preferem pintar "de imaginação". Conheço muitos deles, vários dos quais são brasileiros e estão fazendo seus trabalhos hoje. São muito bons no que fazem, vários deles. Pintam seus mundos internos, suas visualizações pessoais, colorem seus quadros a seu modo, pintam suas figuras com "liberdade" de invenção...

Mas a minha "liberdade" de invenção garanto que é tão ampla quanto a deles (senão mais!), mesmo que pareça que eu esteja "presa" à figura real... Porque eu não "copio" o que vejo, eu interpreto.
Ocorre que a realidade do mundo à nossa volta é movimento, é impermanência, é inesgotabilidade...

Menino posando para o artista inglês Lucien Freud

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Burton Silverman: em busca do humano - II

A pintura de Burton Silverman é a pintura da "vida real", caminho que ele escolheu e segue há quase oito décadas. Seu primeiro retrato foi pintado aos 13 anos de idade, era o de um camponês. Nesta linha, ele segue até hoje em suas representações de trabalhadores, ou mesmo de párias ou de outros indivíduos que fazem parte da sociedade. Com 87 anos de idade, o artista se realiza na busca do que é real e genuíno em sua arte.

Ao longo dos anos, Silverman tem orientado e inspirado muita gente, seja com seu ensino, seja com sua pintura. Em seu ateliê em Manhattan, desde 1971 ele tem recebido centenas de aprendizes, seja em cursos regulares, seja em workshops. Ao mesmo tempo, deu aula na Liga dos Estudantes. Com quase 80 anos de atividade no mundo da arte de Nova York - que passou pelos modismos do expressionismo abstrato, da pop-art, do foto-realismo ao pós-modernismo - ele interagiu com figuras importantes de todos os lados. Silverman é um verdadeira fonte de história da arte nos EUA dos últimos 80 anos. Além disso, é sempre franco ao dar suas opiniões e é sempre alguém a quem muitos artistas podem recorrer para obter uma crítica sincera de seu trabalho ou do de outros artistas.

Mesmo tendo se formado em arte e música em boas escolas de Nova York, assim como na Columbia University, Silverman é principalmente autodidata. Ele diz sempre que o aprendizado acadêmico trouxe-lhe mais formação em história da arte do que qualquer outra coisa. E que aprendeu mais com seus dois companheiros e amigos de vida e ofício (que ele conheceu no colégio) Harvey Dinnerstein e Dan Schwartz. Silverman diz que a melhor maneira de aprender pintura é “experimentando, praticando e pintando". Ele e seus amigos se perguntavam como os grandes artistas do passado fizeram o que fizeram. “Os museus se tornaram a nossa sala de aula”, diz ele. Iam lá, analisavam as telas, as técnicas usadas e em seguida desenhavam e pintavam continuamente. “Até que fomos capazes de descobrir alguma coisa”.

Foi com Dinnerstein e Schwartz que ele criou seu movimento e manifesto “Visão Realista”. Eles lançaram esse Manifesto Realista em meados da década de 1950 junto com David Levine, Aaron Shikler e mais outros três artistas, assim como fizeram uma exposição de seus trabalhos. O manifesto falava da importância da Arte Realista em contraposição ao Expressionismo Abstrato que crescia muito na época, especialmente após as obras de Jackson Pollock. Estes artistas faziam um esforço consciente para criar um contraponto intelectual a estas novidades modernistas. Fizeram várias exposições e protestos em defesa do realismo.

A respeito, Silverman diz que ele e seus companheiros sempre se sentiram em desacordo com os movimentos predominantes no dia. "Desde Jackson Pollock em 1950, passando pela arte da década de 1960, 1980, 1990... Eu nunca estive esteticamente relacionado a qualquer desses movimentos", admitiu. "Eu sempre estive meio que entre as fendas. E, para ser honesto, ainda me sinto fora do que ocorre atualmente. Não de forma negativa ou com raiva, mas apenas no sentido de que eu realmente não me ligo a um monte de outros pintores que estão fazendo outros tipos de arte”. Na verdade, Silverman aspira que as gerações mais jovens de realistas alcancem um alto padrão e sejam conscientes da história da arte do passado recente, tanto do realismo como da tradição histórica da qual ele se originou.

Parte das críticas de Burton Silverman sobre a chamada “arte contemporânea” diz respeito, “muitas vezes” à falta de conteúdo ou de convicção dos artistas. Ele diz que há exceções significativas, mas em geral ele vê “uma proliferação de demonstração de habilidade técnica e de aumento do tamanho de obras que não têm conteúdo para sustentá-las", disse ele.

Se a pessoa leva em conta critérios duradouros de excelência, vê que “a grande arte vai além de quaisquer regras. Eu percebo que para uma obra de arte sobreviver ao longo do tempo, desde os primórdios da história da arte até o presente, há algo que é inevitável: uma qualidade que toca em nossas raízes humanas e em nossos anseios históricos para algum tipo de espiritualidade que chamamos de 'belo'. Mas não acho que 'beleza' deve ser o objetivo da arte, apesar do apelo para isso nos dias de hoje”.

Ele dá um exemplo: veja a diferença entre dois artistas pintando um retrato. Um deles só registra e se preocupa exatamente em que o rosto se pareça com a pessoa. O outro pinta um rosto onde se pode ler, através dele, o que é a vida dessa pessoa. Ou a diferença entre uma pintura feita a partir de um cartão postal de um lugar bonito, contra um artista que pinta o lugar em que ele vive, ou mesmo viveu e sonhou, mas que "possui" como parte de sua experiência diária. “Como fizeram Innes ou Constable ou Wyeth”, aponta Silverman.

