segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Existirmos, a que será que se destina?

Uns pensamentos e uns questionamentos que às vezes me faço...


Entre mim e minha avó existe o mundo.
“No começo era o Verbo”, diz lá a mitologia da Bíblia. Como humanos, conscientes de nós e do nosso meio, falamos, dizemos o mundo. “Isto é uma pedra, aquilo é água, aquela coisa se chama estrela...” Vamos construindo o mundo, e vamos traduzindo-o em palavras, desde que a primeira pedra foi nomeada. Não importa em que língua se diga pedra, ela carrega o peso do conceito de sua “pedrice”, do seu estado de pedra.


Mas nem sempre a linguagem do mundo é dita em palavras. Antigos nômades liam nas estrelas do céu a sua localização espacial: o céu era seu ORIENTE (orientação), e assim o céu falava aos homens. Sempre que se perdiam entre dunas e miragens, eles buscavam a posição do sol, da lua e de outros astros visíveis a olho nu. Essas estrelas avisavam sobre a posição correta de pés humanos na areia da terra, e a constelação da Ursa Maior era um Touro em movimento que os guiava, como cão-de-cego orientando na direção correta. Que direção? Para onde? Para o viver, o existir: respirar, dormir, comer, beber, mijar, defecar, andar, fazer sexo, sentar, deitar, olhar, ouvir, sentir, pegar, provar, sonhar, querer, refletir, meditar e todos os atos para os quais os verbos foram criados.


Quando o homem começou a dizer o mundo, estava criada uma cosmologia. A linguagem humana foi gerando uma narrativa a respeito da origem de tudo, da natureza e dos princípios que ordenam o mundo em todos os seus aspectos. A fala foi se aprimorando e a Torre de Babel foi crescendo e cosmologias particulares sendo desenvolvidas, paralelas à cosmologia física, a ciência. São todas, científicas ou não, conjuntos de representações que demonstram de forma mais ou menos clara os mais diversos aspectos da vida humana coletiva, e dão a forma da concepção que os membros de um grupo sociocultural têm a respeito do mundo. Ou seja: falam.


Do ponto de vista da linguagem, pergunto, existe alguma concepção superior à outra? Serão todas elas formas de “dizer” o mundo? Qual a diferença entre contar a história do mundo a partir de uma grande explosão, o Big Bang inicial, e aquela hindu que conta que o deus Shiva resolveu dançar e com sua dança criou tudo o que existe? Do ponto de vista da linguagem, faz muita diferença acreditar em uma e não na outra? Não podem ser simplesmente formas sinônimas de descrever o mesmo evento? E no entanto elas possuem modos de engendrar nossa psique, nosso modus operandi no mundo, que passa a ser em acordo com aquela na qual colocamos nossa crença.


Mas o mundo foi criado, seja por Shiva ou pelo Big-Bang. A dança de Shiva aconteceu num não-espaço e num não-tempo, uma singularidade igual ao Big-Bang onde o Tempo e Espaço estavam comprimidos num minúsculo ponto não-espacial e não-temporal de densidade infinita. É quase-verdade que nosso mundo não existiu sempre – pelo menos do jeito como é – e que não existirá para sempre – do jeito como é. Os cosmólogos atuais dizem que nosso universo tem uma idade que gira em torno de 15 bilhões de anos e que existirá por um tempo limitado. Um dia tudo não-existirá, não-será.


Mas falar disso parece algo completamente sem sentido. Quando observamos que estamos presos numa Bolha de espaço e tempo, fora da qual verbos como Existir e Ser não fazem o menor sentido, a massa encefálica fervilha em busca de uma solução para o enigma. Mas fora daqui não há um “fora daqui”. Seria um absurdo falar de tempo num não-tempo. De espaço num não-espaço. Parodiando um dos discípulos de Santo Agostinho: “O que Deus fazia antes de criar o mundo?” A resposta do filósofo-cristão: “Inventava o inferno para pessoas que fazem esse tipo de pergunta”. Ou seja, bem vindo ao inferno.


Então, se a pergunta “o que existia antes do tempo?” não faz o menor sentido (porque o termo "antes" precisa do Tempo, assim como o “durante” e o “depois”), o que faz sentido? Ou, perguntando melhor, só há sentido dentro do sentido do espaço e do tempo? Ou ainda resta a capacidade mental humana de estourar a Bolha e viver em multiversos? Em prosa, em verso e em tons.


O que há é que um dia inventamos Palavras. Um dia nos ensinaram que aquela bola dourada lá no céu que se move de um horizonte ao outro, gerando a "luz" e criando o "dia" é o Sol. Repetimos, há milênios, que aquilo lá é um sol, sem questionar muito. “Aquilo lá” tomou a si um estado próprio, um estado de ser Sol, que é um não-estado de ser Lua, por exemplo. O Sol é Não-Lua, ou seja, ele é uma escolha em prejuízo de outras.


