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sexta-feira, 29 de julho de 2016

A percepção da "coisa"

"Vênus ao espelho", Velázquez
“Esta coisa é a mais difícil de uma pessoa entender. Insista. Não desanime. Parecerá óbvio. Mas é extremamente difícil de se saber dela. Pois envolve o tempo. Nós dividimos o tempo, quando na realidade não é divisível. Ele é sempre e imutável. Mas nós precisamos dividi-lo. E para isso criou-se uma coisa monstruosa: o relógio.

(...) O relógio de que falo é eletrônico e tem despertador. A marca é Sveglia, o que quer dizer “acorda”. Acorda para o quê, meu Deus? Para o tempo, para a hora. Para o instante. Esse relógio não é meu. Mas apossei-me de sua infernal alma tranquila.

(...) Estou escrevendo sobre ele mas ainda não o vi. Vai ser o Encontro. Sveglia: acorda, mulher, acorda para ver o que tem que ser visto. É importante estar acordada para ver."

Clarice Lispector, em “O Relatório da Coisa”

Começo este texto sobre a percepção humana citando Clarice Lispector, a grande escritora brasileira que tem a capacidade de nos fazer enxergar - muitas vezes com certa angústia - o que há para ser visto do mundo...

Sim, porque não enxergamos direito.

"Autorretrato", Chardin, 1771
A visão humana ainda não se desenvolveu de forma plena ao longo de nossa evolução, segundo afirmou Harold Speed em 1924, no livro “Oil paintings techniques and materials”. Na arte - diz ele - muito mais é transportado à mente pelo olho do que imagens e sensações de cor. Mas pouca gente consegue ter consciência disso. Em geral, as pessoas veem menos do que há para ser visto. Diz ele que percebemos o mundo mais pelo toque do que pela visão e usamos o olhar apenas para conferir rapidamente a forma das coisas, muito mais do que as cores. Ao invés de enxergarmos as massas de cor, notamos mais a aparência sólida das coisas. A cor local de algum objeto qualquer sempre vai ser a forma como as pessoas descrevem os objetos, dizendo, por exemplo: “este vestido é verde”, ”esta mesa é vermelha”, “o céu é azul”, “as nuvens são brancas”... Só que a cor local varia enormemente ao longo do dia; mas ninguém descreve as diversas tonalidades de azul, amarelo, vermelho, ou seja, os valores de iluminação.

Muito lentamente temos desenvolvido a faculdade da visão, ao longo da evolução humana, enfatiza Harold Speed. “Abrimos os olhos gradualmente”.

Primeiro, desenhamos linhas que preenchemos com cor local. Muito tempo depois na história começamos a fazer os sombreamentos para indicar a forma e o volume das coisas de forma simples. Isso só aconteceu com o aparecimento do pintor italiano Botticelli, que viveu entre 1445 e 1510! Conseguir indicar a Luz e a Sombra dos objetos e figuras foi a grande descoberta técnica do século XV! Em seguida, incluímos as leis da perspectiva com os estudos de Masaccio e Leonardo da Vinci, que criou a técnica do sfumato, ou seja, a transição de valor entre a sombra e a luz em degradée, para dar mais volume às figuras.

Depois, ao longo dos últimos séculos, evoluímos para uma técnica que leva mais em conta o movimento das massas de cor e sua relação com a luz, do que os delineamentos alisados da arte acadêmica, da qual um dos maiores mestres foi o francês Jean Auguste Dominique Ingres. Ticiano introduziu esta forma de pintar, assim como Velázquez na Espanha, com pinceladas que se tornam livres das formas das coisas. Os pintores impressionistas do final do século XIX romperam com a forma delineada “onde erigimos nosso edifício técnico“ (Speed) e passaram a ver o mundo como padrões de cor. Na evolução da visão dos artistas seus olhos não enxergam mais objetos separados no espaço, como entes individuais e sem relação alguma com o seu entorno.

Mas… QUEM enxerga isso?

Muitos poucos!

