segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

A estrada aberta

Depois de Ilya Repin - estudo em óleo que finalizei neste sábado, dia 14/12, sobre a pintura original do artista russo Ilya Repin, cujo título é "Retrato do compositor Modest Petróvich Músorgski, exposta na Galeria estatal Tretiakov, Moscou, Rússia.
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2013 está terminando, este ano intenso, que exigiu muito de mim, paciência, perseverança, dedicação, mergulho mais profundo nos meus sonhos. Muito estudo, muito aprendizado à beira do meu cavalete.

Mas 2013 também me recompensou: fruto de tanto esforço, tantos e tão antigos sonhos, um deles - o maior - está se realizando: anuncio a todos os leitores deste blog, todos os seguidores, amigos, pessoas de várias partes do mundo que entram por aqui:

Está nascendo o Ateliê Contraponto!


Travessa Dona Paula, 111, a poucos metros da rua da Consolação

O Ateliê Contraponto é resultado de uma associação com mais três amigos que partilham comigo o mesmo caminho na arte figurativa: a realista. São eles: Márcia Agostini, Alexandre Greghi e Luiz Vilarinho. Nossa parceria foi sendo gestada mês a mês, ano a ano, entre as mesas de desenho e os cavaletes de pintura do Atelier de Maurício Takiguthi. Alguma semente foi plantada ali, em algum momento, quando desenhávamos ou refletíamos sobre o mundo da arte. Algo em nós ficou maduro e o fruto está se concretizando em cores muito entusiasmantes!

Nosso Ateliê Contraponto está localizado na Travessa Dona Paula, 111, em Higienópolis, entre a rua da Consolação e a Avenida Angélica. Será um espaço para aulas de desenho e pintura, mas também um espaço para exposições de artistas figurativos de São Paulo, do Brasil e de qualquer lugar do mundo. Será também um espaço para estudo e discussão dos temas mais importantes da arte na atualidade. Para isso, iremos trazer convidados entre artistas e intelectuais ligados ao pensamento artístico e cultural. Também iremos oferecer oficinas e workshops com artistas convidados, nas áreas de desenho, pintura, aquarela, escultura.

O sonho é grande, o sonho é imenso. Mas o caminho apenas começou e a estrada é longa... Mas vamos!


"A pé e de coração leve
eu enveredo pela estrada aberta,
saudável, livre, o mundo à minha frente,
à minha frente o longo atalho pardo
levando-me aonde eu queira.

Daqui em diante não peço mais boa sorte
boa sorte sou eu.
Daqui em diante não lamento mais,
não transfiro, não careço de nada;
nada de queixas atrás das portas,
de bibliotecas, de tristonhas críticas;
forte e contente vou eu
pela estrada aberta.

A terra é quanto basta:
eu não quero as constelações mais perto
nem um pouquinho, sei que se acham muito bem
onde se acham, sei que são suficientes
para os que estão em relação com elas.

(...)

A terra a se expandir
à esquerda e à direita,
pintura viva - cada parte com
a luz mais adequada,
a música a se fazer ouvir onde faz falta
e a se calar onde não é querida,
a jubilosa voz da estrada aberta,
a alegre e fresca sensação da estrada."


(Walt Whitman, Canto da estrada aberta,
em "Folhas das folhas de relva")

Feliz Natal! Feliz 2014 para todos!

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Expressionismo necessário

Músico cego, do pintor finlandês Alvar Cawén (1886-1935), 1922
Nos fins do século XIX, no norte da Europa, surge e se irradia um movimento artístico, contraposto ao Impressionismo nascido na França. Especialmente desenvolvido na Alemanha, o Expressionismo atingiu diversos setores da arte: a pintura, a literatura, o cinema, a música. Mais tarde, na mesma Alemanha, o regime nazista condenou esse movimento, considerando-o como “arte degenerada”.

O Expressionismo foi uma das primeiras ramificações da chamada “Arte Moderna”, assim como o Realismo e o Impressionismo. Sua principal característica é ter representado culturalmente aquela região da Europa, fria e nevoenta, com aquele temperamento germânico que amava “mais a beleza do caráter do que a beleza da forma”, como bem enfatiza Carlos Cavalcanti em “História da Arte”. Era a contraposição entre as sombras geladas daquele pedaço do mundo e a claridade solar e quente do mundo mais latino, também destaca o professor. Era o predomínio da emoção sobre a razão. Que nascia num mundo pleno de contradições.


Sobreviventes, Käthe Kollwitz, gravura
O engraçado é que enquanto estudava um pouco sobre esse movimento que muito me atrai - desde minha adolescência quando conheci as gravuras de Käthe Kollwitz -, li simultaneamente um artigo que escrevi há alguns anos sobre nossa poeta brasileira Cecília Meireles. O título do meu artigo - não publicado - era exatamente “As sombras de Cecília”. Cecília nasceu no começo do século XX, 1901, e antes dos 3 anos já não tinha mais nem pai nem mãe.