Quando damos um Nome à coisa, ela se particulariza, se individualiza. A coisa fica Só, em seu estado. Como reduzindo o tempo ao segundo que passa, separamo-lo do segundo anterior e do posterior.


Tudo no universo acha-se SÓ em relação a tudo, e a culpa é nossa. O mar está SÓ em sua natureza de mar; o sertão é um estado de ser SÓ sertão. E eu, sozinha, olhando a noite estrelada do céu do interior vejo um céu repleto de estrelas solitárias, afastadas umas das outras por anos-luz. E eu a anos-luz delas... Eu sou só uma parte de todo o conjunto dos entes sozinhos do universo. O que faz com que a distância entre mim e essa formiga que passeia sobre a minha perna seja enorme! Eu jamais a alcançarei, nem ela a mim, assim como jamais alcançarei Alpha-Centauro, ou Vega, lá no céu. Estamos todas, estrelas, formigas e eu, condenadas à mais irremediável solidão, quebrada apenas quando sabemos que somos feitos da mesma matéria, eu, a formiga e as estrelas.


Manuel Bandeira – o poeta – disse:


Ah, quem mo reduzira [o tempo] ao minuto que passa,
— Fosse ele de paixão inerte e merencória,
Na solitude, no silêncio e na desgraça!


Nesse perene ato de nomear e recriar o mundo a cada dia, o homem por vezes volta ao ponto inicial, à essência da pergunta verdadeiramente importante: - com que linguagem traduzir o mundo? Muitas vezes é preciso voltar ao ponto de origem, ao tempo do não-definido, do não-dito, do não-inventado. O tempo do provável, da potencialidade de tudo vir a ser algo. E inventar e definir e dizer tudo de novo. De Novo – jeito novo, forma nova.


Isso é Arte.


A Arte é a forma nova de dizer algo que já foi dito antes.


Foi o que fez Guimarães Rosa, esse escritor tão brasileiro! Inventou (descobriu?) uma nova Cosmologia, a Cosmologia do Sertão das Minas. De fato “o sertão é o mundo” e “está em toda parte”, como ele diz em "Grande Sertão: Veredas". A Teoria do Caos diz que habitamos um universo holográfico. Sendo assim, um espaço como o sertão é um holograma do mundo. Por isso, o Rosa tem razão: tudo cabe no sertão e por isso o sertão é o mundo. Por isso a cosmologia sertaneja é igual à cosmologia hindu milenária e à cosmologia física relativística. Os bichos do sertão falam como gente, assim como as árvores, as coisas e as pessoas. O sertão descreve o mundo e o mundo inteiro cabe holograficamente no coração do sertão brasileiro. Ainda mais: a brasilidade da cosmologia do sertão, um estado brasileiro de descrever o universo. O sim e o não no sertão não são afirmativos e negativos mecanicamente, mas quanticamente. O sertão é o local aonde o conceito quântico é mais compreensível: é e não-é, não é Riobaldo? Um Nonada. Um Não que não elimina um Sim, ou o contrário. Ambos podem gerar um talvez, um pode ser, por que não?


Há um mundo de probabilidades dentro da física sertaneja. Probabilidades quânticas. Em "estado-de", em estado quântico, como o gato de Erwin Schrödinger, um dos pioneiros da física quântica. Um gato quântico, um sertão quântico. No sertão até o tempo é uma entidade plena de probabilidades. Disse para mim, lá em Cordisburgo, o Brasinha: - “pode ser lá pelas 9 horas, que aqui pode significar 10, meia-noite...” E seu riso sublinhou que por aqui nada é muito definitivo e definido. Ninguém vai reclamar se não for nove, porque todos sabem que nove pode ser dez sem problema.


Muda tudo quando buscamos formas novas de descrever o que já foi descrito e definido. Guimarães Rosa, não satisfeito com uma língua só, foi buscar aprender a ler na linguagem direta das coisas do mundo: na linguagem das vacas, das grutas, da terra, das plantas, dos sertanejos, dos homens e mulheres que vagam existindo nesse imenso-minúsculo espaço entre o céu e a terra que é o Brasil, habitando um estado especial de ser, um estado cultural brasileiro de existir no mundo. “O sertão é o mundo”.


Durante uns anos, de 1998 a 2004, frequentei umas aulas na casa do professor Amancio Friaça, do IAG-USP. As aulas semanais, às quinta-feiras, eram para umas dez pessoas que para lá iam encontrar algum sentido nessa existência, enquanto conheciam os conceitos de Cosmologia e Física Quântica. Estudava também por conta própria, sobre essas elocubrações existenciais, nos livros que fui adquirindo. No meio disso, faculdade de Letras. E tudo aquilo lá, aqueles questionamentos do tipo o que estou fazendo por aqui? ou “Existirmos, a que será que se destina?” continuam me perseguindo em todos os desenhos que faço e nas leituras do mundo como obra de arte. Que linguagem é essa que usamos para descrever o mundo?