Detalhe de pintura de Botticelli
A imensa maioria das pessoas ainda se liga na forma dos objetos e não importa se uma pintura segue a receita do delineamento acadêmico ou se ela tem seu foco nas massas de cor e valor. As observações vão ser sempre na mesma linha: céu azul, nuvem branca, mesa quadrada, mar verde, sol amarelo...

É preciso aprender a VER o mundo, pois a maioria não o vê:

“O espírito rítmico que pulsa através do universo e sustenta toda a vida mexe no fundo  do nosso ser e nos impele a buscar relação com a realidade invisível que espreita por trás do véu das aparências”, diz ainda Harold Speed. É este o estímulo básico do pintor. É, como diz James Abbot McNeill Whistler, artista norte-americano do século XIX:

“A Natureza é o teclado no qual o pintor interpreta”.

O que Clarice Lispector nos propõe, assim como Leon Tolstoi, o escritor russo, é o exercício da experiência do despertar. Despertar das banalidades do nosso cotidiano que está absolutamente impregnado de sentidos que não mais percebemos. Resgatar o olhar que se espanta com as coisas, recusando - mesmo que seja apenas como um exercício episódico - recusando as certezas. As banalidades, as trivialidades do dia a dia não podem obscurecer nossa percepção. É preciso pressentir o mistério aonde o óbvio parece dominar. É preciso desfazer os sentidos pré-determinados, tornados automáticos, e dirigir-se a horizontes inesperados; recusar os nomes impingidos às coisas pois as coisas não se resumem a seus nomes! 

“Acorda, mulher, acorda para ver o que tem que ser visto”, clama Sveglia a Clarice.

Pintura de Nicolai Fechin
Ir além do sentido já dado. Prestar atenção. Atenção. Parar e ver. Ver. Enquanto vemos somos vistos, pois a percepção é uma via de mão dupla, como nos mostram as observações científicas do mundo subatômico, onde as cadeias de relações entre tudo torna impossível um experimento que não sofra interferência do observador: “a realidade invisível que espreita por trás do véu das aparências” (Harold Speed).

Exatamente no ano de 1917 o escritor russo Victor Borissovitch Chklovski (1893-1984) publicou um texto intitulado “A Arte como procedimento” onde ele começa citando a frase “a arte é pensamento por imagens”. Neste texto, desenvolve a ideia que o tradutor brasileiro chamou de “Singularidade” e numa tradução francesa se dá o nome de “Estranhamento”. Esse conceito de Chklovski inspirou a estética teatral de Bertolt Brecht, por exemplo. Chklovski era amigo do poeta Maiakovsky e do escritor Maximo Gorki.

Segundo sua teoria, “o procedimento da arte consiste em obscurecer a forma, em aumentar a dificuldade e a duração da percepção” o que tem o efeito de causar um sentimento de estranhamento, como a visão de um estrangeiro. As imagens, segundo ele, agrupam objetos e suas funções heterogêneas e explicam o desconhecido pelo conhecido. Para ele, há que se fazer um resgate da Singularidade das coisas.

Mostra Chklovski que ao longo dos séculos as imagens pouco se alteram. Uma montanha ainda está lá (pelo menos as grandes), cadeiras e mesas servem do mesmo jeito, assim como camas, mares, pores de sol, planetas, céu, fogo… o ser humano… Todo o trabalho do artista é acumulação e revelação de novos modos de mostrar as mesmas coisas. Mas a cada vez que olhar, ver como se fosse novo!

“Se examinarmos as leis gerais da percepção - diz Chklovski - vemos que uma vez tornadas habituais, as ações tornam-se também automáticas. Assim todos os nossos hábitos fogem para um meio inconsciente e automático; os que podem recordar a sensação que tiveram quando seguraram pela primeira vez uma caneta na mão ou quando falaram pela primeira vez uma língua estrangeira e que podem comparar esta sensação com a que sentem fazendo a mesma coisa pela milésima vez, concordarão conosco”.