Herb Steinberg pintado por Silverman
Não é o que se vê hoje na arte do momento. Crítico à respeito, Burton Silverman mostra como é difícil um debate deste tema que não caia na passionalidade: “Sempre recai sobre uma defesa emocional de posição. Então, não é racional nunca. Por quê? Porque toda a arte chamada de contemporânea, modernista, realmente é, em grande parte, emocional e subjetiva. As ideias podem até infiltrar-se dentro dela, mas a maioria das discussões acabam num beco sem saída e voltam a cair na questão de gosto, ou então naquilo ‘que move’ a pessoa individualmente."

Ele diz que nos primeiros anos de sua vida como pintor, lhe foi solicitado que escrevesse em defesa da arte realista em oposição à suposta superioridade da arte abstrata. “A base filosófica para a arte abstrata foi dada de Roger Fry a Clement Greenberg, dizendo que queriam "purificar" a arte de seu apego ao mundo real, e isolar a beleza do contexto real. Eu nunca entendi o que queriam dizer com isso: por que as imagens seriam "impuras" ou tinham uma natureza contaminante? Eu me senti pessoalmente atingido por essas ideias! Parecia um ataque à validade da minha arte! Mais recentemente, no entanto, eu realmente abandonei essa polêmica cansativa “Realismo versus Arte Modernista”. Eu não posso simplesmente rechaçar as pessoas que pintam abstratamente, nem quero abolir o modernismo, mesmo se pudesse. Isso aí já é um fato inescapável da história da arte, e da arte que satisfez um monte de gente. Mas às vezes é difícil ficar quieto quando a própria ideia de realismo é constantemente ridicularizada na imprensa da arte do mainstream”.

Questionado sobre a também velha polaridade forma e conteúdo de sua obra, Silverman disse que sempre busca um equilíbrio entre estas duas coisas. “Eu quero ligar o corpo e a alma, a forma e o conteúdo na minha arte”.

Herb Steinberg,
segundo retrato feito por Silverman
Mesmo no auge do domínio da arte abstrata nos Estados Unidos, diz Silverman que muitos artistas figurativos como ele estavam produzindo coisas muito interessantes, como os pintores Andrew Wyeth e o “recentemente canonizado Edward Hopper”. Não tinha muita gente “olhando para o trabalho que estávamos fazendo”. Mesmo assim houve alguns críticos do antigo “New York Times” na década de 1940, como “Howard Devree, continua Silverman, que escreveu coisas terríveis mas de forma simpática sobre meu trabalho”. Alguns poucos críticos gostavam dessa ideia de haver esses ateliês pequenos, quase invisíveis, onde em pequena escala, agradáveis ​​pinturas estavam sendo feitas. “Isso mudou drasticamente depois do surgimento das imensas telas de Jackson Pollock (artista abstrato). As pinturas em galerias tornaram-se enormes”.

Ainda sobre a experiência do movimento “Visão Realista” do qual participou com seus amigos, Burton Silverman lembra que as pinturas nem eram muito “boas”, mas parecia ser mais interessante o fato de que mantinham a tradição pictórica do século XIX. Embora usassem os mesmos recursos pictóricos e realistas “foi muito diferente da pintura do século XIX. Nós pintamos as pessoas em nosso mundo, em nossas vidas”, observa ele.

Perguntado se guarda algum ressentimento por sua arte não ser a defendida pelo mainstream, Silverman diz que “não, pelo menos não mais”. De alguma forma ele atraiu seu público também sem precisar recorrer aos recursos dos artistas “contemporâneos” que precisam chocar para atingir a crítica e dar-lhe algum assunto para escrever. “Eu tenho feito meu trabalho, porque eu pinto o que me comove. Atualmente tenho acesso crescente que vai além das galerias, a um museu ou dois, onde meu trabalho pode ser julgado por seus méritos. Agrada-me ainda mais, não pelo prestígio de ter algumas exposições em museus, mas porque é minha visão de mundo que está sendo vista. E ainda com a vantagem de estar livre da necessidade de vender minhas obras”.

- “Há um princípio de prazer em toda a arte e, para mim, uma coisa que é extremamente importante é o elemento humano presente nela”. E complementa: ”Estou fazendo algo sobre o mundo em que vivo.”

Perguntado sobre os artistas que mais admira, Silverman responde que são poucos: Velázquez e Degas, Eakins e Sargent. “Rembrandt, é claro. Holbein, Hals, van Eyck, Vermeer, Caravaggio e Lautrec”. E Ingres. Mas com diferente valor e importância em cada fase de sua vida e formação.

Como pintor retratista, ele tem recebido muitas encomendas ao longo de sua carreira. Trabalha com aquarela, óleo, pastel, carvão ou simplesmente lápis-grafite. Já participou de inúmeras exposições coletivas e mais de 30 exposições individuais, nos EUA e no Exterior. Já recebeu 32 prêmios e menções honrosas por seu trabalho. Suas pinturas estão presentes em mais de 20 coleções públicas, como o Museu do Brooklyn, o Museu de Arte de Filadélfia, o Museu New Britain, o Museu Casa da Moeda, o Denver Art Museum, o Museu Nacional de Arte Americana, o Museu de Arte Delaware, o Columbus Museum e a National Portrait Gallery. Em 1999, ele recebeu o Prêmio “John Singer Sargent” da Sociedade Americana de Artistas Retratistas.