Penso que há alguma relação entre a obra de Guimarães Rosa, a Cosmologia e a contemplação de um quadro de Caravaggio... que vão além da simples linguagem. Ver o mundo de novo, ver com Arte. E transformar o que vejo em alegria para os olhos, em prazer para a alma e em sentido para viver...

sábado, 27 de novembro de 2010

À beira mar

Uma praia do litoral de Santa Catarina
O céu é cinza e o vento é sul. E o mar murmura remotas canções, em ondas que me aquecem neste entardecer tão frio... O vento fustiga as aves escondidas pelos rochedos, encolhidas no cais, resistentes ao vento e às ondas.


Bandeiras desfraldadas se enfurecem ao sopro atroz desse vento sul, como meu pequeno barco entre o mar e o céu, à deriva entre rajadas e espumas.


Sons diversos são tangidos pelo vento: sonoridades marinhas me invadem. E em meu coração formam acordes nas cordas de um violão.


O mar é cinza, o céu é cinza e o vento é sul e eu mergulho nessas ondas espumantes. Volto ao vento e à minha torre, à espreita daquela primeira estrela que virá. Apesar do gris do céu e do mar, e do vento sul... 


O verão virá. Verão.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Edíria Carneiro: arte e vida se entrelaçam

Numa tarde de sábado, há alguns meses, passei algumas horas muito agradáveis na companhia de uma artista plástica de longa e impressionante história: Edíria Carneiro. Esse encontro aconteceu em sua casa, no bairro da Bela Vista, em São Paulo. Ela, pessoalmente, abriu-me a porta do apartamento onde mora, com um sorriso muito simpático no rosto e um abraço apertado. Finalmente eu estava diante desta artista que carrega uma experiência de vida das mais ricas!

Para aquecer a conversa, fomos vendo juntas uma série de fotografias tiradas por ocasião de uma visita recente de Edíria à Escola Florestan Fernandes, do MST. Lá, ela havia recebido uma homenagem por sua doação à Escola do MST de seis telas a óleo, pintadas por ela. Ao final,  foi me contando sobre sua riquíssima experiência de vida como artista, como comunista, como mãe e como esposa de João Amazonas, antigo dirigente do PCdoB.

Primeiras pinceladas


Edíria Carneiro nasceu em Salvador, Bahia. Desde cedo se interessou pelas artes plásticas, indo estudar na Escola de Belas Artes de Salvador. “Lá tínhamos aula de desenho com modelo vivo e tudo", diz ela. "E eu precisava esconder meus desenhos de modelos nus, para minha mãe não ver”, conta, sorrindo. “Imagina o que era isso na década de 30...”

Um de seus lugares de exercício de desenho era na porta do Convento São Francisco, onde os pobres se enfileiravam para receber uma sopa. “A pobreza sempre foi uma coisa que me tocou”, complementa. Em seguida, encaminhou-se para o campo da ilustração e fez desenhos para a revista baiana “Seiva”, um instrumento de luta política e cultural e de resistência ao fascismo, que, naquela época, já estava em ascensão. Na sequência, filiou-se ao PCdoB.

Em 1945, a UNE organizou um Congresso no Rio de Janeiro, do qual Edíria participou. Disse ela que, quando chegou ao Rio e viu toda aquela movimentação política, social e artística da capital federal, pensou e decidiu: “Eu não vou mais voltar para a Bahia”. Lá na sua terra era muito mais difícil, para ela, ser militante do Partido Comunista. “Ir às reuniões do Partido à noite? Minha família não ia deixar...” Ainda havia muito preconceito contra a participação de mulheres tanto na política quanto nas artes.


Decidida a ficar morando no Rio, Edíria se instalou no bairro de Ipanema. Como o Partido estava precisando de uma desenhista, Edíria foi trabalhar como ilustradora do Jornal "A Classe Operária". “Naqueles tempos, observa ela, os jornais não possuíam, como hoje, fotógrafos à disposição. Então o papel dos ilustradores era muito importante”.

Ela lembra que a "A Classe Operária" ainda não estava com todo o corpo de redação completo e não tinha uma sede própria, funcionando na sede do Comitê Nacional, na Lapa, onde ela conheceu seu futuro companheiro João Amazonas. Ele já era um dos dirigentes do Partido, atuando na área sindical. “Aí começou aquele namorico”, diz Edíria entre sorrisos.

Além da “A Classe Operária”, ela também atuava no “Momento Feminino”, um jornal editado por mulheres, cuja diretora era Arcelina Mochel, uma advogada maranhense, cuja família possuía muitos membros atuando como militantes comunistas. Heloísa Ramos - esposa do escritor Graciliano Ramos, também filiado ao PCdoB – também atuava nesse jornal. Então, assim era Edíria, a ilustradora de jornais que também desenhava panfletos, material de propaganda, etc.