"Cristo e a tempestade", Rembrandt
Pois a Arte libera os objetos do nosso automatismo perceptivo:

- “Para devolver a sensação de vida, para sentir os objetos, para provar que pedra é pedra, existe o que se chama Arte”.

- “O objetivo da arte é dar a sensação do objeto como VISÃO e não como reconhecimento” (grifo meu)

- “O ato de percepção em arte é um fim em si mesmo e deve ser prolongado; a arte é um meio de experimentar o devir do objeto; o que já é “passado” não importa para a arte”.

Chklovski diz que o escritor Leon Tolstoi é um exemplo de artista que vê e mostra os objetos fora de seu contexto e de seu automatismo. Ele viola o ritmo automático, leva à não previsibilidade. Ele jamais se contenta em usar uma palavra que mantenha o leitor em sua posição mais cômoda. Não, ele arranca o leitor do movimento automático dos olhos sobre o livro. Se o leitor está distraído, não acompanha o texto de Tolstoi.

Um leitor distraído e acomodado não lerá com tranquilidade Clarice Lispector. Ela leva às entranhas... Um leitor ansioso jamais lerá "Grande Sertão: Veredas", de Guimarães Rosa. Há que se penetrar no mundo profundo do linguajar do sertão.

Um dos papeis do artista é, então, arrancar os cômodos de seu comodismo, obrigar as pessoas a tropeçar nas quebras de ritmo. Vivemos em um mundo que nos leva aos condicionamentos, ao automatismo cotidiano onde criamos nossa rotina robótica: acordamos, tomamos banho, café, pegamos o transporte, vamos ao trabalho (muitas vezes automático por si), almoçamos, conversamos trivialidades, vagamos pelas ruas com smartphones nas mãos e na atenção principal, retornamos a casa, vemos (ou não) tv, nos relacionamos com a família, dormimos… Fazemos enriquecer uma minoria, porque este automatismo todo interessa, e muito, ao sistema capitalista vigente...

O artista, então, é o que cria obstáculos, é o que surpreende, o que arranca do automatismo, mesmo que seja mostrando que “uma pedra é uma pedra”. E mostra que as as coisas estão diante de nós. Basta ver!

Paisagem com pedras de Gustavo Courbet
"Pescador no mar", William Turner
Natureza-morta de David Leffel
Pintura de Anders Zorn
"O Saltimbanco", de Antonio Mancini
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"Outra Margarida", Joaquin Sorolla
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"Lavabo", Antonio Lopez
"Sinfonia em branco", James McNill Whistler

terça-feira, 19 de maio de 2015

Os retratos

Palácio Real de Madrid
Hoje, ao contrário de ontem, fez friozinho o dia todo. Venta muito em Madrid e hoje as correntes de vento não pararam.

De manhã, fui direto ao Palácio Real, que fica na parte mais antiga da cidade. Em seus princípios, Madrid ia de lá até a Puerta del Sol, que fica perto. Antes tinha mesmo uma porta que abria para dentro da cidade rodeada de uma muralha. Era lá que o sol se punha todos os dias, depois de ter nascido do lado do palácio, começo de tudo. O mundo era menor, ainda mais para o rei que se escondia nesse canto.

Nas portas do Palácio Real
O palácio real é enorme, como todo palácio deve ser. Parece que conta com cerca de 2.800 quartos. Nada mal... Mas seu luxo não chega aos pés de Versalles, claro. Mesmo assim, dá pra ver que todo o luxo e grandeza das aristocracias francesas também foram vividos em terras espanholas, cujos reis e rainhas casaram-se ao gosto da política com soberanos de países europeus, incluindo a França.

Fui ver a exposição "El Retrato en las coleciones reales", que acontece dentro do Palácio. São pinturas e esculturas feitas por artistas desde o século XIV até 2014, representando reis, rainhas e suas famílias. Artistas como José Ribera, Diego Velazquez, Francisco Goya, Joaquim Sorolla e o pintor vivo Antonio López foram contratados para retratar reis e rainhas. Além de muitos outros, conhecidos e desconhecidos, espanhóis e estrangeiros. Após uma longa série de retratos que cobrem do século XV até o XIX, salta aos olhos, de forma confortável e inovadora, o retrato de Alphonso XIII pintado por Joaquin Sorolla em 1907. Pura luminosidade! Como gosto da luz deste pintor! Infelizmente não estou conseguindo colocar imagens aqui no blog pelo meu tablet... Mas colocarei quando chegar de volta em casa, em junho.