Ele diz que seu modo de pintar mudou um pouco ao longo dos anos, mas a motivação continua a mesma. "Se  olhar para trás, as pinturas que fiz há 20 ou 30 anos, todas elas são resultado da minha observação pessoal. Ou seja, me deparo com algo que provoca em mim algum sentido ou importância, mesmo que nem sempre eu saiba porquê. Ou fui atraído por alguém - não porque ele ou ela tinham qualidades atrativas por si - ou porque eu estava intencionalmente tentando retratar um certo status social, ou porque havia talvez algo inexplicavelmente especial sobre a sua humanidade."
O pedreiro, Silverman, óleo sobre tela

Um exemplo é a pintura de um pedreiro, um trabalhador sem camisa, com a barriga de quem bebe cerveja e uma expressão que revela seus muitos anos de trabalho. Ou a de uma mulher que Silverman conheceu durante seus verões passados ​na Itália, quando ele tinha uns 40 anos de idade e que lhe lembrou sua própria avó. Ou de duas pinturas que Silverman fez de seu amigo, artista como ele, Herb Steinberg: a primeira quando o amigo tinha por volta de 20 anos, e a outra feita muitos anos mais tarde, quando estava na casa dos 60 anos, pouco antes de morrer. Ele diz que o primeiro retrato do amigo é “um mau exemplo de minha pintura" e ele muitas vezes pensou em jogar fora. Mas se diz feliz por não ter feito isso “porque agora eu posso ver de onde vim. E mesmo assim, havia algo muito real sobre esta pessoa retratada”. Ele mais tarde percebeu a importância de incluir o cigarro nas mãos do amigo em ambos os retratos. "Pois ele constantemente estava com um cigarro na mão. Era a sua proteção contra o mundo: contra suas hostilidades, seus medos e suas ambiguidades. Infelizmente, o cigarro também acabou levando-o à morte."

Assim como Antonio López (pintor espanhol realista - leia aqui sobre ele), Silverman também evita pintar a partir de fotografias. Ele diz que tem grande dificuldade de pintar retratos de pessoas ausentes fisicamente porque não dá para observar o espírito e a personalidade dos sujeitos em tempo real. “Eu preciso pintar o ser humano como ele é”.

Em 2004, Silverman pintou um autorretrato, que causou alguma estranheza em alguns. Ele explica que estava apenas respondendo a uma reflexão pessoal sobre sua vida. "Eu pintei este autorretrato três anos depois de ter tido um ataque cardíaco. Eu estava certo dia entrando em meu ateliê, em um dia extremamente quente de verão, e vi meu reflexo na porta de vidro. Daí pensei: meu Deus, eu ainda estou vivo! E não só estou ainda vivo, como ainda estou pintando quadros! Eu preciso comemorar isso! Eu estava, na verdade, sobrevivendo em dois níveis: no físico e no artístico, no sentido de que as minhas convicções sobre o realismo ainda estavam produzindo pinturas. Eu apareço vulnerável nesse trabalho, quase nu, e acho que é por isso que incomodou. Acho que quando uma obra de arte alcança alguma noção universal, quando não se trata apenas de um momento mas sobre algo mais atemporal, é quando ela causa impacto. Eu uso sempre a jangada do Medusa de Théodore Géricault como exemplo. Foi a resposta de Géricault a um tema que veio à tona na época (o naufrágio de uma fragata que a monarquia francesa restaurada tentou sufocar, ocorrido em 2 de julho de 1816, na costa do Senegal, país africano, quando sobreviventes ficaram à deriva durante 13 dias). Mas tantos anos depois, esta pintura ainda é considerada uma das grandes obras da história da arte. Por quê? Porque as questões temporais podem até ter desaparecido, mas o que resta dela é universalmente compreendido. O tema da sobrevivência fala também sobre esperança, morte, medo, etc. São todas as mesmas emoções que continuamos a enfrentar!"

Em seu ateliê de Manhattan, Silverman tem uma rotina de trabalho que já dura mais de 40 anos. Mora no mesmo endereço, com sua esposa. "O ateliê é um lugar privado, e quando entro aqui, fico meio insano. Falo sozinho, falo com as vozes em minha cabeça. Há uma grande frase de um outro artista que disse algo como ‘quando estou no ateliê, estou com 100 pessoas, mas quando saio de lá saio sozinho'. Para mim, isso significa que mesmo que todos nós somos animais sociais e somos perseguidos pelas exigências dos outros, como  artista quando eu entro em meu estúdio e começo a trabalhar, é só eu e minha pintura. A responsabilidade é toda e só minha."

Com relação aos planos futuros de ensino, Silverman diz que sua contribuição para a instrução pode estar chegando ao fim. "Eu não acho que eu vou ensinar muito mais", admite. "O que tenho ensinado, do ponto de vista técnico, pode ser ensinado por outros. Os métodos de pintura, certos dispositivos pictóricos, são todos muito familiar agora e há inúmeras pessoas ensinando. Isso, a parte técnica, é quase banal. Não tenho certeza de que estou acrescentando algo de útil neste momento. Mas o que não se pode ensinar é como realmente ser um artista - isso faz parte de uma autodescoberta. Toda a arte tem que sair dessa complexidade da personalidade, das experiências, dos afetos, dos aborrecimentos da vida de alguém. Estas são emoções altamente individuais, isso não pode ser ensinado."

