domingo, 24 de março de 2013

Michael e Anna Ancher

Fotos do casal Anna e Michael Ancher (Museu Skagen)
Michael Peter Ancher foi um pintor dinamarquês. Ele é muito conhecido pelas suas pinturas de pescadores e outras cenas do porto dinamarquês da cidade de Skagen, uma pequena vila de pescadores localizada numa ponta de terra ao norte da Dinamarca, bem na convergência entre o Mar do Norte e o Báltico. Terras e mares muito gelados do norte europeu. Ele é um dos artistas mais populares em seu país, apesar de pouco conhecido, pelo menos aqui no Brasil.


Michael Ancher:
Retrato inacabado de Adrian Stokes
Michael Ancher nasceu no dia 9 de junho de 1849, em Rutsker, na ilha de Bornholm, que pertence ao reino da Dinamarca. Aos 16 anos ele trabalhava como caixeiro aprendiz e em suas horas livres desenhava e pintava. Por causa do seu talento, ele foi admitido na Academia Real Dinamarquesa de Arte em Copenhagen, onde estudou entre 1871-1875. Lá foi incentivado por seus mestres a se dedicar à pintura de gênero (um tipo de pintura de cenas da vida cotidiana, do mundo do trabalho e dos espaços domésticos). 

Um seu colega de curso, Karl Madsen, o convidou para ir conhecer a vila de Skagen. Nesta pequena vila, um grupo de pintores se reuniram numa associação que eles chamavam de Pintores de Skagen. Michael resolveu se mudar para lá e se junto ao grupo de pintores, cujo ponto de encontro acontecia no Hotel Brondums, onde eles conversavam, discutiam suas ideias, mostravam seus trabalhos. Lá, Michael conheceu Anna Brondum, a filha do dono do hotel, com que se casou. Anna também era pintora.


Michael Ancher: O Afogado, 1891
Em 1879, Michael Ancher começa oficialmente sua carreira de pintor com o quadro “Será que ele vai sobreviver ao gelo?”, que representa um grupo de pescadores na praia, olhando para algum ponto no mar, preocupados com algum companheiro que ainda está no mar. Michael Ancher foi um pintor realista e as composições de suas obras são impressionantes. A Academia Real Dinamarquesa de Belas Artes dava bastante ênfase ao estudo da composição. Três outros de seus quadros de pescadores bastante conhecidos foram pintados entre 1883 e 1896: “Bote salva-vidas”, “Tripulação a salvo” e “O afogado”. 


Michael Ancher: "Será que ele vai sobreviver ao gelo?"
Ancher teve uma formação acadêmica, como era muito comum naquela época, inclusive aqui no Brasil, mas o casamento com Anna, uma pintora realista, fez com que sua arte fosse na direção da pintura figurativa mais moderna, a arte realista, que na França teve como grandes nomes Gustave Courbet e Camille Corot, de algumas décadas antes. Michael Ancher pintou uma obra figurativa moderna monumental, “O Batismo”. Um dos pintores mais admirados e preferidos por Michael Ancher era o holandez Rembrandt van Rijn.

Anna e Michael moravam numa casa que era ao mesmo tempo seu estúdio, onde trabalhavam. Sua residência definitiva foi comprada em 1884 e em 1913 um grande ateliê foi construído junto à casa. Helga, sua filha, havia nascido em 1883. Quando ela faleceu, em 1964, a casa e o ateliê, com todos os objetos da família, foram transformados numa Fundação. Depois tudo foi reformado e restaurado e em 1967 foi inaugurado o Museu Fundação Helga Ancher. O mobiliário é todo original e as pinturas de Anna e Michael preenchem as paredes do prédio, assim como as de diversos outros pintores de Skagen que participavam de seu círculo de amigos.

Michael Ancher morreu no dia 19 de Setembro 1927.


Michael Ancher: Pescadores
Anna Ancher


Michael Ancher: Anna
retornando do campo
Anna Kirstine Brøndum Ancher, nasceu em Skagen no dia 18 de agosto de 1859, onde viveu toda a sua vida até 1937.

Ela era filha de Ane e Erik Brondum, que eram donos de um hotel e uma mercearia. Ela ainda era criança, quando pintores começaram a chegar em Skagen. Eles vinham se reunir no hotel de seu pai e ela observava seus trabalhos e conversas com muito interesse. Começou a desenhar e pintar.

Em 1878 ficou noiva de Michael Ancher, com quem se casou em 1880. O casal viveu em Skagen todo o resto de suas vidas.