No pêndulo de sua existência, Cecília escrevia como se escrevesse na penumbra. Dá a impressão de que suas mãos riscavam o papel na seqüência do seu olhar que passeava no lusco-fusco do final do dia e do começo da noite. Noite sem a negritude da noite profunda, mas também sem os raios ofuscantes do dia. Noite que ainda era promessa de mistérios profundos, mas que ainda guardava resquícios de realidade, contornos da vida, detalhados pelos últimos raios do sol.


Vista de Toledo, El Greco, 1600
Mas vamos caminhando entre os artistas alemães e esta poeta brasileira, neste primeiro texto sobre o Expressionismo, que apenas pretende introduzir o assunto. Em outros textos, neste blog, já falamos sobre alguns desses artistas expressionistas.

O Expressionismo - movimento no qual não foi enquadrada a poesia de Cecília - é a própria projeção da subjetividade humana, que, do mais profundo do seu sofrimento, tende a deformar a realidade e provocar no observador as mesmas reações emocionais do artista. A visão do artista expressionista é angustiante, pessimista, assombrada por aquele mundo em mudança que já trazia as sementes da I Guerra Mundial, onde morreram milhões de seres humanos.

Enquanto isso Cecília cantava lá no seu Rio de Janeiro:

“Sombra que passas, eu sei que és sombra,
eu sei que és sombra, sombra que falas.
Não deixas passo em nenhuma alfombra
das altas, graves, eternas salas.


Mas os que choram de sala em sala,
mirando espelhos, mirando alfombras,
choram teus passos e tua fala,
e o seu destino de amar as sombras...”


Autorretrato, Otto Dix, 1913
São muito frequentes, no Expressionismo, o uso de símbolos para descrever o estado da alma dos artistas. Ao contrário da solaridade e colorido dos Impressionistas, o Expressionismo usa cores fortes, violentas, pois ele também era uma reação contra os rumos que a sociedade tomava naquele tempo. Era a arte do pintor solitário, das cores tristes, que até já podíamos encontrar bem mais atrás, em El Greco, em Goya, em Mathias Grünewald… 

Mas dois dos primeiros desses pintores nórdicos do século XIX a expressar mais sua alma do que o mundo que viam foram Vincent van Gogh e Edvard Munch. Foi um crítico de arte alemão,  Wilhelm Worringer, quem, em 1908, chamou de "expressionismo" àquela forma particular de arte.

Enquanto a fotografia substituía a pintura na descrição da realidade, os artistas expressionistas se voltaram para mostrar mais como eles “sentiam” sua própria realidade, usando sua arte como um grito contra os sofrimentos daquele mundo que esmagava as pessoas nas cidades já industrializadas, mostrando a miséria, a solidão, a pequenez do homem diante da máquina movida pelo capitalismo daqueles tempos, que trouxe consigo as guerras mortais do século XX...


Agonia, Edvard Munch, 1915
Bem como cantou nossa poeta triste que, na América do Sul, sentia as dores de todo aquele mundo, além das suas:

“Aqui está minha dor – este coral quebrado,
sobrevivendo ao seu patético momento.”

Diversos grupos de artistas surgiram na Alemanha, como a “Associação dos Artistas de Munique” (o NKVM); a “Nova Secessão de Berlim”, que gerou dois outros grupos: os “Der Blaue Reiter” (O Cavaleiro Azul) e o “Die Brücke” (A Ponte); o “Grupo de Novembro”. Do “Die Brücke” (de 1905) participaram os artistas Ernst Ludwig Kirchner, Fritz Bleyl, Erich Heckel et Karl Schmidt-Rottluff. Eles eram de Dresden.


Edvard Munch
A forte crítica social que eles imprimiram às suas obras acabaram atraindo a crítica dos conservadores, claro. Sua visão crítica do mundo acabava sendo vista como um perigo para as gerações mais novas. Ernst Ludwig Kirchner, por exemplo, pintava as ruas e a vida urbana de Berlim de uma maneira considerada ácida. Edvard Munch, pintor norueguês, resolveu mudar sua maneira de pintar depois de 1892, usando cores mais fortes para demonstrar suas obsessões com a morte e com as doenças.