A experiência de vida é de fato individual, e cada um tem a sua. Não há como ensinar o sentido que tem uma visão mais humana sobre o mundo a uma pessoa que está muito longe dos acontecimentos do dia a dia, a alguém que vive como se estivesse dentro de uma bolha, avesso a saber o que acontece com as vidas dos outros seres humanos, preso na visão de seu próprio umbigo… Burton Silverman quer dizer exatamente isso, pois ao longo de sua vida esteve sempre ligado aos acontecimentos de seu mundo, fazendo suas representações diretas da vida urbana cotidiana, acompanhando, por exemplo, as movimentações civis em defesa dos direitos humanos por ativistas da década de 1960.

Certamente o legado de Silverman vai sobreviver a ele, pois seu modo de pensar tem inspirado inúmeros alunos e colegas de profissão. Inclusive aqui no Brasil, inclusive eu.


"Signora", pintura feita na Itália





quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Burton Silverman: em busca do humano - I

Silverman em seu ateliê em New York
Burton Silverman é um pintor norte-americano, nascido em 1928, em New York. Seu trabalho tem se concentrado na “paisagem do rosto humano”, como ele mesmo diz. Este artista vive e trabalha em seu ateliê em New York, mantendo-se fiel ao caminho que escolheu seguir na arte: a pintura realista.

Seu pensamento sobre pintura e sobre arte é muito importante nos dias atuais em que a arte realista retoma seu lugar, em especial nos EUA, mas também aqui no Brasil. Hoje, em São Paulo, contamos com cerca de dez ateliês realistas. Neste e no próximo post, trarei algumas destas ideias de Silverman. Foram recolhidas em diversas entrevistas que ele deu nos EUA e em seus livros, vídeos e site.

Biografia

Burton Silverman começou suas primeiras lições de desenho na famosa Liga dos Estudantes de Arte de New York, quando tinha 12 anos de idade. Desde o início, seu talento chamou a atenção dos professores, em especial de Anne Goldthwaite, sua primeira mestra. Com apenas 4 meses de formação, já pode ir participar das aulas com modelo vivo.


Ele diz que começou a se interessar por arte ainda criança, como leitor de livros infantis ilustrados por N.C. Wyeth, nascido em 1882. Mas o grande momento para ele foi ter ido a uma exposição, em 1939, intitulada “500 Anos de Grande Pintura”, montada a partir de obras de coleções europeias e norte-americanas. O menino que cresceu no bairro do Brooklin sofreu um grande impacto com o que pode ver nos três grandes pavilhões desta exposição. Até então ele nunca tinha visto uma pintura de perto, somente reproduções em preto e branco. “Me veio então a ideia de que um artista possui algo de grandioso”, disse ele.

Um outro momento importante foi quando ganhou de um primo dez anos mais velho um livro sobre pintura flamenga. Esse primo “foi lendo e comentando as pinturas e dizendo coisas interessantes sobre arte. Era quase como se ele estivesse me apresentando um projeto de vida”. Foi insinuando que a arte era um caminho que Burton poderia seguir. Já sabia do talento do menino que gostava de desenhar. Em seguida, uma tia também lhe presenteou com o primeiro estojo de tinta a óleo. Silverman tinha 9 anos de idade. “Eu estava destinado a fazer isso, observou ele. Isso afetou minha forma de sentir as coisas. Minha imaginação floresceu.”

Claro que seus pais se preocupavam em como ele iria sobreviver com isto, mas ao mesmo tempo procuravam escolas onde ele pudesse se desenvolver. Foi parar na Escola Superior de Música e Arte, no ensino médio, já em sua adolescência. Lá, Silverman teve contato com outros jovens artistas, todos comprometidos com desenho realista em uma época em que Cézanne (mais modernista) dominava. Lá conheceu seu grande amigo e colega Harvey Dinnerstein. Eram tempos de guerra e nos cadernos de desenhos eles faziam aviões de guerra.


Pintura de Silverman
Após sua formação no ensino médio, Silverman voltou à Liga dos Estudantes de Arte para continuar seu curso de desenho. Ele percebia que necessitava de mais treinamento. Também cursou arte na Universidade de Colúmbia. Disse, numa entrevista feita a Ira Goldberg e publicada no site da Liga dos Estudantes, que teve péssimos professores na faculdade. Era um tipo de treinamento em desenho mais gráfico, e o professor queria que os alunos o seguissem à risca, o que não lhe  agradou muito. 

“Você estuda com alguém que você admira, - disse ele nesta entrevista de 2010 - pelo que ele faz. Eu passo o mesmo agora, que sou professor, mas tento dissuadir as pessoas de querer me imitar. Primeiro de tudo, eu não tenho um estilo. Não há nada que um aluno possa imitar. A única coisa importante que eu posso fazer é levar o aluno a identificar exatamente o que ele quer com a pintura e perguntar: por que você escolheu pintar esta imagem? Posso sugerir certos tipos de correções técnicas como composição, proporção e forma tridimensional. Não é um grande segredo, este método já dura 500 anos”.

Ideias

Com o tempo, Silverman se tornou ilustrador profissional, “num momento em que a ilustração ainda estava florescendo”, diz ele. Neste ofício, ele acabou participando dos projetos de propaganda do Pentágono, durante a Guerra da Coreia (entre 1950-53). Não chegou a ser convocado para a guerra, por ser mais útil como ilustrador. Mas ele se opunha a esta guerra, por motivos políticos. “Eu odiava saber que era parte de alguma máquina de propaganda”, acrescenta, “mas era como eu podia sobreviver”.