Anna Brondum Ancher desenvolveu sua carreira artística em um tempo em que era raro uma mulher se dedicar a isso. Assim como aconteceu com Camille Claudel, de quem falamos no post anterior. Por causa de ser mulher, Anna não teve acesso a nenhum estudo de aperfeiçoamento na Academia. Mas chegou a ter aulas de pintura em Paris no ateliê de Pierre Puvis de Chavannes, e depois em Copenhagen no ateliê de Wlliam Kyhn, que criou um curso só para mulheres. Ela estudou lá de 1875 a 1878 e seu professor - com a visão machista da época - assim que soube da gravidez de Anna recomendou que ela guardasse sua maleta de tintas e se dedicasse às tarefas domésticas...


Anna Ancher: Sol na sala azul
Mas Anna não o obedeceu e teve o apoio do marido. Ela já tinha participado de uma exposição em 1880 em Copenhagen e foi bastante admirada, sendo em seguida bastante reconhecida como pintora. Anna Ancher retratou a vida doméstica, os interiores das casas, mulheres e crianças. Suas telas são plenas de cor e luz, objetos maiores de seu interesse como pintora. Por isso, sua pintura tem muita semelhança com as pinturas impressionistas francesas, especialmente.

O seu quadro “Luz na sala azul” mostra também a sua pequena filha Helga sentada na sala azul do Hotel Brondums onde sua avó, Ane, muitas vezes gostava de se sentar. Anna pintou vários quadros com esta cena de sua mãe sentada nessa sala. Como se vê, o jogo de luz projetada na parede azul torna o quadro muito luminoso. A luz do sol na parede traz o mundo exterior para dentro da casa. Sua mãe, Ane, era muito religiosa e conservadora, mas mesmo assim apoiou os projetos artísticos da filha, concordando inclusive que ela fizesse um curso particular de pintura em Copenhagen.


Anna Ancher: Interior
Anna concentrou seus temas em cenas cotidianas, pintando pessoas ocupadas em seus afazeres domésticos, interiores, retratos de família, amigos e conhecidos. Em especial retratos de sua mãe. Mas pintou também pessoas pensativas, com o olhar distante, mas sempre telas luminosas, coloridas. Suas pinceladas são soltas, pictóricas.

O quadro “O luto” é o único de sua obra que não representa uma cena real. O quadro foi inspirado em um sonho que ela teve: ela está nua, de luto ao lado de uma cruz, no cemitério, e sua mãe a seu lado, já bem idosa. Poderia representar as diferenças entre mãe e filha. Sua mãe era muito religiosa, mas Anna, incluenciada pelas ideias revolucionárias de seus amigos artistas radicais e ateus, se via dividida entre esses dois mundos. No quadro essa divisão pode ser interpretada na mulher jovem e nua ao lado de uma mulher idosa e vestida.

Anna morreu no dia 15 de abril de 1935, em sua cidade natal.
Anna Ancher: Ane na sala azul

Joaquin Sorolla e os pintores escandinavos

Joaquim Sorolla é um pintor espanhol, cujo Museu Sorolla estarei visitando neste próximo mês de abril em Madrid e sobre o qual falarei bastante.

Mas fiz uma interessante descoberta enquanto estudava Anna e Michael Ancher: Sorolla foi influenciado pela pintura nórdica em suas obras.
Em 1889, a cidade de Paris celebra a Tomada da Bastilha com uma Exposição Universal. Foi o ano da inauguração da grande obra arquitetônica que até hoje é o maior ícone de Paris: a Torre Eiffel, concebida pelo engenheiro Gustave Eiffel. Mas nesse mesmo ano, um grupo de jovens pintores escandinavos expunha suas obras também na Exposição Universal, chamando a atenção de outros artistas e críticos, por causa da qualidade de seus trabalhos.

Claro que a França era o ponto de atração de artistas e estudantes de arte de todo o mundo naquela época e para lá também tinham ido muitos artistas e estudantes do Norte.


Joaquin Sorolla: Caminhando na praia, 1909
Sendo assim, esses pintores escandinavos que trouxeram suas telas em 1889 já haviam sido influenciados pela corrente francesa de pintura, em especial a chamada Escola de Babizon, com a pintura em plain-air e o realismo de Léon Bonnard, por exemplo. Quando estes pintores voltaram da França para a seus países, resolveram formar pequenos círculos fora dos centros urbanos maiores, como o fizerm o astistas franceses da Escola de Barbizon. E isso aconteceu na Noruega, Finlândia, Suécia e Dinamarca, terra de Michael Ancher.

Nessa exposição de Paris os maiores destaques foram: os dinamarqueses Michael Ancher, Viggo Johanssen e Peder Severin Krøyer; o norueguês Frits Thaulow; o sueco Anders Zorn e o finlandês Albert Edelfelt. Joaquin Sorolla ficou muito impressionado com a pintura destes artistas.

