segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Ron Mueck e a condição humana


Viver nesta São Paulo dos dias de hoje - com os problemas hiperbólicos de uma metrópole repleta por milhões de pessoas - talvez faça com que todos busquemos formas as mais diversas para viver nossa humanidade, relegada ao segundo plano naqueles dias em que todos lutamos para sobreviver. Nestes dias, milhares de paulistanos buscaram as dezenas de blocos para dançar seu carnaval; outros milhares fugiram, como sempre, para o litoral ou o interior; outros, buscaram os parques, os passeios na avenida Paulista, os bares e restaurantes, as salas de cinema, as salas de teatro, os concertos musicais, as exposições de arte.


Porta do Inferno, Rodin, 1880-1890,
Bronze, 635 x 400 cm
Ontem (22/02) foi o último dia para ver a exposição de esculturas hiperrealistas do australiano Ron Mueck. A mostra bateu todos os recordes de público na Pinacoteca do Estado de São Paulo: 402.119 pessoas passaram por lá, desde 14 de novembro passado. Somente a mostra da “Porta do Inferno” do escultor francês Auguste Rodin, em 2001, tinha recebido tanta gente: 300 mil pessoas! Nesta mostra de Mueck, filas se formaram durante todos os dias. Segundo pesquisa feita pela diretoria de Relações Institucionais da Pinacoteca, 80% dos que visitaram esta exposição que terminou ontem, nunca tinham ido a um museu antes. A entrada era gratuita.


Também em São Paulo, o Museu da Imagem e do Som (MIS) recebeu 410 mil pessoas entre o mês de julho passado e o começo deste ano que foram ver uma outra exposição: “Castelo Rá-Tim-Bum - a exposição”.


Tudo isto quer dizer alguma coisa… Ou muita coisa!

Fiquei pensando, durante todos estes dias, após analisar algumas imagens das esculturas de Ron Mueck: não estamos diante de um trabalho de um artista que nos provoca reflexões sobre a nossa condição humana? Para mim, suas figuras solitárias e pensativas, descritas nos mais mínimos detalhes dos pêlos e rugas do corpo humano, me fazem refletir sobre a existência no mundo em que todos vivemos atualmente. Me faz pensar sobre a condição humana, e a minha. Me traz comparações do tipo: como sou pequena em meio à multidão que, por sua vez, é tão miúda diante do sistema dominante! Mas multidão sempre se torna grande em grandes momentos da história...


Esses seres gigantes ou pequenos de Ron Mueck (sempre fora da escala humana) são reconhecidos por todos, independente de origem geográfica ou cultural, como representações de seres humanos. Isso parece óbvio. Mas será que essa representação universal da humanidade mostra o Homem Universal, independente de contexto e história? Ou cada um que vê de perto essas esculturas - enormes ou pequenas - é capaz de passar além da admiração para a contemplação, e se olhar no espelho e refletir sobre sua própria condição? Por que 402 mil pessoas enfrentaram horas de fila para ver um casal de velhos enormes, pensativos, solitários em seu mundo interior? Ou para ver uma mãe gigante com olhar cansado sendo observada pelo seu bebê pendurado no seu colo? Ou um menino grande como um titã, agachado, como se se protegesse contra alguém ou alguma coisa?


São Paulo, São Paulo… Talvez seja o fato de morar em São Paulo o que me inspire esta interpretação. Aqui não vivemos nós todos como estátuas imensas ou minúsculas, trancadas cada uma dentro do seu próprio mundo, querendo buscar saídas e andando ao encontro das multidões que nos arranquem de nossos solipsismos? Encarar quatro horas numa fila? Isso não é nenhum problema, quando buscamos uma saída, uma janela aberta para outros mundos possíveis, outra percepção do mundo e da realidade. Isto a arte pode nos dar! 

Que bom que mais brasileiros estão descobrindo essa forma de se distrair do mundo do trabalho que nos suga até a última gota! E o que é “distrair”? De certa forma é esquecer da rotina, do corre-corre, é buscar o foco em outro ponto, mesmo que seja o de se admirar com a performance técnica do autor das esculturas hiperrealistas… E entre um espasmo de espanto e outro, diante da técnica, mesmo que seja por um segundo apenas, se ver refletido nos olhos ou até na barba mal feita do artista que escancara nossa condição humana… Ou se ver, de repente, como aquele homem completamente nu sentado dentro de um barco velho e lembrar da frase do poeta português que diz que “navegar é preciso, viver não é preciso”...


Durante os últimos dias da exposição, na frente da Pinacoteca, um garoto-ator, contratado por uma organização que cuida de crianças de rua, estava de cócoras - como o garoto de Mueck - sobre um cartaz que perguntava algo como: “você se importa com seres humanos reais?” Talvez alguém, entre os que estavam na fila, tenha se incomodado com a pergunta e se perguntado porque estava ali para ver pessoas de fibra de vidro e silicone, sendo que em nossas ruas sujas do centro temos tantos espécimes reais, velhos e novos, ao gosto do freguês e para quem quiser ver. 

Mas quem quer ver hordas de zumbis noiados de crack, famílias inteiras famintas e imundas, quadrilhas de moleques pardos ameaçadores, bandos de gente sem casa e sem destino? Isso já vemos todos os dias! Isso é o nosso Real, que carregamos todos os dias em meio ao trânsito, aos ônibus insuficientes, às procissões imensas e diárias dentro dos buracos do metrô, representações reais e bem humanas da vida de gado que levamos neste sistema que nos domina… Esta é nossa condição humana atual. Aquela, a do Mueck, é a que nos distrai do dia a dia e nos faz esquecer, um pouco, da vida que corre lá fora; ao mesmo tempo, nos mostra a vida que corre dentro de nós… Arte é para isso.

Arte é para nos fazer pensar. E pensar incomoda. A arte incomoda. Nos tira do mundo pequeno da existência e nos atira no mundo grande da vida. Vida é movimento. Arte é movimento. Movimentos...


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