Na Alemanha, país onde o Expressionismo mais atraiu artistas, o final do século XIX e as duas primeiras décadas do século XX, já em meio à I Guerra Mundial, viram nascer diversos movimentos e grupos artísticos, onde os debates e inquietações acerca daqueles momentos eram muito intensos. Max Beckmann, Otto Dix, Conrad Felixmüller, George Grosz, Ernst Ludwig Kirchner, Käthe Kollwitz, Franz Marc, Paula Modersohn-Becker e Otto Mueller eram alguns desses artistas. No Brasil, Anita Malfatti, Candido Portinari e Di Cavalcanti foram influenciados também pelo movimento dos artistas do norte europeu. Um deles veio para o Brasil e aqui trouxe as influências de seus colegas alemães: Lasar Segall.


Cena do filme "O Gabinete do Dr. Caligari"
Mas como dissemos no início, o Expressionismo não ficou só nas artes plásticas. 

No cinema, por exemplo, o filme do diretor alemão Robert Wiene, de 1919, “O Gabinete do Dr. Caligari” aparece como um dos primeiros a introduzir no cinema muitos elementos do expressionismo: grande carga de simbolismo, iluminação dramática, vestuários estranhos e personagens sombrios. 

Em seguida, surgem outros diretores seguindo essa mesma linha estética: entre eles, o grande Fritz Lang. As películas que mais representam esta época são: “Nosferatu” de Friedrich Murnau, “Metropolis” de Fritz Lang, entre outros. Era ainda a época do cinema mudo. Depois, já com o cinema falado, Fritz Lang dirigiu “M” (“O Maldito”).

E assim o Expressionismo, na Arte, mostrou um artista chocado diante desse mundo que jogava o sujeito ao seu próprio destino, nesse jogo de “salve-se quem puder” perpetrado por um sistema injusto, discriminador e assassino. Que manchava as cores do mundo com suas grandes sombras pesadas, como asas monstruosas, que varreram milhões de vidas humanas em duas guerras mundiais horrorosas. E ainda continuam nos sobrevoando, ameaçadoramente…

Mas até mesmo nesses momentos, o artista deve falar. A sensibilidade do artista está aí para nos fazer ver que, além de qualquer visão terrível, a Musa sempre canta… e nos encanta…

Como disse Cecília Meireles:

“Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias

não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico

se permaneço ou me desfaço
- não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.

Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
- mais nada”.


O sonho da razão produz monstros, Francisco Goya, gravura, 1799

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

A arte pictórica de Eugene Gruzdiev

O pintor russo Evgene Grouzdev
Tinha acabado de publicar este post no Facebook, quando tive a emocionante surpresa de saber que Eugene Gruzdiev - ou Evgeny Grouzdev, como ele mesmo assina - é um pintor de São Petersburgo! O próprio artista me agradeceu este post, tentando falar em português: "Obrigado enorme, muito escreve-se bem!!! Até embaraço-me um pouco, é muito inesperado..." Para mim também, muito inesperado e muita surpresa encontrar um pintor contemporâneo com esta qualidade de pintura! E saber que ele existe e que pratica este tipo de arte dá ainda mais a sensação de que nem tudo está perdido! 

Abaixo o meu texto, publicado ontem, quando nem sabia de que período era esse já grande mestre...

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Conheci este pintor russo no blog do pintor brasileiro radicado em São Petersburgo, Rússia, Gilberto Geraldo. Já pesquisei em todos os lugares possíveis, em sites internacionais inclusive, e não encontrei nenhuma informação sobre Eugene Gruzdiev.

Seria contemporâneo do outro grande pintor russo Ilya Repin sobre o qual já falei aqui em outro post? Seria um pintor atual? Não se sabe...

Enquanto não encontro mais o que falar sobre quem foi Eugene Gruzdiev, sua vida e sua obra, publico abaixo as imagens que capturei no blog do Gilberto Geraldo.

Por que? Simplesmente porque Eugene Gruzdiev pinta do jeito que eu entendo como pintura realista e pictórica: suas pinceladas criam impressão de movimento, ele pinta o essencial, não há contornos definidos por linha, mas volumes; as massas são grandes, ultrapassam as formas.

Nesse estilo pictórico que identifico nele, os movimentos das massas se espalham em cromas e valores. A tinta se espalha, as cores e as tonalidades se derramam buscando as profundezas, como disse há décadas Heinrich Wöllflin. Os limites se tornam fluidos; limites que não são um fim em si, são infinitos.

Tudo é jogo de Luz e Sombra, onde nem tudo precisa ficar claro. Há partes veladas, objetos sobrepostos, massas sobrepostas. Movimento. Aquilo que parece estar oculto pelas sombras do quadro, parece que “luta para entrar na luz” (Wöllflin). Não se busca extrair da cor individual toda sua força e pureza, mas criar harmonia na relação entre as cores, de modo que uma cor realce o efeito individual de outra. Contrapontos.

É esse olhar de pintor que vê o mundo como uma unidade, onde tudo se relaciona que me atraiu em Eugene Gruzdiev.