Sorolla estava passando férias em Assis, na Itália, acompanhado de sua mulher, Clotilde Garcia del castillo, com quem se casou um ano antes. Em seu retorno à Espanha, resolveram passar por Paris e foram visitar a Exposição Universal de 1889. Lá Joaquin Sorolla conheceu a nova pintura escandinava quando ele tinha ainda 26 anos e ainda estava se formando como artista. Sorolla, que já tinha muito interesse na arte realista, voltou para a Espanha bastante influenciado pela pintura desses artistas escandinavos. Podemos ver na obra de Sorolla o mesmo vigor dos pinceis, o colorido, os temas, a personalidade artística que se criou.

Mas falaremos de Joaquim Sorolla em breve, após minha visita a seu museu em Madrid.

Por enquanto, a minha felicidade está em ter descoberto a pintura do casal Michael e Anna Ancher.
Anna Ancher: Mulher de pescado costurando, 1890

sexta-feira, 22 de março de 2013

Camille Claudel


Desde que conheci, há algum tempo, a história da escultora francesa Camille Claudel, sempre que preciso falar dela isso me incomoda. Quando assisti, há muitos anos, o filme francês de 1988 “Camille Claudel”, senti mais do que incômodo, senti uma angústia que me fez nunca mais querer rever esse filme. Não é fácil olhar para uma mulher que sofreu tanto os preconceitos de uma época como ela e que sofreu as maiores dores da alma como ela. Fica difícil falar só de sua obra, uma escultura tão expressiva quanto tinha, por exemplo, uma outra mulher, a alemã Käthe Kollwitz. Não, não dá para falar somente de sua obra. Não dá para separar a obra da sua criadora. Não dá para separar a arte da vida.
Mas é preciso falar de Camille Claudel.


Neste ano de 2013, uma série de atividades estarão celebrando a obra desta grande escultora, resgatando sua imagem que durante muito tempo foi restrita à da louca que tinha sido amante de Rodin. Do final de março ao começo de junho, no Musée des Arcades no Hospital Central de Montfavet em Avignon, acontecerá a exposição de esculturas e pinturas com o título “Camille Claudel: de la grâce a l’exil - la femme, la folie, la creation” (Camille Claudel: da graça ao exílio - a mulher, a loucura, a criação). Além disso, há peças de teatro dedicadas a ela, inclusive aqui no Brasil, espetáculos de dança e um filme que está sendo lançado neste mês de março: “Camille Claudel, 1915”, do diretor Bruno Dumont, com a atuação da atriz francesa Juliette Binoche no papel de Camille.

Camille Claudel: busto de Rodin
Camille Claudel nasceu no dia 8 de dezembro de 1864 na pequena cidade francesa de Aisne. Ela passa sua infância em Villeneuve-sur-Fère. Era a primeira filha do casal Louis Prosper e Louise Athanaïse Cécile Cervaux. Antes dela, sua mãe teve um primeiro filho homem que morreu quinze dias após o nascimento. Após Camille, quatro anos depois, nasce Paul Claudel, que se tornou escritor e depois Louise Claudel, mais tarde musicista.


Alguns pesquisadores de sua obra e vida mais recentes destacam que desde cedo Camille começou a sentir a rejeição da própria mãe, que preferia ter tido um filho homem. Mas, do lado do pai, logo ele percebeu o grande talento da filha e foi sempre seu maior incentivador. É bom lembrar que no século XIX o mundo da arte era basicamente um mundo masculino. Às mulheres era sempre relegado um segundo lugar dentro das artes. As artistas que conseguiram se sobrepor pela qualidade do seu trabalho são raras, não só no século XIX, mas desde sempre na história da arte. Camille era uma escultora no nível da excelência de Rodin. Mas o mundo, durante muitas décadas, preferiu falar dela como de uma louca que tinha sido amante do mestre.
Camille: "Homem debruçado"
Mas voltemos à sua biografia. Seu pai, Louis Prosper, não mediu esforços para que sua filha se aperfeiçoasse na escultura, inscrevendo-a para estudar nas melhores escolas e cursos da época. Sempre com a discordância da mãe, que considerava tudo aquilo simples capricho da filha e que o pai gastava muito dinheiro com isso. Os biógrafos mais recentes destacam que Louise Cervaux foi quem internou a filha num manicômio, dias após a morte de seu pai.