Burton Silverman sempre teve simpatia pelo socialismo. “Meu pai era um socialista em sua juventude”, complementa. Se dizendo um idealista, Silverman diz que prefere valores de cooperação aos de competição. E que acredita que o ser humano pode ser mais do que sua luta pela sobrevivência e que pode viver em harmonia. 


“Eu tenho valores muito arraigados. Tenho sido um forte observador do mundo, do comportamento humano, de como as coisas são, e a arte também traz mais insights sobre isso. Eu sempre me senti assim. A arte é algo que nos leva para fora de nós mesmos. Eu acho que é a característica comum de artistas que fizeram a grande arte, a arte que é duradoura. Eu acredito que é uma mistura tanto de sua vida emocional e sua vida cognitiva. Caravaggio, para citar um exemplo, humanizou a narrativa católica sobre Deus pintando pessoas reais do cotidiano. Ele mesmo pintou a Madonna com os pés sujos! Com ele, o ser humano tornou-se central para a história tanto quanto a divindade. Isso aconteceu por que era Caravaggio? Por que ele tinha adquirido de Leonardo e, antes disso, de Giotto? Foi uma matriz de outros artistas fazendo a mesma coisa? Certamente sua arte parecia vir de seu amor pela pintura da vida real, ao invés de desenhar caricaturas da vida, e foi isso que atraiu a admiração dos seus contemporâneos”.

Neste ponto, Silverman diz que lembrou de um episódio de sua vida como artista, quando ele e seus amigos organizaram na década de 1950 o movimento “Visão Realista”, com uma exposição de suas pinturas:

“Víamos a necessidade de reconstruir um ambiente humanista similar. Sonhávamos com um reavivamento da pintura realista na década de 1950, no auge do expressionismo abstrato, da grande explosão modernista. Foi a era de aquário para a arte modernista, derrubando os restos de arte figurativa que ainda sobreviveram no remanso do provincianismo americano”.

Ele e seus amigos se viam como “os únicos presumivelmente realistas ao redor”. Mas - ele observa hoje - deixaram de lado muitos outros artistas que, na época, em seu “egocentrismo” eles julgavam não estar “à altura dos critérios estéticos” dele e de seu grupo. “Nós estávamos tentando criar um novo ambiente, uma nova matriz, nos atrevendo a criar um reavivamento realista”. Mas como este movimento excluía muita gente, acabou não tendo muito efeito.
“Sessenta anos depois, vemos um fenômeno que talvez deva algo aos nossos esforços daquele tempo, observa. Muitas pessoas têm explorado a habilidade recém-descoberta, permissível agora, talvez em parte por causa disso que fizemos com o Visão Realista.” 


Há alguns anos se vê um reavivamento da pintura figurativa e realista. Mas ele fala também da pintura hiper-realista, que também tem atraído muita gente nos EUA. Mas realismo e hiper-realismo têm diferenças enormes. “A arte não é guiada pela mesma construção estética”. Esta nova arte realista - o hiper-realismo - imita a fotografia. Para Silverman, é como se os artistas agora quisessem criar uma arte mais “socialmente válida” e “disponível para o espectador comum” do que os artistas modernistas, cuja arte tem sido indecifrável e desinteressante para a maioria. “Mas com isso um monte dessas pinturas parecem ignorar o amor tradicional ao traçado do pincel”. 

“Eu acredito na veracidade, na verdade inerente à grande arte muito mais porque, embora você possa fotografar tudo tão facilmente, uma fotografia raramente lhe causa uma experiência contemplativa. Não menosprezando as grandes fotografias, mas de alguma forma elas têm uma vida útil mais curta para mim do que pinturas”.

“A fidelidade da fotografia afetou a pintura do retrato terrivelmente. As pessoas agora esperam que os retratos pareçam uma fotografia. A pintura, no entanto, é de outro caráter cultural: ela satisfaz a um senso de tradição chamado de arte. Outras qualidades, que mostram um retrato como a sensação de algo vivo - que a pintura cria magicamente e faz sobreviver o retrato muito além da vida do retratado - podem ter sido perdidas”.

“Mas a fotografia também chamou a atenção de um monte de artistas dos finais do século XIX, artistas academicamente treinados como Jean Dagnanon-Bouveret, que foi, provavelmente, um praticante do uso da fotografia. Mas olhe para suas obras. São claramente pinturas! Esta ideia se espalhou pela Europa e tornou-se o movimento que tem sido chamado de Naturalismo. No entanto, antes de Naturalismo e Realismo serem arrastados pela arte do século XX, eles produziram algumas obras poderosas”.

Courbet utilizadas fotografias. Meissonier fez a grande debandada de cavalos napoleônicos usando fotografias. “Mas o resultado parece uma pintura”, diz Silverman. E acrescenta que também usa a câmera: 

“Mas uso com a ideia de que ela me oferece informações, mas não determina minha visão”. 