Em 1946, ela frequentou o curso livre de Artes Gráficas da Fundação Getúlio Vargas, onde aprendeu a técnica de xilogravura com Axl Leskochek, e de gravura em metal com Carlos Oswald. Nessa escola também estudou pintura com Tomás Santa Rosa.

Uma de suas muitas experiências com artes visuais foi o convite do Barão de Itararé para ela pintar suas faixas de campanha política. Ele era o dono, nessa época, de um jornal intitulado "A Manha". O Barão de Itararé era candidato a Vereador pelo PCdoB do Rio. “Eu fiz as faixas da campanha dele, porque ele queria que tivesse sua caricatura, e o pessoal que fazia faixas não sabia desenhar, só faziam letras. O Barão de Itararé (que era um humorista nato),queria faixas engraçadas e eu fiz. Eu fazia um bocado de faixas para o Partido, eu fazia de tudo”, diz ela mais uma vez sorrindo.

Nas atividades do PCdoB, Edíria “era pau para toda obra” no campo da ilustração e desenho gráfico. Além de manter seu trabalho como artista plástica. Foi convidada, então, para fazer a cenografia de uma Sinfonia de Dmitri Shostakovich, compositor soviético, que seria apresentada no Estádio das Laranjeiras, naquela época um grande estádio de futebol.

Era um verdadeiro desafio para a jovem artista, uma vez que seus painéis seriam o pano de fundo da sinfonia em três atos que seria assistida por uma plateia muito grande. Esse era um evento cultural organizado pelos comunistas e mostra, diz ela, o imenso prestígio que tinha o Partido Comunista naquele momento político, social e cultural brasileiro. "Qualquer atividade organizada pelo Partido era muito concorrida!", recorda Edíria.

"A sede Distrital do Partido no Rio, foi doada pelo arquiteto Oscar Niemeyer. Havia uma sala enorme, que eu usei para pintar os painéis”. Diante do desafio de um trabalho tão novo, ela foi
procurar o pintor Tomás Santa Rosa, que já era célebre naquele tempo. Ele era auxiliar de Cândido Portinari, também filiado ao Partido Comunista.

“Eu conhecia bem Santa Rosa e tinha liberdade de lhe pedir algumas dicas e conselhos, já que ele era cenógrafo, acostumado a pintar em tamanhos grandes. Foi ele o cenógrafo, inclusive, da peça “Véu de Noiva”, de Nelson Rodrigues. Ele era muito amigo nosso”.

Em seguida Edíria participou, com um trabalho seu, do Salão Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro. Nesse Salão, ganhou uma medalha de bronze, mas nunca pode ir recebê-la porque, em seguida, o Partido caiu na ilegalidade e os deputados comunistas foram cassados. “Nem minha pintura eu pude ir buscar”, completa ela, sempre com o mesmo sorriso, os olhinhos brilhantes e o ânimo tão característico dela.


As cores densas da clandestinidade


Após a decretação da ilegalidade do Partido Comunista do Brasil e a cassação do mandato de deputado de João Amazonas, eles entraram na vida de clandestinidade. Mudaram-se do Rio para São Paulo, onde viveram por uns dois anos, trocando de casa frequentemente para não chamar a atenção.

Nesse período, Edíria só fez uma única ilustração, para um texto do Partido sobre mulheres, que não continha sua assinatura, por motivos de segurança. Ela pouco podia conviver socialmente, e não foi a nenhuma exposição de arte enquanto esteve em São Paulo, diferentemente de sua vida anterior no Rio de Janeiro onde conhecia muita gente dos meios político e artístico.

Após dois anos, voltaram ao Rio, pois João Amazonas tinha novas tarefas lá. A mesma vida difícil da clandestinidade continuava, no entanto. “A gente alugava uma casinha, lembra ela, depois, quando ficava algum tempo naquela casa, mudava para outra, para não ficar conhecido”. Ela disse que desenhava, quando podia, sobre qualquer tipo de papel, mas sem nada poder guardar e levar consigo.

Algum tempo depois, ficou grávida da primeira filha. Próximo ao momento do parto, estourou uma greve importante de operários em São Paulo, para onde seu marido, João Amazonas, foi enviado.

“Foi uma história complicada – conta Edíria entre risos. Me lembro que fui para a Casa de Saúde... Nós morávamos no subúrbio do Rio. Eu fui para o hospital, tive minha filha e na hora de sair eu simplesmente não tinha dinheiro para pagar o hospital.” Edíria, com o bom humor de sempre, completa: “Aí eu fiquei no hospital fingindo que estava doente, até que finalmente lembrei de uma amiga, a mulher do Diógenes Arruda, também dirigente do partido. Ela trabalhava na biblioteca da Câmara Municipal. Mandei um recado para ela ir até o hospital, e lhe contei a história. Ela conseguiu o dinheiro que eu precisava, paguei o hospital e fui para casa.”