Eu acho lindo demais isso aqui embaixo!

































Vida e Arte

Estudo sobre pintura de Joaquín Sorolla,
por Mazé Leite, outubro de 2013 - óleo sobre papel telado

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Em lugar de me entregar ao status quo e às unanimidades que permeiam as mentes daqueles que querem seus quinze minutos de fama, vou fazendo meu trabalho silencioso, no meu canto em meu atelier, sabendo que enquanto pinto a vida fica menos triste, as tristezas menos cinzas, as dores menos opacas, as decepções menos frias.

Arte é resistir. Inclusive às dores da vida, como já disse aquele filósofo da maldição da vida, o Friedrich Nietzsche, que disse que "a arte existe para que a realidade não nos destrua". Repito: para que a realidade não nos destrua. Às vezes a realidade é dura! E muitas vezes me machuca...

E mais Nietzsche: "A Arte e nada mais do que a Arte! Ela é a grande possibilitadora da vida, a grande aliciadora da vida, o grande estimulante da vida".

Eu completaria: o grande alívio para a vida!

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Estudo sobre pintura de Joaquín Sorolla,
por Mazé Leite, agosto de 2013 - óleo sobre tela

terça-feira, 12 de novembro de 2013

O pensamento do artista Álvaro Cunhal

Álvaro Cunhal
“A arte é uma expressão do Belo e o artista um seu criador”. Assim Álvaro Cunhal começa o seu ensaio “A Arte,  o Artista e a Sociedade”, publicado em junho de 1996, pela Editorial Caminho, de Lisboa, Portugal. Líder revolucionário do povo português, membro do Partido Comunista, Álvaro Cunhal foi também um pensador da Arte e um artista. No ensaio em questão, ele aborda uma série de temas muito relevantes não só dentro do campo artístico, mas também no âmbito da filosofia, da cultura, da sociedade.


Álvaro Barreirinhas Cunhal nasceu em Coimbra, Portugal, em 10 de novembro de 1913. O centenário de seu nascimento tem tido muitas comemorações em Portugal neste ano.

Logo no começo do ensaio, Cunhal dedica todo um capítulo ao tema do Belo na arte, um conceito que tem sido estudado longa e profundamente ao longo da história, desde os filósofos gregos, passando pelos pensadores da Idade Média, os do Renascimento, do Iluminismo, da filosofia alemã, entre os quais se destacam Hegel e Schelling. Álvaro Cunhal diz que, a respeito do Belo, há muito mais perguntas do que respostas. Desde sempre se busca estabelecer que critérios podemos utilizar para considerar bela alguma coisa, inclusive critérios dentro do “conhecimento científico” que também tem tentado estabelecer uma origem “objetiva, fixa e imutável do Belo”.


Um dos muitos desenhos que ele fez
na prisão, por causa de suas convicções
comunistas
Mas Cunhal também diz que alguns outros filósofos “pretenderam conformar o conceito às coisas”, procurando saber como surge essa qualidade da Beleza nas coisas. Questiona ele: “Coisas ‘belas’ onde, para quem, para que classe, em que época, em que país?” Por trás desse questionamento, sua visão de que conceitos como estes não são absolutos no tempo, espaço e lugar. Como queria, por exemplo, Diderot, o pensador francês da Enciclopédia que mais tarde foi forçado a rever suas opiniões em suas “ulteriores críticas de arte”. E como pensava também Charles Darwin que, segundo Cunhal, em uma obra anterior à sua Origem das Espécies, considerava a beleza como uma “qualidade objetiva inalterável, fixa, universal e eterna das coisas”. Mas em seu livro mais conhecido, e posterior, Darwin admitiu que “a ideia do Belo não é inata e nem inalterável”.


Mas, diz Cunhal, mesmo assim essas teorias - por vezes tomadas como verdades absolutas - trazem “elementos válidos de reflexão”. Há obras de arte de valor estético universal e incontestável, que ultrapassam séculos, milênios. Ultrapassam inclusive as mais “profundas transformações sociais”, pois continuam sendo reconhecidas em seu valor. Pois há valores comuns nas coisas belas, enfatiza ele. O ser humano reage com agrado a determinados eventos e acontecimentos, com traços da reação “dos seus sentidos e das suas emoções que perduram e ultrapassam as épocas históricas”. Por isso, a beleza das coisas existe em íntima interação com a alma humana, que as aprecia. Diz Cunhal: “Beleza é um critério e um juízo humano”. Pois o mundo é belo PARA quem o observa.