O último retrato foi o que fez Antonio López, numa encomenda que durou 20 anos pra ficar pronta. Este retrato da família real atual, do rei Juan Carlos e a rainha Sofia acompanhados de seus três filhos, pintados em tamanho natural, difere de todos os outros. Não há suntuosidade, nem luxo, nem mesmo brilho. Nem o brilho do sol do quadro de Sorolla. Parecem cinco pessoas de uma família rica qualquer, bem vestida e de forma sóbria. O ambiente não é no palácio ou em algum lugar que pareça nobre. Mais parece a oficina do artista, que é também escultor. Há uma réstea de luz no canto superior esquerdo, projetada na parede atrás da família. Mas nem brilha, apenas se reflete de forma suave. Em todos os lugares da tela, as marcas do trabalho do pintor. Nacos de coisas que se grudaram na tinta, os riscos dos lápis que serviram de rascunhos, números que Antonio López usou para marcar alguma coisa, suas pinceladas cuidadosas e outras nem tanto. Pictóricas. Tudo em volta dos reis lembra simplicidade e austeridade, mas que são as do pintor. Antonio López mede muito, calcula muito parece um matemático em sua precisão no desenho. Mas na pintura é mais intuitivo, trabalhando mais com camadas de formas (shapes) sobrepostas. O resultado é bom de ver. E não é hiperrealismo, como alguns surgirem que seja a pintura de López. Nada de hiperrealismo, nada a ver! Somente muito à distância poderia parecer, mas de perto, as pinceladas são claras, se mostram.

Rua central de Madrid
Andei um pouco pelo pátio do palácio, observei. Muitos turistas falando muitas línguas estavam por todo lado. De lá, entrei na Catedral de Madrid, ao lado do palácio. Poder temporal e poder espiritual, juntos, definindo como devem ser as coisas na terra. Fui em direção à igreja de São Francisco, onde tem uma pintura de Goya. Mas estava fechada. Era hora da siesta... Até os padres são filhos de Deus...

Almocei e fui encontrar Juan Argelina, um amigo que conheci aqui em 2013. Ele é professor de História da Arte em uma escola pública de Madrid. Dá aulas para adolescentes do ensino médio. Conversamos por mais de três horas, num café na Plaza de Sant'Ana. Conversa boa, boa, boa! Ele conhece tudo sobre Madrid, sobre a Espanha, desde política até arte. Está feliz com o surgimento do partido-movimento Podemos, liderado por Pablo Iglesias, um jovem de 36 anos, idealista, que quer fazer política de forma totalmente nova e de acordo com o mundo atual. Mas falamos muito de arte também. E ouvi muitos dos causos que Juan contou.

Mas a conversa com Juan fica para o próximo post. Aqui já são 22h e preciso dormir. Amanhã acordo cedo e pego o trem para Toledo. El Greco me aguarda.
Um dos lugares mais antigos da cidade de Madrid

sexta-feira, 17 de abril de 2015

Antonio López: pinto porque é vida, não porque é bonito


O pintor Antonio López pintando na praça Puerta del Sol em Madrid
Antonio López García é um pintor e escultor espanhol, nascido na pequena cidade de Tomelloso no dia 6 de janeiro de 1936. Filho de camponeses, era o mais velho de quatro irmãos. Desde cedo demonstrou muito talento para o desenho e teve como seu primeiro mestre, seu tio, o pintor paisagista António López Torres.