E dá um exemplo: 


Pintura de Silverman
“David Hockney escreveu um livro inteiro alegando mostrar a influência do uso das lentes nos últimos 300 anos na pintura. Eu não me importo se Caravaggio usou algum tipo de lente para pintar o menino com o alaúde. Esta pintura é muito mais do que uma fotografia! Hockney também argumentou que Van Eyck não poderia ter pintado o lustre em seu retrato do Casal Arnolfini a partir do mesmo ponto de vista que o próprio casal. Tinha que ser a partir de uma lente de algum tipo. Hockney mesmo recorreu a um matemático para provar isso. Ele despreza o ponto crucial da pintura completamente: o porque ela sobrevive. Hockney despreza, com dolorosa inveja, a ideia de artesanato. Cada uma dessas pessoas sabia desenhar, e o desenho era muito mais importante para eles do que qualquer lente, se é que usaram alguma. Caravaggio foi admirado por seus  contemporâneos, e de fato causava inveja, porque ele pintou diretamente da vida. Sua estética cresceu além do desenho. Eu sou um grande defensor da ideia do valor do artesanato. Ele permite que você seja realmente livre. Eu acredito que a fotografia deve ser submetida a meu desenho. Repito: a câmera é parte do meu equipamento de trabalho, mas não a minha visão”.

Burton Silverman, sempre crítico em relação à arte praticada nos tempos atuais, diz que não é só uma questão de gosto. Para ele, dois fatos que ocorreram no século XX influenciam em muito a arte atual. O primeiro, a I Guerra Mundial, quando a sociedade em geral começou a desmoronar. “A I Guerra causou um devastador acidente nas mentes das pessoas que acreditavam nos valores do velho mundo”. O segundo, continua ele, “a pintura acadêmica tradicional tornou-se apenas uma maldita bobagem. Não pintava sobre a vida das pessoas mais”. Em parte, os Pré-Rafaelitas, mas também Bouguereau, com suas figuras idealizadas com “pinturas de pessoas em túnicas brancas que celebravam festivais reminiscentes da Grécia clássica, o que era imaterial e distante da vida da maioria das pessoas”. Para ele, estes dois eventos contribuíram juntos de uma forma muito dinâmica, para a arte que veio a seguir.


“Esta quebra também foi alimentada por alguns dos impressionistas, que romperam com noções convencionais de modelagem. Ao invés de contínuas pinceladas, suaves e sem intercorrências, eles tinham que dividi-las, alegando que replicavam a forma como a luz é transmitida”. 

“As alardeadas habilidades de Picasso foram superestimadas: suas primeiras pinturas eram ainda bastante comuns e repetitivas de artistas espanhóis contemporâneos. Ele sistematicamente imitava Lautrec e Edvard Munch, antes de virar tudo de ponta-cabeça com Les Demoiselles d'Avignon. Estas são coisas arrogantes para se dizer, mas eu não sou considerado um crítico muito importante. Mas penso isso: há apenas um par de críticas negativas sérias em meio às toneladas de livros escritos sobre Picasso, desde que ele se tornou famoso. Um está em um livro, “Success and Failure of Picasso” por John Berger, um historiador de arte brilhante. O outro, um ensaio de Roger Kimball, por ocasião de uma exposição de Picasso em 1998. Isso é extraordinário”.

“O que estou querendo dizer é que muito da arte modernista realmente não me interessa. Ela não me diz nada sobre o meu mundo, minha experiência, ou o que esse artista sente sobre isso. Há tantos tipos de formas interessantes para pintar; eu não olho na forma como a pintura é feita, se é alla-prima ou em camadas, etc. O que exijo é uma pintura que transforme o meu entendimento do que é ser humano, para se sentir como um ser humano”.


(continua no próximo post)


















quarta-feira, 2 de setembro de 2015

John White Alexander

"Walt Whitman", John White Alexander, óleo sobre tela, 127 x 101 cm
Tempos caóticos estes em que vivemos atualmente. As dispersões são muitas, as preocupações imensas. Faz semanas que não acho inspiração para postar aqui. Há crise em vários aspectos de nossas vidas. Mas há espaços para a esperança, sempre há. Que renascem sempre que nos deparamos com uma boa surpresa, uma alegria. A minha alegria de ontem foi descobrir este pintor norte-americano do final do século XIX, com uma pintura tão bela e bem feita: John White Alexander.


John White Alexander
Os Estados Unidos têm uma grande tradição de arte realista, que atravessaram até mesmo os tempos mais terríveis da perseguição macartista, que ameaçava a todos os que tinham ideais socialistas, mas também os artistas figurativos. A pintura figurativa, durante a Guerra Fria, era considerada pintura de comunistas, pela direita norte-americana. Naqueles tempos, era propagandeada e incentivada pelo Estado Maior daquele país a arte abstrata como a verdadeira arte moderna. Em contraposição à arte soviética, que também tentava dirigir esteticamente seus artistas na direção da arte chamada de “realismo socialista”. Mas nos Estados Unidos, mesmo assim, os artistas resistiram, sendo que hoje este país é um dos maiores produtores de artistas figurativos e mesmo realistas, como David Leffel, Richard Schmid e Burton Silverman.

John White Alexander é um dos precursores destes excelentes realistas norte-americanos. No século XIX, uma grande leva de pintores deste país se mudaram para Paris com o objetivo de estudar pintura. Acompanharam as mudanças estéticas que vinham ocorrendo naquele momento na França, com o surgimento da pintura realista de Gustave Courbet e principalmente dos Impressionistas.

John White Alexander nasceu na Pensilvânia, Estados Unidos, no dia 7 de outubro de 1856. Foi pintor e também ilustrador.