Mesmo na filosofia idealista, continua o artista português, quando se fala do Belo se fala em relação à realidade. A invocação do sobrenatural por trás do Belo é feita em geral pelas religiões, procurando encontrar uma origem sobrenatural do Belo absoluto. Da filosofia escolástica, sabemos que a Beleza estava diretamente relacionada com a divindade e os filósofos cristãos deram até uma definição do Belo como ligado ao Bem e à Verdade, acrescentando uma conotação moral ao conceito.

Pintura em óleo sobre tela, Álvaro Cunhal



Mas voltando ao ensaio de Álvaro Cunhal. Numa linha de investigação oposta à idealista, o pensamento materialista “investiga a ligação do Belo com a sociedade e a sua evolução. Aponta a experiência histórica da relatividade da definição” do Belo. Essa visão materialista busca localizar a apreciação do Belo nas várias épocas históricas, nas diversas sociedades e culturas, nas circunstâncias objetivas do mundo. Diversas coisas, por serem úteis, tornaram-se belas, acrescenta. O ser humano, ao fabricar seus instrumentos de trabalho, suas moradias, seus meios de locomoção, seus ambientes, vem buscando não só aperfeiçoá-los, do ponto de vista técnico, mas também torná-los belos. Por outro lado, a arte surge como uma criação humana que dá prazer à alma:

“Seja qual for a origem que se lhe atribua, a noção do Belo é um elemento essencial do valor estético. A outra, é a beleza criada pelo homem. O artista é um criador de beleza.”


Outro "desenho da prisão"
Álvaro Cunhal diz também que complexidade, contradição e controvérsia também estão presentes quando se definem os elementos do valor estético. Ao longo do tempo, filósofos, críticos e artistas também mudam os valores estéticos de obras de arte, mesmo que haja aquelas que atravessam os séculos sendo admiradas por todos. E muitas vezes eles entram em confronto de ideias sobre valores estéticos de determinados períodos. Uma dessas grandes controvérsias tem acontecido em volta da questão “forma x conteúdo”. Muitos artistas levam mais em conta os processos formais de uma obra de arte. Outros, além da forma, também se preocupam com o “conteúdo” de seu trabalho, ou seja, que ele expresse a mensagem que ele quer transmitir, que provoque reação e sentimentos nos outros e na sociedade da qual faz parte. Muitas vezes, destaca Cunhal, os primeiros radicalizaram sua posição em defesa da forma, diminuindo o sentido e o significado do que faziam; e os segundos, por seu lado, menosprezando a forma, consideraram o conteúdo - a “mensagem” - como único valor a ser levado em conta.


Mas considerar a “forma” como valor estético é uma tautologia, diz ele, pois a forma em si já é beleza criada pelo artista. Só que o valor estético não pára aí: ele também se acha presente “naquilo que a obra de arte transmite, na mensagem que conduz, nos sentimentos que provoca”. Ambos - forma e conteúdo - são, juntos, elementos integrantes do valor artístico. E dá um exemplo:


Desenho de Álvaro Cunhal, na prisão
“Só um dogmatismo ideológico primário pode pretender que a mensagem de liberdade não é um elemento integrante do valor estético da 5ª Sinfonia ou da 9ª Sinfonia de Beethoven, a mensagem humanista no valor estético da Ressurreição de Tolstoi, a mensagem da história de libertação de um povo nos murais de Rivera e de Siqueiros.”


Ao longo desse longo ensaio de 203 páginas, ricamente ilustrado com imagens de obras de arte e de inúmeros exemplos que Álvaro Cunhal, em seu pródigo conhecimento sobre arte, retirou da pintura, da escultura, mas também da literatura, do teatro e da música, ele vai traçando um longo raciocínio sobre o papel da arte e do artista no mundo.


Vale muito a pena a leitura desse ensaio, assim como mais comentários sobre os diversos aspectos abordados por ele, coisa que pretendo ir fazendo, pela riqueza de temas que Álvaro Cunhal levanta. Por exemplo, dizendo que o que faz o entusiasmo e a entrega plena à criação por parte do artista vem de um “apelo interior”, pois isso tudo, mais do que uma opção de vida, é uma “vontade natural irreprimível” de criar, “um gosto, uma alegria”. Quem é artista sabe do que Álvaro Cunhal está falando…


Para finalizar este primeiro artigo sobre o ensaio “A Arte, o Artista e a Sociedade”:


“Arte é liberdade. É imaginação, é fantasia, é descoberta e é sonho. É criação e recriação da beleza pelo ser humano e não apenas imitação da beleza que o ser humano considera descobrir na realidade que o cerca.”

Álvaro Cunhal, óleo sobre tela

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Os Macchiaioli - realismo impressionista na Itália

MARIANO FORTUNY: Curral de touros, 1866

A Fundação Mapfre abriu em Madrid, Espanha, uma exposição, no mês de setembro, que leva àquela cidade cerca de 100 obras dos pintores italianos conhecidos como Il Macchiaioli. Os Macchiaioli foram artistas rebeldes que viveram na Florença do século XIX, especificamente por volta de 1855, todos de origem toscana, mas também haviam aqueles que vinham de Veneza e Nápoles.