O mesmo se passou com o nascimento dos outros dois filhos do casal. Seu companheiro sempre estava viajando em alguma tarefa do Partido. “Nossa vida foi assim, sempre tumultuada. Nunca foi uma vida linear...”, diz ela.

Em 1959, Edíria e João mudaram-se para o Rio Grande do Sul, onde puderam ter uma vida um pouco mais dentro da normalidade. “Em Porto Alegre, eu voltei a frequentar exposições e fui procurar fazer um curso de artes plásticas.” Tornou-se aluna do pintor Iberê Camargo, com quem fez um curso de pintura, que era patrocinado pela Prefeitura de Porto Alegre. Além disso, frequentava teatros, ia a concertos, a exposições. Lá viveram de dois a três anos.

Mas nessa época, as divergências dentro do Partido Comunista tinham chegado a uma situação difícil, até que houve o rompimento: João Amazonas seguiu com o PCdoB e Prestes, por outro caminho, à frente do PCB. Mais uma vez, Edíria e João tiveram que mudar de cidade.

Retornaram ao Rio de Janeiro, sem dinheiro, sem lugar para morar. Ela então escreveu uma carta a seu pai, que era Juiz de Direito e morava na Bahia, pedindo ajuda. Ele enviou o dinheiro e ela e os filhos passaram alguns meses com seus pais. João permaneceu no Rio providenciando uma situação melhor.

Já estavam em São Paulo, quando a Ditadura Militar lançou seu manto trágico sobre o Brasil. Em 1968, o PCdoB começou a organizar a Guerrilha do Araguaia, como ato de resistência à ditadura, e João Amazonas seguiu para a região, deixando a família em São Paulo. Um certo dia, Edíria recebe um recado de que deveria encontrar-se com João. “Ele me disse que ia fazer uma viagem à China e combinou de nos encontrarmos em Paris, uns meses depois.” Nessa época, os filhos já estavam todos adultos.

A ideia era que Amazonas voltasse ao Brasil. Mas em 1976 aconteceu o episódio da Queda da Lapa, uma reunião do Comitê Central do PCdoB que foi estourada pelo Exército, onde foram assassinados os dirigentes comunistas Ângelo Arroyo e Pedro Pomar, além dos outros que foram presos e selvagemente torturados.

“Com isso – disse Edíria – o João não podia voltar! Ele acabou ficando em Paris, com documentação de português. Era Monsieur Pereira”, diz ela, sorridente. E completa: “Cheguei lá e vi que ele estava muito doente! Então lhe disse que eu não voltava para o Brasil, que não ia deixar ele doente lá!” O casal se instalou, então, na capital francesa, aonde viveram exilados por quatro anos, voltando ao Brasil depois da decretação da Anistia, em 1980.


Uma artista no estrangeiro

Em Paris, Edíria voltou aos cursos de artes plásticas. Esteve com Friedlaender, um gravador muito conhecido e já muito velhinho. Ele perguntou por Lívio Abramo, que foi seu aluno. Segundo Edíria, ele não queria mais ter alunos e indicou o “Atelier 17” de Stanley William Hayter, de nacionalidade inglesa.

Por ocasião da II Guerra Mundial, Hayter, como Edíria o chama, mudou-se para os EUA. Lá deu aulas de gravura, tendo como um de seus alunos o pintor expressionista abstrato norte-americano Jackson Pollock, que também trabalhou no atelier do artista. Passaram pelo “Atelier 17” de Stanley W. Hayter muitos artistas famosos, como Miró, Picasso, Vieira da Silva, Giacometti...


Neste ponto da conversa, Edíria me convida a ir conhecer seu atelier, do outro lado da rua “no porão da casa da minha filha”. Fomos. Ela se apoiando no meu braço direito, para caminhar com mais apoio, enquanto atravessávamos a rua. Nossa primeira parada foi na sala, onde ela me mostrou pinturas e gravuras penduradas na parede. Ia mostrando, enquanto me explicava a técnica que havia aprendido com o gravador Hayter.

“Ele era químico, explica ela, e por isso ele criou e desenvolveu uma técnica de gravura que permite obter várias cores com uma única impressão”. Foi com essa técnica aprendida com Hayter que Edíria realizou muitas de suas gravuras. A tinta deve ter níveis de viscosidade diferentes, uns mais líquidos, outros mais viscosos. O resultado é que essa mistura entre tintas de viscosidades diferentes cria um efeito de repulsão entre elas que permite um bom acabamento em várias cores, com uma única passada pela prensa. Edíria, provavelmente, é a única gravadora brasileira atualmente que passou pelo Atelier 17, de Hayter.