"Um raio de luz solar",
John W. Alexander, óleo sobre tela
Tendo ficado órfão ainda criança, foi criado por seus avós. Começou a trabalhar com a idade de 12 anos, como telégrafo na empresa Pacific and Atlantic Telegraph Company. Lá, seu talento foi descoberto por um dos chefes da companhia, um homem de nome Edward J. Allen, que resolveu ajudar o menino a desenvolver seus talentos. Enquanto se aperfeiçoava, John White fez vários retratos da família de seu patrão, além do próprio. Com 18 anos de idade mudou-se para New York, onde foi trabalhar no semanário Harper's Weekly, como ilustrador e cartunista político. Lá já estavam trabalhando outros ilustradores conhecidos, como Abbey e Pennel. 

Após três anos de aprendizado e trabalho, ele viajou para Munique, na Alemanha, para seu primeiro treinamento formal. Como não tinha dinheiro, foi viver na pequena aldeia de Polling, na região da Baviera, onde trabalhou com Frank Duveneck. Com ele, viajou para Veneza, onde conheceu o pintor norte-americano James Abbott McNeill Whistler, que vivia entre a Inglaterra e França, de quem recebeu orientação. John White Alexander continuou estudando em cidades como Florença, na Itália, em Paris, França, e nos Países Baixos.

Voltou para New York em 1881 e logo se tornou famoso como pintor retratista. Dois anos depois participou pela primeira vez de uma exposição, no Salão de Paris de 1893. Seu trabalho foi muito elogiado e ele foi eleito para a Sociedade Nacional de Belas Artes de Paris. Recebeu diversos prêmios.

Em 1889 pintou o retrato do grande poeta Walt Whitman, a pedido da senhora Jeremiah Milbank, que também lhe encomendou um retrato do marido. Nos Estados Unidos, desde 1901 recebeu diversos prêmios e honrarias, como os de ser nomeado Cavaleiro da Legião de Honra, membro da Academia Nacional de Desenho, da American Academy of Arts and Letters. Presidiu a Sociedade Nacional de Pintores Muralistas entre 1914 e 1915.

Suas obras estão espalhadas em vários museus dos Estados Unidos e Europa, como o Metropolitan Museum of Art, o Brooklyn Museum, o Los Angeles County Museum of Art, o Fine Art Museum de Boston, além de ter um grande mural no hall de entrada do Museu de Arte do Instituto Carnegie em Pittsburgh, intitulados “Apoteose de Pittsburg”, que cobre três andares de parede.

John White Alexander morreu em Nova York em 31 de maio de 1915.

Abaixo, algumas de suas lindas pinturas:


"Repouso", Alexander, 1895, 132 x 161 cm, Metropolitan Museum of Art, N.Y.
"Painel para sala de música", Alexander, 1894, 197 x 94 cm, Detroit Instituto de Arte
"Memórias", Alexander, 1903, 158 x 132 cm, Brooklyn Museum
"Paisagem", Alexander, 1890, 77 x 114 cm
"Althea", Alexander, 1898, 161 x 133 cm, Coleção particular
"Isabela e o pote de manjericão", Alexander,
1897, 192 x 92 cm, Metropolitan Museum of Art
"Estudo em preto e verde", John W. Alexander, óleo sobre tela,
50 x 40 cm, Metropolitan Museum of Art
"Um momento preguiçoso", Alexander, 1885, 86x66 cm, Coleção particular
"Preto e vermelho", Alexander, 1896, 120x90 cm, Coleção particular
"Anna Palmer Draper", Alexander, 1888, 183 x 122 cm, Coleção particular

segunda-feira, 22 de junho de 2015

Francisco de Zurbarán, um novo olhar

Detalhe de natureza-morta de Zurbarán
Autorretrato
O Museo Thyssen-Bornemisza de Madrid, Espanha, está apresentando, desde 9 de junho, uma exposição retrospectiva da obra do pintor espanhol Francisco de Zurbarán, intitulada "Zurbarán, una nueva mirada". Ele é um dos pintores mais importantes do Século de Ouro espanhol. O museu conseguiu juntar, entre as obras expostas, aquelas que são pouco conhecidas e mesmo as que nunca haviam sido expostas na Espanha. Ele foi colega de Diego Velázquez e, junto com ele, tem sido muito reconhecido nos dias atuais pela qualidade de sua pintura e pelo seu estilo sensível de pintar.


"Santa Margarida", Zurbarán, 1631,
National Gallery de Londres
Francisco de Zurbarán nasceu em 7 de novembro de 1598, na pequena vila de Fuente de Cantos, em Badajoz, região da Extremadura.

Entre 1614 e 1617 estudou pintura em Sevilha com Pedro Díaz de Villanueva. Conheceu, no mesmo período, os famosos - na época - mestres de Diego Velázquez, Francisco Herrera e Francisco Pacheco. Fez amizade com Velázquez e Alonso Cano, seus contemporâneos, e ainda jovens aprendizes como ele. Após alguns anos de aprendizagem fecunda em diversas áreas, Zurbarán voltou para sua cidade natal, sem se submeter ao exame profissional do grêmio sevilhano de pintores. Isso acabou sendo lhe cobrado mais tarde.

Depois de um tempo em sua terra, Zurbarán mudou-se para Llerena, onde viveu de 1617 a 1628. Se casou e teve o primeiro filho ainda muito jovem. E já recebia muitas encomendas para pinturas em conventos e igrejas. Infelizmente, todas as pinturas da primeira etapa do pintor Zurbarán foram perdidas. Ele também recebeu encomendas vindas dos padres dominicanos de Sevilha, assim como de outros clérigos daquela cidade. Em duas cenas da vida de São Domingos, que está na igreja de Santa Madalena em Sevilha, os estudiosos de sua obra observam que há a presença de diversos assistentes do pintor, o que era razoavelmente comum, quando se tratava de pintar obras em formato grande.