Ainda menina, Camille já acalentava o sonho de ser uma escultora de sucesso. Aos 17 anos, resolveu ir embora de casa, para realizar seu sonho. Chegando em Paris, se matriculou na Academia Colarossi, uma escola voltada para formar escultores. Teve como mestres Alfred Boucher, inicialmente, e depois Auguste Rodin. Desta época é sua obra “Paul aos treze anos”.


Auguste Rodin, bem impressionado com o talento de Camille, admite-a como aprendiz em seu ateliê. Logo no início ela já se torna sua colaboradora, ajudando a executar a obra “Portas do Inferno” e o monumento “Os burgueses de Calais”. Camille fica durante vários anos trabalhando para seu mestre, por quem se apaixona. Ele lhe paga um salário de aprendiz, com o qual ela se mantém. As esculturas dos dois são muito parecidas e isso acaba aproximando-os mais.

Camille: "Paul aos 13 anos"

Começa então um caso de amor entre eles, mas Rodin não se separa de Rose Beuret, com quem era casado. Os sofrimentos de Camille, por causa disso, eram muito grandes! Acrescentava-se a isso o fato de, por ser mulher num meio artístico masculino que não admitia reconhecer seu talento, ela era acusada de copiar as esculturas de Rodin. Com o tempo, ela resolve se afastar dele, tanto pelo fato de Rodin ainda manter sua relação com outra mulher como porque queria continuar seu trabalho de escultora sozinha. Em 1898 rompe definitivamente com ele. Ela esculpe, nesse tempo, “A Idade Madura”, hoje exposta no Museu D’Orsay de Paris.

Muito triste e decepcionada por ter descoberto que não tinha passado de uma aventura na vida de Rodin, ela passa a alimentar um sentimento estranho e duplo por ele: amor e ódio. Enquanto isso trabalhava e vivia na mais completa solidão. Mas nunca conseguiu se desligar emocionalmente dele. Um amigo, Eugène Blot, resolve organizar duas exposições com as obras dela, pensando em obter com isso o reconhecimento público para ela, assim como um apoio financeiro. Seu trabalho foi bem recebido e muito elogiado pela crítica. Mas ela já estava doente e já não dava mais bola aos elogios. Lembranças ruins do passado não paravam de atormentá-la, misturando sentimentos em relação à rejeição de sua mãe e ao abandono do homem que ela amava, Auguste Rodin. Em seus delírios, ela achava que Rodin iria roubar suas obras e expô-las como suas. Já estava paranóica e esquisofrênica. Chorava muito frequentemente e falava em suicídio. Seu abatimento físico e psicológico eram muito grandes.

Camille: "Abandono"
No dia 3 de março de 1913, seu pai, a pessoa a quem ela tinha sido mais ligada em sua vida, morre. Camille piora de sua depressão e numa crise de fúria começa a gritar e quebrar tudo à sua volta. Sua mãe a interna no dia 10 de março, apenas uma semana após a morte de seu pai, no manicômio de Ville-Evrard. Com o advento da I Guerra Mundial ela foi transferida para o hospital de Montdevergues, onde ela viveu os últimos 29 anos de sua vida. Camille Claudel morreu com quase 79 anos de idade, no dia 19 de outubro de 1943.

Podemos pensar nela hoje não só como uma grande artista, mas como uma heroína, uma mulher com a coragem de enfrentar um tempo pleno de preconceitos contra as mulheres. Mas sua fortaleza escondia uma grande fragilidade e Camille pagou com sua própria saúde, física e mental, os percalços de sua vida.

Camille Claudel: "Idade Madura", Museu d'Orsay, Paris

terça-feira, 5 de março de 2013

Exercícios de desenho gestual

Hoje de manhã, no ateliê de Maurício Takiguthi, fiz estes exercícios de desenho gestual com carvão e lápis-carvão. A ideia é captar o essencial da figura, com marcação dos valores e leitura dos movimentos.

Para os três primeiros desenhos, usei como referência três pinturas do artista barroco alemão Christian Seybold, que nasceu em 19 de março de 1695 e morreu em Viena em 1768. O quarto desenho foi baseado numa fotografia do artista russo Aleksandr Rodtchenko, nascido em 1891, que participou do movimento artístico conhecido como Vanguarda Russa.