GIOVANNI BOLDINI: Retrato de Diego Martelli, 1865 
Macchiaioli significa exatamente “manchista”, uma designação de cunho pejorativo que foi usado para designar o que eram esses pintores rebeldes à academia. O termo foi cunhado em 1862 por um jornalista da “Gazzetta del Popolo”, com o sentido de zombar desses artistas anti-acadêmicos da pintura italiana. Depois eles mesmos adotaram esse título e o utilizavam para designar-se. Estes artistas representaram uma renovação na pintura italiana, pois em sua poética realista romperam com o neoclassicismo e com o romantismo que dominavam as academias e ateliês italianos. Os Macchiaioli são considerados, na Itália, os iniciadores da pintura moderna italiana.


O Museu d’Orsay, de Paris, fez uma primeira mostra desses artistas italianos, contemporâneos dos impressionistas franceses. E a partir do mês de outubro indo até janeiro de 2014, esta mostra se encontra na cidade de Madrid, Espanha, patrocinada pela Fundação Mapfre.

ODOARDO BORRANI: Carroça vermelha em Castiglioncello, 1865-66


Foi no Caffè Michelangelo em Florença que um grupo de pintores, reunidos em torno do crítico Diego Martelli, deu início ao movimento. A preocupação desses artistas era com a renovação da pintura italiana. Eles criticavam fortemente o purismo acadêmico dos pintores neoclássicos e românticos, e defendiam que a imagem do real deveria ser apresentada como um contraste de cores, de sombra e de luz. Por ironia do destino, o Caffè Michelangelo ficava a poucos metros da Academia Florentina de Belas Artes, que foi recebendo pouco a pouco - da parte dos jovens macchiaioli - apelidos como “quartel de inválidos”, “semeador de mediocridade”, “cemitério da arte”, etc.


FEDERICO ZANDOMENEGHI:
Retrato de Diego Martelli com gorro vermelho, 1879
Nesse Café - diz o catálogo da exposição de Madrid - se reuniam os mais “turbulentos da cidade. Os realistas irrompiam com ímpeto desde a Via de Pucci - onde haviam comido pouco e mal na taberna de Gigi Porco - e entravam ruidosamente na Via Larga em direção ao Caffè Michelangelo. Para seus estômagos, acostumados à lenta e pesada digestão de burro cozido, e para seus nervos à flor da pele, até o café se tornava uma bebida insípida. Em agitação coletiva, misturavam rum ao café, bebida que tinha virado moda entre jovens pobres. Os alunos da Academia atravessavam a rua para não ter que cruzar com eles”.

Os jovens frequentadores do Café não só conheciam as ideias que fermentavam naquela Itália em mudança, como participavam ativamente de todo o processo, muitos deles com sacrifícios pessoais. E à mudança que eles reclamavam na estrutura da sociedade era a mudança que queriam implementar no campo da arte. Alguns deles participaram como voluntários em 1848 na Batalha de Curtatone, por exemplo. E Telêmaco Signorini, um destes pintores rebeldes, se alistou como voluntário na artilharia, em 1859. Mas em 1862, enquanto seguia a Garibaldi na tomada de Aspromonte, seu pai faleceu. Signorini escreveu em seu diário: “Aspromonte. Morre meu pai de câncer, precisamente quando eu pensava em ir para Gênova com Garibaldi. Deixo o ateliê e a casa com minha mãe e meu irmão de 11 anos. Volto a ter um ateliê na Via Salvestrina e casa fora da Porta da Cruz, na Torre Guelfa. Faço um curso em Arno com Lega, Langlade e Madier. Fundamos a Escola de Pergentina e pinto o quadro ‘Ditosas são as galinhas que não vão ao colégio’”.

TELÊMACO SIGNORINI: La sirga, 1864


Assim como ele, diversos outros foram voluntários na artilharia e participaram ativamente das campanhas de unificação da Itália. Mas passadas as batalhas e uma vez a Itália sendo unificada, esses pintores desejavam agora representar a nova Itália, como um país que se descobre a si mesmo, sua própria força, sua tradição.


SILVESTRO LEGA:
Cantando uma canção, 1867
Com a unificação da Itália como um país, o que ocorreu no século XIX, foi feita uma Exposição Nacional em Florença. Nesse período, ficou clara a divisão entre a escola acadêmica e os macchiaioli. A polêmica se estabeleceu entre eles, não só do ponto de vista artístico, mas que abrangia toda uma visão cultural e política. Para os bravos macchiaioli, não podia haver diferença entre pintar quadros e derramar sangue nos campos de batalha. Esses jovens pintores sonhavam com uma nova Itália.