Mas não foi fácil ser aluna de professor tão concorrido. Edíria foi procurá-lo em seu atelier e ouviu como resposta: “Eu não aceito mais nenhum aluno”. Ela interrompe a história e fala, como se precisasse argumentar com ele: “mas eu tinha que estudar com algum gravador!”

Como a primeira resposta foi negativa, Edíria começou a frequentar um outro atelier, menos importante, o de Joeles Serve, em uma rua que, segundo ela lembra, possuía “um bocado de ateliers”. Mas todos os dias, voltava ao Hayter, sempre com a mesma pergunta: já tem um lugar pra mim? Até que finalmente a chance apareceu, “para minha sorte”.

Hayer não gostava da idéia do artista solitário, separado da sociedade. No Atelier 17, artistas de várias partes do Mundo, de tendências e personalidades muito diversas, trabalhavam juntos e trocavam suas experiências e vivências. A personalidade forte e marcante de Hayter determinava um grande respeito pelo trabalho de cada um, não havendo lugar para críticas depreciativas ou desrespeito às exigências naturais do bom funcionamento de um atelier coletivo.

Ele dava grande importância à poética do traço. Instintivo que ele fosse, seria um ato de criação. Periodicamente Hayter fazia os alunos praticarem exercícios de desenho automático (com os olhos fechados) e todos aprendiam o manejo dos buris. Havia alunos de tendências diversas – abstratos e figurativos. Cada um respeitava o trabalho do outro. O próprio Hayter nunca criticava o trabalho de um aluno por seguir esta ou aquela tendência. E nenhum aluno tinha o direito de criticar o trabalho de um colega.

Ediria mostrou-me várias gravuras que fez com a técnica de Hayter. Numa delas, um casal ao centro, em meio a manchas disformes. Ela aponta e ri, dizendo: “Este quadro eu pus o nome de “Encontro”, porque este casal representa nós dois, maltratados, machucados”...

Perguntei-lhe sobre a vida em Paris: “Naquela época eu, como estrangeira, tinha que me apresentar a cada três meses ao serviço de imigração. Eu era a única brasileira. E Hayter, então, me dava um atestado de que eu era sua aluna. Eu levava esse papel na imigração e eles renovavam meu visto por mais alguns meses”.

Além dela, muitos outros artistas estrangeiros estudavam lá. “A vida cultural era fervilhante, lembra ela. Em Paris havia muito atelier, seja de gravura, seja de pintura. Tinham vários onde se davam sessões com modelo vivo. Qualquer um podia ir lá fazer seus desenhos e pinturas, pagando ao final da sessão”.

O atelier atual de Edíria está bem instalado e equipado, com três prensas para impressão de gravura, incluindo uma prensa elétrica. Ao fundo, uma mapoteca, onde ela guarda dezenas de cópias de gravuras, que nós duas fomos tirando uma a uma, enquanto ela ia contando suas histórias. Num armário, potes e potes de tinta, assim como pincéis, bisnagas de tinta a óleo, buris, todo o material de trabalho do artista.

“Tudo isso eu trouxe de Paris, inclusive esse rolo imenso que foi transportado de navio para cá. Fiz questão de trazer todo o meu material de trabalho, quando nós voltamos ao Brasil”, complementa Edíria.
De volta ao Brasil em 1980, tendo sido anistiada junto com seu marido, Edíria Carneiro trouxe consigo toda a experiência adquirida nesses quatro anos na França, convivendo com artistas de várias partes do mundo. Experiência que se somou a toda a sua trajetória de artista plástica, desde os primeiros anos de jovem estudante da Escola de Belas Artes da Bahia.

Entre suas experiências nas artes plásticas, convém destacar:


No Brasil:
Fez parte do Núcleo de Gravadores de São Paulo desde sua fundação (década de 60); II Bienal de Artes Plásticas de Salvador, Bahia; Bienal de Artes de Santos, São Paulo (década de 70); X e XI Bienais Internacionais de São Paulo (1969 e 1971); Salão Paulista de Arte Moderna (de 1963 a 1968); Salão Paulista de Arte Contemporânea (1969 a 1974); exposição no Memorial da América Latina, em São Paulo (2005); Câmara Federal de Brasília (2006); exposição individual ”Folclore Brasileiro”, Campos do Jordão, São Paulo (2006).


No exterior:
Expôs na Associação Brasil-Estados Unidos, em Washington, EUA (1961); no Salon d'Automne, em Paris, França ( de 1977 a 1981); Musée des Beaux Arts de Caen, França (1981); Salon des Artistes Françaises, em Paris ( de 1977 a 1981); Salon Internacional del Grabado, em Madri, Espanha ( de 1977 a 1981); Feira Internacional de Arte de Paris (1986); exposição no Museu de Arte Colonial a convite do Centro Wilfredo Lam, em Havana, Cuba (1991); Bienal de Gravura de Taiwan, China (1991); Mostra Internacional de Minigrabados em Madri, Espanha ( de 1994 a 1998).