Antonio López
Aos 13 anos de idade, viajou para Madrid para estudar na Academia de Belas Artes de San Fernando, aonde ingressou em 1950 e permaneceu até 1955. Antonio López e outros de seus colegas de formação formaram um grupo que mais tarde ficou conhecido como Escola Madrilenha. Após finalizar seus estudos na Academia San Fernando, ganhou uma bolsa para uma viagem à Itália, onde pode ver de perto as pinturas italianas do período do Renascimento. Esta viagem à Itália o fez valorizar ainda mais a pintura espanhola, que conhecia muito bem, pois era frequentador assíduo do Museu do Prado. Antonio López tem sido, até os dias de hoje, um grande admirador da obra do pintor Diego Velázquez.

Suas primeiras exposições individuais aconteceram em 1957 em Madrid, lugar onde vivia. Em 1961 casou-se com a pintora María Moreno, que conheceu na academia. Tiveram duas filhas, María e Carmen. Ele também foi professor de pintura na Academia San Fernando de 1965 a 1969.

Ao longo de sua carreira, Antonio López tem recebido diversos prêmios, como o Príncipe de Astúrias de Artes, de 1985. Desde 1993 é membro da Real Academia de San Fernando. Em 2006, recebeu o Prêmio Velázquez de Artes Plásticas. Em 2012 recebeu outro prêmio, o Prêmio Príncipe de Viana da Cultura.

Em 1994 recebeu a encomenda de pintar a família real, tela que ficou pronta 20 anos depois, entregue exatamente no final do ano passado, 2014. Esta obra está aberta à visitação pública no Palácio Real de Madrid, na sala de exposições temporais, numa mostra intitulada: O retrato nas coleções reais. De Juan de Flandes a Antonio López”. Além desta pintura, outras 120 obras de artistas como Francisco Goya e Velázquez estão em exposição.

"La Gran Via", pintura de Antonio López
Antonio López costuma dizer que as obras de arte “têm que estar em algum lugar” para serem vistas, seja em espaços públicos seja reduzidas a espaços privados, pois é bom que qualquer pessoa possa ter em sua casa a obra de algum artista.

Sobre o estado atual da pintura, ele tem dito a jornalistas espanhois que “é uma incógnita”, uma vez que “as coisas em que acreditávamos de pés juntos estão vindo abaixo”. Mas acrescenta que somos hoje mais livres do que “no tempo de nossos avós, mesmo que nos atormentemos com o fato de não sabermos muito bem para onde estamos indo”.

Sobre seus atuais projetos, o pintor assinala que está trabalhando numa escultura que lhe foi encomendada, além de outros quadros, entre eles uma pintura de sua família. “Vou pintando um pouco o mundo que me rodeia”, diz ele, que é um artista realista contemporâneo.

Há alguns dias assisti, no Youtube, a uma Conferência com Antonio López dentro do II Ciclo de Criação de Empresas Culturais, que aconteceu em 2011 na Universidade Carlos III de Madrid. Respondendo a questões colocadas pelo público presente, Antonio López vai mostrando seu modo de trabalhar e de pensar a arte no mundo atual.

Fiz um resumo dos temas principais dessa Conferência, em tradução livre, que alinho abaixo:

A pia e o espelho, Antonio López
Sobre sua vida e seu trabalho, se pensa em escrever uma autobiografia:

Após pensar um pouco, Antonio López responde que tem muita dificuldade em relatar como foi seu trabalho desde 1993 até hoje. 1993 é uma data importante para ele, em termos de seu trabalho. Ele acrescenta que trabalha em muitas coisas ao mesmo tempo, em várias pinturas e esculturas.

Sobre sua biografia, ele diz que nada há o que falar, pois a obra é que fala pelo artista. Dá como exemplo a Velázquez:

- Velázquez não abria a boca quase nunca, mas sua vida está toda relatada dentro de sua obra, de seu trabalho. Isso para mim é muito bonito! Eu acredito que na obra do artista está incluído tudo sobre ele.

E complementa que neste mundo de hoje não se esconde mais nada da vida de ninguém, se sabe muito sobre as pessoas em geral. Não há muito o que se acrescentar a nada.