A partir de 1629, oficialmente convidado pelo conselho municipal de Sevilha, ele se instala definitivamente naquela linda cidade da Andaluzia. No mesmo ano, pintou quatro telas importantes para o colégio de São Boaventura, telas estas que atualmente se encontram em museus da França e da Alemanha. Começo, então, o período mais rico de sua carreira. Com uma pincelada forte e expressiva e seguindo à risca os desejos dos seus clientes católicos, Zurbarán era, por isso, muito procurado para ilustrar cenas religiosas pelos clérigos da Contra-Reforma espanhola, em pleno século de ouro espanhol. Todos os clérigos da Andaluzia e Extremadura lhe procuravam: os jesuítas, os dominicanos, carmelitas, trinitários, etc. 

Com tanto prestígio, acabou sendo convidado, em 1634, para participar da decoração do grande salão do palácio do Bom Retiro em Madrid. Diz-se que talvez isto tenha sido sugerido por Velázquez, seu amigo. Lá, ele foi responsável pela pintura dos “Trabalhos de Hércules”, além de duas telas grandes com temas históricos. Estas telas estão no Museu do Prado, que pude observar de perto em minha última viagem a Madrid, neste mês de maio.


De volta a Sevilha, Zurbarán continuou seu trabalho para os padres. Quase todas as pinturas desta época estão bem conservadas e espalhadas por vários museus do mundo, dos Estados Unidos à Polônia.

Eu pude ver de perto no Museu de Belas Artes de Sevilha várias pinturas de Zurbarán, entre elas três telas que foram feitas para a sacristia da igreja de Santa Maria de las Cuevas.  A pintura de Zurbarán possui uma grande plasticidade nas formas, uma forma de distribuir as luzes de uma maneira que cria harmonia entre as diversas tonalidades. Ele foi um dos pintores que recebeu influência de José Ribera, e por isso grande parte de seu trabalho é bastante marcado por um estilo “tenebrista” (com fortes sombras bem marcadas).

Depois de 1650, Sevilha, que até então era uma cidade muito próspera que atraía comerciantes e artistas de vários lugares, passou por uma profunda crise econômica. Ainda por cima, milhares de pessoas morreram na crise da Peste de 1649. A cidade foi reduzida pela metade. O filho de Zurbarán, que era seu principal colaborador na pintura, também morre. As encomendas rarearam. Por outro lado, uma série de ordens religiosas que estavam se estabelecendo no “novo mundo”, nas Américas, começaram a lhe enviar solicitações para pinturas. Sem poder mais viver em Sevilha, Zurbarán mudou-se para Madrid em 1658. Levou com ele sua terceira esposa e a única filha sobrevivente à peste (teve três filhos). Em sua última etapa, Zurbarán pintou pequenas telas, executadas de forma muito refinada. Sempre com temas de devoção religiosa. Sua pincelada estava mais suave.


"São Francisco com a caveira nas mãos",
Zurbarán, óleo sobre tela, 1658
Envelhecido e doente, Zurbarán pintou sua última tela em 1662. Morreu em 1664 em Madrid, após uma longa enfermidade que lhe fez gastar todo o dinheiro recebido nas encomendas e que estava guardado. Deixou sua família empobrecida, mas sem nenhuma dívida.

Em sua obra nota-se que ele, mais do que nenhum outro, soube retratar a vida monástica com grande realismo e muita sensibilidade. Seus monges são de um realismo que até hoje impressionam; assim como é incrível como ele pintou monges em estado de êxtase, meninos santos, moças onde se vê seus olhares inocentes e cândidos, sem teatralidade, sem exagero, simples… Não criou espaços imaginários, não fez escorços, resolveu tudo de forma simples. Suas composições, sim, são muito bem pensadas, calculadas. A espessura dos tecidos que ele pinta são muito reais, assim como as dobras dos tecidos, que ele trabalhava paciente e majestosamente. Até mesmo suas naturezas-mortas as mais simples são profundamente poéticas, sublimes, porque ele dava a elas a mesma atenção dadas aos temas mais sagrados. Zurbarán é comovente!

Termino mais uma vez citando o poema de Théophile Gautier, de 1845:

“Monges de Zurbarán, brancos cartuchos que, na sombra
passais silenciosos sobre as lousas dos mortos
murmurando o “Pater” e as “Ave” sem nome.
Que crime expiais para tanto tormento
fantasmas tonsurados, verdugos pálidos…
para tratá-los assim, que foi feito de teu corpo?”

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Mais algumas imagens de pinturas de Francisco de Zurbarán:


Detalhe de pintura de Zurbarán
Detalhe de pintura de Zurbarán
Natureza-morta de Zurbarán
"São Serápio", Zurbarán, 1628, Museu de Conectcut, EUA
"Defesa de Cádiz contra os ingleses", Zurbarán, 1634, Museu do Prado
"Aparição de São Pedro a São Pedro Nolasco", Zurbarán, 1629, Museu do Prado
"São Hugo no refeitório dos cartuxos", Zurbarán, 1630-35, Museu de Belas Artes de Sevilha
"Sagrada família", de Zurbarán