Desenho gestual com base numa pintura de Christian Seybold
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Desenho de gestual com base numa pintura de Christian Seybold
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Desenho de gestual com base numa pintura de Christian Seybold
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Desenho de gestual com base numa fotografia de Aleksandr Rodchenko

segunda-feira, 4 de março de 2013

Pintura e Poesia

Meu desenho do "Au Lapin Agile", começado em 2011, terminado em 2013
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O cabaret mais velho de Paris, o Au Lapin Agile (que pode ser traduzido por "Coelho ágil"), ainda hoje funciona no mesmo local, no bairro de Montmartre. A história do próprio bairro está ligada a este local, pois por lá passaram, e ainda hoje passam, poetas, pintores, escritores, comediantes, músicos, cantores, escultores. Por lá passaram os pintores Pablo Picasso, Maurice Utrillo, André Derain, George Braque, Amedeo Modigliani, o poeta Guillaume Apollinaire, o cartunista Caran d'Ache, e muitos outros.

O local foi adquirido em 1886 pela dançarina de cancan Adèle Decerf, conhecida então como "a mãe Adèle". Para lá, ia Henri de Toulouse-Lautrec, artista francês que desenhava e pintava a vida dos cabarés de Paris, entre os quais o Chat Noir. Este pintor também imortalizou um dos antigos donos do Au Lapin Agile, Aristide Bruant.

Semana passada, um amigo - o poeta Jeosafá Fernandes - me presenteou cantando a velha música francesa "La Bohème" e em seguida fez uma tradução livre da música, que copio abaixo. Isso me trouxe à memória um sketch que fiz em frente ao "Au Lapin Agile" em 2011. Fiz uns rabiscos a lápis, mas como não tive tempo de terminar in loco, acabei finalizando-o em nanquin hoje. Os cabarés de Paris e o bairro de Montmartre são repletos de histórias de artistas de todos os naipes, dos pintores aos poetas, dos cantores aos dançarinos. Uma parte da biografia de muitos deles se passou aí, especialmente a de Henri de Toulouse-Lautrec, um artista baixinho, quase anão, que registrou com suas pinturas e desenhos a vida dos boêmios de Paris.

Tudo a ver com "La Bohème", uma história de um desses pintores pobres moradores de Montmartre. Obrigada, Jeosafá!

Desenho de Toulouse Lautrec:
Aristide Bruant em seu cabaré
LA BOHÈME
(tradução livre de Jeosafá Fernandes Gonçalves)

Eu falo de um tempo que os de menos de vinte anos não podem nem sonhar como foi. Montmartre nessa época era um paraíso de lilases estendidos sob a janela da nossa quitinete, e se o que a gente pagava, sempre atrasado, por esse quarto minúsculo fosse ainda um absurdo, foi lá que a gente se conheceu, eu, sonhador de barriga vazia e você, que posava para meus retratos a óleo vestida só com água de colônia.

Ah, boêmia! A boêmia a nos gozar: vocês são uns sortudos!
Ah, boêmia, nós não comíamos mais do que uma vez a cada dois dias!

No café do lado éramos uns bêbados em busca da glória, só gente muito vulgar corre atrás da grana o tempo todo. Embora uns pés rapados, o estômago a roncar de fome, não perdíamos a esperança na vitória da arte. E, nossa, isso às vezes acontecia!, quando em um restaurante chulé ficávamos diante de um prato quente e suculento de comida comprado com a venda de um mísero quadro, em vez de rezar antes de comer, nós recitávamos versos dos nossos amigos poetas, que ambulavam pelas ruelas vendendo seus livretes de mão em mão. Ah, boêmia!

Ah, boêmia! A boêmia a dizer: você é tão linda...
Ah, boêmia, éramos todos santamente geniais!
.....
Au Lapin Agile,
pintura de Pablo Picasso, 1904
A coisa mais comum do mundo era, diante de meu cavalete, passar a noite em claro retocando o desenho de um seio, o esboço de um quadril. E quando, não antes de clarear a manhã, exausto e exultante até a última fibra de meu ser, me sentava na banqueta de um bar infecto-contagioso diante de um café com chantily, tinha que reconhecer: como a gente se amava! como a gente amava a vida! Não só eu e você: toda nossa geração!

Ah, boêmia! A boêmia a dizer: Vivam, seus putos, você têm vinte anos, garai!
Ah, boêmia! Vivíamos de corpo e alma o clima febril daqueles dias!

Hoje, quando por distração, batendo pernas por Paris, vou parar pelos lados de nosso antigo endereço, não reconheço mais nem as paredes das casas, nem a rua onde ficou nossa juventude. Do alto das escadarias eu busco com os olhos míopes por sobre os telhados o nosso belo "ateliê", do qual nada sobrou. Com sua paisagem "reurbanizada", Mont Marte ficou triste, com ares de shopping center. Meu bem, continuo só, te amando, mas nossos lilases, ó dor, não sobrou nada deles também.

Ah, boêmia! A boêmia a dizer: quando se é jovem, é santa a loucura.
Ah, boêmia, você estava coberta de razão!