Sobre Velázquez - como ele se inicia em uma pintura tão severa e acaba fazendo um canto à beleza das coisas?

Antonio López responde:

"El membrillo", Antonio López
- Isso é um mistério dos grandes mistério da arte, os caminhos a que ela conduz. Como Velázquez se inicia em Sevilha, uma cidade que parece tão alegre, com uma pintura tão séria, tão severa, herdada da pintura de Caravaggio, que era a mais terrível deste século imediatamente anterior ao dele... Dessa mirada tão verdadeiramente séria, Velázquez acaba criando um canto à beleza das coisas. Transforma sua luz. Não transforma o mais essencial, pois segue fiel a seu interesse pelo real.

- Quando vi de perto uma exposição com toda a obra de Velázquez, que iniciava com a obra feita ainda quando ele morava em Sevilha e terminava com o quadro “As Meninas”, pude ver que ele é o mesmo homem, porém ao longo de sua carreira sacudiu de si todas as aderências, digamos, sombrias, e recupera através do conhecimento um espaço de luz sobre a contemplação das coisas - o que é um caso único.

- Ele foi além do Renascimento e da Grécia clássica, que buscavam o Belo. Mas Velázquez optou por não mentir. Ele não disse “eu vou contar uma mentira bonita a estes contemporâneos meus”, mas “vou mostrar o que também é uma desgraça, este homem prognato que ri, este ser deformado, esta Espanha feia…” Ele fez uma escolha de falar da formosura das coisas como elas são. Ele recuperou, através de sua inteligência, de sua força e de seu equilíbrio, um olhar para o mundo que vai ao encontro das dores do mundo.

- Isso ocorreu muito poucas vezes na história. Na Grécia, quando se buscava pintar uma bela mulher, um belo corpo humano, ofuscava-se as dores desse mundo. E isso influenciou a arte durante muitos séculos. Mas Velázquez via mais que uma senhora maravilhosa, via ao mesmo tempo que havia a fatalidade da vida, que havia a Peste, que as pessoas morriam jovens, que as crianças morriam…

A mesa, Antonio López
- E nos perguntamos: como se consegue, com este material, criar algo “tão sumamente hermoso de mirar”?

Ele responde a si mesmo:

-Porque o homem tem esta capacidade de relacionar-se com o mundo de maneira harmônica, senão não estaríamos aqui. Muita gente passou de maneira natural por estas épocas, na Grécia sobretudo, onde se fez uma opção pela busca do Belo. Depois, ao longo da história, em muitas ocasiões, a arte busca apenas simular o prazer. A Itália foi mestra nisso, desde Rafael em diante, pois o artista parece que existia para tranquilizar a consciência daqueles que lhes pagavam e lhes davam de comer, para alegrar-lhes a vida, para dar-lhes sinais de beleza, mostrar-lhes frutas bonitas, cenas divertidas e pintadas de maneira evidentemente admirável para que o contemplador pudesse purificar-se com toda essa “hermosa mentira”.

- Mas a arte existe para dizer a verdade.

- Então o maravilhoso de Velázquez é que, sem mentir, começa, desde sua juventude em Sevilha, tratando de descrever como era um mendigo, como era a vida, e dentro disso como ver a beleza do mundo. Isso é algo de fato milagroso, que não ocorre mais que uma vez em muito tempo, como forma revolucionária de ver as coisas, como ocorreu com Velázquez. Isso não é obra do acaso. Isso ele conquistou, porque era um homem muito inteligente, e com muito boa saúde, exterior, mas também interior. Não era como Goya, que tinha más paixões, ou como Picasso. Era uma pessoa que verdadeiramente era de um tipo superior.  Se há pessoas que são superiores a outras, como ser humano, uma delas era Velázquez. Então tudo isso ele passou para sua pintura. Se lançou sobre as penas humanas! Se havia que pintar príncipes, pintava também anões, pessoas defeituosas, que tinham problemas de saúde. E deste jeito ele falava sobretudo da beleza do mundo. Então é um fato raro, o que ocorre em Velázquez: ele se iniciou a partir de um lugar sombrio e com isso foi passando cada vez mais a um lugar mais luminoso, sem violentar nada, sem mentir, sem falsear.