Edíria tem obras nos acervos dos museus: Museu de Arte Moderna de São Paulo; Museu de Arte Moderna de Skoplje, Macedônia, antiga Iugoslávia; Museu del Grabado de Buenos Aires, Argentina; e no Cabinet d'Estampes de la Bibliothèque National de Paris, França e na Prefeitura de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. - É verbete no Dicionário das Artes Plásticas no Brasil (Roberto Pontual), no Dicionário de Artistas Plásticos – Instituto Nacional do Livro (MEC) e na Grande Enciclopédia Delta Larrouse (Edição Brasileira ano 1970).

Incansável, apesar da idade, Edíria ainda pinta telas a óleo. Ela é a representante, ainda viva, de um momento riquíssimo da história das artes plásticas brasileiras, pós-Semana de 1922, crescendo em meio ao movimento modernista, no qual se destacaram muitas mulheres pintoras, do porte de Anita Malfatti e Tarsila do Amaral. Assim é Edíria Carneiro Amazonas.



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NOTA DO BLOG:

A artista Edíria Carneiro faleceu em dezembro de 2011.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Aleksandr Ródtchenko, o fotógrafo da revolução

Desde o dia 5 de novembro estão expostas, no Rio de Janeiro, no Centro Cultural Moreira Salles, cerca de 300 obras do fotógrafo russo Aleksandr Ródtchenko. É uma mostra retrospectiva da obra do artista russo, organizada pela Moscow House of Photografy, e conta também com uma programação paralela de filmes soviéticos de Sergei Eiseinstein. A exposição fica no Rio até 6 de fevereiro, seguindo depois para a Pinacoteca de São Paulo.


Aleksandr Ródtchenko, fotógrafo soviético
Aleksandr Ródtchenko (1891-1956) é um dos grandes artistas daquela que ficou conhecida como a Vanguarda Russa do começo do século XX, junto com outros nomes célebres como Kasimir Maliévitch, Kandinsky, Wladimir Tatlin e o próprio poeta Mayakovsky, amigo pessoal de Ródtchenko.
Ele começou seu trabalho dentro da linha Construtivista, por volta de 1923. Cooperando com Mayakovsky, os dois criaram juntos cartazes de propaganda. Neles, os artistas foram desenvolvendo um método construtivista de desenho para a tipografia, e Ródtchenko foi introduzindo a fotografia como meio de expressão. Inicialmente ele era pintor de quadros e, na medida em que ia se aprofundando na teoria estética que orientava a Vanguarda Russa, foi partindo para a direção da fotografia e do desenho gráfico.
Os trabalhos inovadores desses artistas tiveram o amplo apoio do movimento Proletcult, que lhes arranjava trabalho regular que garantisse seu sustento. Os trabalhos eram conseguidos junto aos contatos que o Proletcult mantinha com a indústria, assim como com organizações sindicais soviéticas. Vários artistas, incluindo Ródtchenko, começaram a desenhar emblemas, slogans, selos, cartazes, criando, no início dos anos XX, os clubes dos trabalhadores, nos quais, tudo, desde mesas e cadeiras até os slogans nas paredes e a iluminação era tudo projetado no estilo Construtivista.
A mãe, Rodtchenko
“Cessemos nossa atividade especulativa (pintar quadros) e assumamos as bases saudáveis da arte – cor, linha, materiais e formas – no campo da realidade, da construção prática”, dizia o Manifesto Construtivista, um dos textos presentes no livro “Construtivismo” de Alexei Gan, lançado em Tver, em 1922.
A ideia dos construtivistas era tornarem-se artistas-engenheiros, plenamente atuantes na revolução socialista que estava em curso na União Soviética, dirigida até 1924 pelo líder do povo russo Wladimir Lênin. Esses artistas descobriram no campo do desenho gráfico uma grande riqueza de possibilidades e nessa época foram criados os cartazes que fizeram a história do desenho gráfico, influenciando artistas no mundo inteiro até os dias de hoje. Ródtchenko, Lissitzky, Klutsis e Alexei Gan são considerados os pioneiros do desenho gráfico moderno.
É esse Ródtchenko que está sendo visto no Rio de Janeiro e a partir de fevereiro estará exposto na Pinacoteca de São Paulo. A mesma exposição já foi apresentada em Londres, Berlim e Amsterdã. Com curadoria de Olga Svíblova, diretora da Casa de Fotografia de Moscou, a mostra recebeu o título de “Aleksandr Ródtchenko: a revolução na fotografia”. Essa exposição chega ao Brasil com cerca de 300 peças do artista soviético entre fotografias, fotomontagens, cartazes e capas de livros e revistas.
Para suas fotos, Ródtchenko trouxe muito da teoria construtivista. De uma forma original, ele muda a perspectiva da fotografia, movendo suas lentes para outra direção, o que representou um choque para os padrões da época. O ponto de vista inovador do fotógrafo russo era a partir de ângulos inéditos: de baixo para cima ou de cima para baixo. Até mesmo os retratos que ele fazia eram nessa perspectiva nova. Diversas fotos suas ilustraram jornais e revistas,  muitas das quais ele mesmo tinha sido o designer.
Paralelamente à fotografia Aleksandr Ródtchenko desenvolvia seu trabalho gráfico e dava aulas de desenho industrial. A União Soviética passava por grande progresso tecnológico, com muitas indústrias e usinas, tudo documentado pela câmera do fotógrafo socialista. Como designer gráfico e fotógrafo, Ródtchenko inovou a linguagem artística de sua época.
E nunca abandonou a URSS. Mesmo quando em 1932 o governo de Stalin, através de Andrei Jdanov impôs uma estética de Estado reduzindo, dessa forma, o campo de ação dos artistas soviéticos, Ródtchenko continuou seu trabalho de pesquisa, fazendo experimentos com a luz em ambientes internos, fotografando o mesmo lugar várias vezes ao longo do dia para captar os efeitos das mudanças na luminosidade dos espaços. Como grande repórter fotográfico, Moscou foi muitas vezes o tema central de sua fotografia. Também tirava fotos do alto de prédios, assim como de manifestações na Praça Vermelha, competições esportivas e corridas de cavalos.
A exposição que acontece agora no Rio mostra essas fases diversas da obra do autor. Quase todas as 300 peças são originais e há uma sala dedicada ao poeta Mayakovsky, seu amigo pessoal. Ródtchenko fez para ele retratos e capas de livros, além de peças gráficas criadas pelos dois, como cartazes de propaganda do socialismo.
Mostra de cinema soviético