A palavra “tradição” - diz a apresentação do catálogo da exposição de Madrid - podia soar como uma blasfêmia para os ouvidos dos macchiaioli. Eles consideravam que a juventude de toda a Europa deveria erradicar todos os velhos sistemas políticos, educacionais e militares, para substitui-los através da construção e do advento de uma nova era. Giuseppe Mazzini, um dos líderes e pensadores desses movimentos de rebeldia que inspiravam os macchiaioli, chegou a criar uma organização chamada “Jovem Europa”, à qual não podiam pertencer pessoas com mais de 30 anos de idade. Essa organização, mais tarde, aglutinou em torno de si as melhores inteligências democráticas, que intentavam destruir o status quo, não somente do ponto de vista de uma revolução nacional, mas sobretudo internacional. Claro que os conservadores de todas as classes detestavam essas ideias e esse líder dos jovens italianos. (Giuseppe Mazzini foi um revolucionário e patriota italiano, fervoroso republicano e combatente pela unificação da Itália, assim como Giuseppe Garibaldi.)


GIUSEPPE ABBATI: Interior do claustro de Santa Cruz em Florença, 1861-62
Mas os macchiaioli viveram e morreram na pobreza. Mantendo-se coerentes por toda a vida, eles sempre se mantiveram críticos em relação ao mundo.


Capítulo à parte merece a velha disputa sobre a relação entre eles e os impressionistas franceses, destaca o catálogo. A verdade é que eles mantiveram uma estreita, fecunda e contínua relação. O texto da exposição madrilenha complementa: “Foi talvez o destino diferente de seus itinerários que fez a diferença real entre os impressionistas franceses e os macchiaioli”. Por parte da França, um reconhecimento grande de seus artistas; da parte da Itália, o esquecimento dos macchiaioli. Enquanto esta escola foi se extinguindo, no Grand Café du Boulevard des Capucines - outro café! - em Paris, os irmãos Lumière já faziam as primeiras experiências com o cinema. Vale salientar que a pintura dos Macchiaioli teve bastante influência em cineastas italianos, como Luccino Visconti e Mauro Bolognini, que encontraram nela uma inspiração iconográfica e uma linguagem especial da imagem.


GIOVANNI FATTORI: Soldados franceses de 1859, 1859
GIOVANNI BOLDINI: Autorretrato, 1892
Participavam desse grupo dos Macchiaioli: Serafino di Tivoli, Eugenio Cecconi, Edward Borrani, Sernesi Raphael, Nicholas Cannicci, Egisto Ferroni, Adriano Cecioni, Giuseppe Abbati, Eugenio Prati, Veronese Vincenzo Cabianca, Domenico Caligo, Giovanni Fattori, Silvestro Lega e Telêmaco Signorini. Em seguida, juntaram-se nesta direção os pintores John Bartolena, Leonetto Cappiello, Vittorio Matteo Corcos, Michele Paris, Oscar Ghiglia, Francesco Gioli, Luigi Gioli, Ulvi Liege, Guglielmo Micheli, Alfredo Müller, Plinio Nomellini, Simi Filadelfo, Adolfo Tommasi, Angiolo Tommasi, Ludovico Tommasi, Lorenzo Viani, Llewelyn Lloyd e Raphael Gambogi.


Além deles, Giovanni Boldini. Em 1862, retratista já conhecido, ele se instala em Florença para completar seus estudos na Academia. Mas ele logo entra em contato com os macchiaioli e também se junta ao grupo em torno do crítico Diego Martelli, que contribuiu para popularizar na Itália os princípios do impressionismo francês.


A mostra intitulada “Os Macchiaioli - realismo impressionista na Itália”, está sendo co-produzida pela Fundação Mapfre e pelos Museus parisienses d’Orsay e de L’Orangerie. As 100 obras são procedentes de coleções públicas e particulares italianas. É a primeira exposição realizada na Espanha em torno do movimento dos Macchiaioli, que também influenciaram a pintura espanhola do final do século XIX. Entre eles, o pintor espanhol Mariano Fortuny, que terá algumas de suas obras nesta exposição.