Ateliê de Antonio López. Ao fundo, o retrato da família real,
que ele demorou 20 anos para concluir
Sobre as contribuições da arte espanhola:

- A arte espanhola - diz Antonio López - parte de uma visão que se baseia na nobreza do conhecimento. Se a arte espanhola tem contribuído para o mundo é com esta verdade, que o artista incorpora e conta, a partir de um ponto de vista espiritualmente elevado. Que é o olhar pessoal com sensibilidade.

- Então para mim a grande contribuição da arte espanhola é sua capacidade de aceitação das coisas em seus aspectos terrenos e até pouco relevantes. Eu penso que Miguel de Cervantes também é um pouco assim. Todos os trabalhos artísticos dos espanhois têm estado muito nutridos pela observação da vida. A arte nunca pode deixar de estar nutrida pela vida! O milagre da arte espanhola é esta capacidade que temos de colocar uma criança, ou uma mulher, ou um bufão, ou uma natureza-morta, ou uma rua ou um elemento mais ou menos relevante e fazer disso um símbolo do mundo. Isto é o que consegue a arte espanhola.

- Como consegue? Sentindo que aí - como dizia Santa Teresa d’Ávila que dizia que Deus estava nos puteiros - que em qualquer lugar há formosura, pois isso a gente o sente. Ou nesta cara de anão, ou neste rei, dá no mesmo! Velázquez é exemplar. Pintou o rei e pintou o anão no mesmo quadro. O príncipe está lá com sua nobreza e sua rigidez de quem olha do alto. Mas o anão também. Você tem que olhar para o alto onde o anão de Velázquez se encontra! Na verdade, a palavra é: ter respeito diante das coisas! Para mim esta é uma característica da arte espanhola. O respeito pelo que aparece tal e qual diante de nós sem necessidade de alinhar, de corrigir. Isso não é o que ocorreu nem na Grécia e nem na Itália, sobretudo a partir do Renascimento. Não ocorreu na França quase nunca, antes do século XIX. Nem na Alemanha, nem na Inglaterra. Na arte espanhola, a vida sempre está lá, de uma forma ou de outra, mas a vida representada com plenitude, com os elementos da cotidianidade.

Antonio López pintando uma vista de Madrid
- Isto pode ser observado através dos séculos. A nobreza desejava que se pintassem cálices de cristal bonitos, ou como na pintura holandesa, belas naturezas mortas, decorativas, para enfeitar os salões. Então os espanhois, em um momento determinado, em um momento de intuição destes que ocorre na arte, com o artista, encontrou seu lugar. Então quando encontras um lugar muito importante, até te podes mover para fora, mas este será sempre o espaço do artista espanhol. Até Goya e até Meléndez (Luis Egidio Meléndez, pintor de naturezas-mortas). Uma natureza-morta de Meléndez fala da grandeza e não da beleza das coisas reais. Aí está o segredo! Na Grécia, por exemplo, havia um sonho de beleza que não está presente na arte espanhola, como beleza em si mesma!

Como resumir as funções principais da Arte?

- A arte em verdade existe para que uns contem suas emoções a outros que as recebem. As sete ou oito  linguagens da arte (música, poesia, pintura, dança, etc) se inciaram há milhares de ano com uma função: uns criam obras às quais outros adicionam prazer em ouvir, em ver.  Durante muito tempo a arte se desenvolveu como forma de conhecimento. Até que a humanidade, ou o Capital, ou a pequenez humana de certas pessoas tomou a arte e lhe pôs a seu serviço, como se fosse natural que a arte estivesse sempre a seu serviço. Mas a Arte esteve sempre a serviço da verdade, em sua parte mais profunda. Mesmo nos tempos em que pareceu estar a serviço dos faraós, por exemplo, em sua profundidade estava a serviço da verdade. Porém, a partir do Renascimento já não estava mais a serviço da verdade, senão a serviço da vaidade de uns poucos mais ricos e poderosos. Eles queriam ver-se refletidos de uma determinada maneira, espectadores vaidosos que queriam ver umas telas pintadas de determinada maneira e que lhes dessem graça.

- E a verdade deixou de ser prioritária. Mas a grande conquista de nossa época é que o Impressionismo mostrou que o importante da arte é o que ela traz de verdadeiro. E que se não tem isso, não tem nada.

Sobre pintar:

- Quando começamos a pintar um quadro não sabemos como ele vai ser no final. É como quando um casal começa uma relação, o que vai se passar com os dois, como vai ser? Como se pode saber? Pois assim é a relação com uma pintura feita a partir do real. Quando fazes um quadro a partir da realidade, que é cambiante, e mesmo que tenhas muita experiência… como podes prever absolutamente tudo? Não há como saber tudo no processo de uma pintura. Estás criando algo pela primeira vez! Tens experiência de outras pinturas, de outros momentos, mas não exatamente do que pintas agora. Para trabalhar como trabalho eu quase não mudo muito as coisas, mas quando precisa, eu me digo que tenho que mudar. Com o quadro da família dos reis eu fiz uma quantidade de mudanças impressionante; para o mal ou para o bem, as correções e as certezas são guiadas pelo que de bom isso te motiva.

- Quando eu tive a ideia de pintar a Gran Via (uma das ruas principais de Madrid), chamei um amigo para ir um domingo quase de madrugada para vê-la. Eu não gosto de acordar cedo, para mim é muito difícil. Meu amigo então me perguntou: tens mesmo que pintar esse quadro? Eu respondi: Sim, eu tenho. Ele me olhou e me respondeu que essa era uma verdade tão real como uma enfermidade. Era uma forma de me dizer que aquilo estava acima de qualquer outra coisa para mim e que eu não tinha escolha. E aquilo me convenceu.

- Quando se faz um quadro a partir de uma fotografia, se perde toda uma parte de relação vital com o que se pinta. Se perde muito!  A fotografia cria uma dificuldade que é a de nos arrancar de dentro do tempo das coisas. A pintura que é feita a partir da fotografia é de um empobrecimento miserável. Ela não conta a verdade daquilo que está sendo pintado; a conta o fotógrafo. Mas estão todos copiando os fotógrafos. A pintura tem que ser outra coisa! Na arte, as coisas têm seu próprio tempo, e temos que nos virar dentro deste tempo. Não há saltos. A relação do pintor com o real tem que ser direta, em tempo e espaço.

Sobre sua pintura da Puerta del Sol (López está pintando esta praça muito conhecida do centro de Madrid)

- Eu conheço a Puerta del Sol desde que era estudante de arte. É um lugar por onde todo mundo passa, ela é como se fosse uma parte da casa de todos, porque sempre estamos passando por ali. Isso para mim tem um significado muito difícil de definir, porque parece um espaço feio, mas que tem veracidade. Pode ser uma pequena parte, uma coisa que até nos diminua, nessa característica de inferioridade que tem o povo espanhol e que as vezes é tão interessante. Por que Madrid não é Paris? Porque o espanhol se sente muito pobretão, está sempre um pouco abaixo do resto; esse é o aspecto que te quita, mas também te presenteia com aspectos da realidade muito inefáveis. Eu sinto que a Puerta del Sol é assim. A Puerta del Sol e Madrid, por maior que seja, sempre terá algo também pequenito, um pouco dificultoso. E isso é o retrato do povo espanhol. Eu me entusiasmo quando pinto essa coisas em Madrid, porque são a verdade nossa. Há algo aqui que me comove. Pinto para me aproximar daquela realidade.

- Velázquez representa bem essa maneira de trabalho: se pinta porque é vida, não porque é bonito! Tudo o que está cerca de ti, incluindo a ti mesmo. A vida é o único sagrado, não os conceitos! E esta é a grande descoberta do artista espanhol!

Vista de Madrid, Antonio López