MARIANO FORTUNY: Velho desnudo ao sol, 1863

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

O pintor holandês Carel Fabritius

Autorretrato, Carel Fabritius, 65 x 49 cm, 1645-50
Carel Fabritius é um artista holandês pertencente ao prolífico período em que viveram também outros dois gênios da pintura, Rembrandt e Vermeer. Fabritius foi discípulo de Rembrandt e teria sido o mestre de Jan Vermeer. O século XVII ao qual eles pertencem, passou para a história como o “Século de ouro” da Holanda.
Carel nasceu na cidade holandesa de Midden-Beemster, em 1622, numa família de muitos filhos. Dois de seus irmãos também se tornaram pintores: Barent Fabritius e Johannes Fabritius. De família de carpinteiros, ele, como seus irmãos, aprenderam desde cedo o ofício da carpintaria. Seu sobrenome Fabritius deriva da palavra latina “faber”, que pode ser traduzida por “artífice”.
Autorretrato com boné, Carel Fabritius,
70 x 61 cm, 1654
Com 19 anos de idade, Carel Fabritius casa-se com uma vizinha, filha do pastor da cidade. No ano seguinte, foi estudar no atelier de Rembrandt van Rijn, juntamente com seu irmão Barent. Nessa época, Rembrandt estava pintando seu célebre quadro “Ronda Noturna”. Em 1643, apenas dois anos após seu casamento, sua esposa morre no parto.

Diz-se que dos alunos de Rembrandt, Carel era um dos mais talentosos e muito estudioso. Todos os aspectos técnicos da pintura lhe interessavam muito.
Em 1650 Carel Fabritius se muda para Delft, cidade de Jan Vermeer. Lá, ele se associou à Guilda de São Lucas, a cooperativa dos pintores da cidade. Em 1651, casa-se com Agatha van Pruyssen, que também era da cidade de Delft.
Já com um estilo de pintar diferente do de seu mestre Rembrandt, Carel Fabritius desenvolve um estilo mais luminoso, criando, inclusive, harmonias de cores frias em seus quadros. Também se interessava pelos efeitos espaciais que ele tornava mais complexos, como pode ser visto em sua tela “Visão de Delft”. Mais tarde, seu discípulo Vermeer pintou a sua própria “Vista de Delft”.
Ágar e o anjo, Carel Fabritius, 157 x 136 cm, 1643-45
Fabritius se torna um retratista e logo começa a receber encomendas para pintar os príncipes da Corte, assim como cenas domésticas e quadros de história.
Seus primeiros trabalhos são bastante influenciados pelo estilo de seu mestre Rembrandt. Mas em seu processo de amadurecimento como pintor, Fabritius foi abandonando as cores escuras e começou a empregar cada vez mais cores claras em seus trabalhos. 

Na fase final de sua curta vida, sua grande capacidade de investigação do processo da pintura aparecia em seus quadros, incluindo uma harmonização maior de cores, sua bela composição e criação de perspectivas, que teriam influenciado bastante seu aluno Vermeer. O pintor holandês Pieter de Hooch também teria sido seu aluno e foi bastante influenciado pelo mestre Fabritius. Especialmente o seu tratamento pessoal da luz, fascinou esses dois alunos.
Sentinela, Carel Fabritius, 68 x 58 cm, 1654
No dia 12 de outubro de 1654, o armazém de pólvoras de Delft explode, destruindo o bairro onde vivia Fabritius, assim como seu ateliê e muitas de suas pinturas. Transportado para o hospital local, o pintor não resistiu aos ferimentos e morreu. Tinha só 32 anos de idade. Somente umas doze pinturas suas sobreviveram ao incêndio de sua oficina.
Pouco mais de 20 pinturas suas são conhecidas e foram conservadas. Entre elas, dois autorretratos, um dos quais se encontra atualmente no Museu Boijmans van Beuningen, na cidade de Roterdam e o outro na coleção da National Gallery de Londres. Um terceiro autorretrato pertence à Pinacoteca de Munique, Alemanha.
Carel Fabritius ficou escondido da história da arte até o século XIX, quando foi descoberto pelo crítico de arte e jornalista francês Théophile Thoré-Bürger, que também foi o descobridor da obra de Jan Vermeer.
Vista de Delft com o vendedor de instrumentos musicias, Carel Fabritius, 15,4 x 31,6 cm, 1652


Exposição em Nova Yorque, EUA

O museu novaiorquino Frick Collection acaba de inaugurar uma exposição de dar água na boca em qualquer amante de pintura. Intitula-se “Vermeer, Rembrandt and Hals: masterpieces of Dutch painting from the Mauritshuis”. Entre as obras-primas, estará lá também o “Moça com brinco de pérolas” de Vermeer, do qual fiz um estudo em óleo em 2001, no Ateliê Vermeer em Paris.

Essas obras, em número de 14, fazem parte da coleção do museu holandês Real Academia de Pintura Mauritshuis e estarão expostas em Nova York até 19 de janeiro de 2014. Entre elas, a pintura de Carel Fabritius “O pintassilgo”, de 1654.
O Pintassilgo, Carel Fabritius, 33 x 22 cm, 1654