Juntamente com a exposição de Aleksandr Ródtchenko, a curadoria teve a preocupação de trazer também alguns filmes de Sergei Mikhailovich Eiseinstein (1898-1948), o grande cienasta soviético, com o objetivo de mostrar o vanguardismo das artes visuais soviéticas.
Foi Eiseinstein que imortalizou, com seu cinema revolucionário, a grandiosidade do projeto político socialista de Lênin na URSS, tornando-se um verdadeiro mito do cinema de vanguarda que inspirou cineastas de todo o mundo. Os filmes que serão exibidos na mostra do Rio e depois em São Paulo são, entre outros: A Greve (Stacha), rodado em 1924; O Encouraçado Potemkin de 1925 e Outubro (Oktyabr) que mostra os redemoinhos revolucionários que mudou a história da Rússia e do mundo em 1917. Ródtchenko foi o artista que desenhou o cartaz de propaganda do filme “O Encouraçado Potemkin”.
Além de Einseinstein, outros diretores como Aleksandr Petrovich Dovzhenko, estarão presentes. São treze filmes soviéticos ao todo, sendo apresentados junto com a obra de Ródtchenko. O título da mostra de cinema soviético é “Notícias da antiguidades ideológicas”. Esse título é de uma obra não concluída de Einseinstein que queria filmar O Capital, obra mestra de Karl Marx. Além dele estará sendo apresentado também o famoso filme de Dziga Vertov, O homem com uma câmera.
Essa mostra complementa aquela que aconteceu no ano passado (2009), quando o público brasileiro teve acesso a uma parte importante do acervo dos artistas da Vanguarda Russa, do Museu de São Petersburgo.


Hoje na avenida Paulista eu vi...

Os excluídos. Desenho bico de pena, 2008, Mazé Leite
O BICHO

VI ONTEM um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.

(poema de MANUEL BANDEIRA)

terça-feira, 9 de novembro de 2010

São Paulo sem Macunaíma?

Uma herança maldita deixada pela campanha eleitoral pessedebista: as forças obscuras que antes pareciam desmanteladas, ressurgiram de uma forma assustadora durante a campanha para a presidência da República, espalhando ódio e preconceito. Passada a eleição, eleita a Presidenta Dilma Rousseff, a velha elite paulista, retrógrada e conservadora, agora mostra os dentes tintos da mais repugnante xenofobia. Para isso usa, como emissários, seus filhotes internautas.

Grande Otelo interpretando o personagem Macunaíma
Macunaíma, romance do paulista Mário de Andrade, nasceu junto com o movimento modernista brasileiro, na esteira da famosa Semana de Arte Moderna de 1922 e do Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade. Eram tempos de descoberta de novos paradigmas trazidos pela modernidade e, como conseqüência, eram tempos de descobrir o Brasil, de conhecer o povo, a cultura e a língua brasileira. Do estrangeiro, propunha Oswald, abocanhemos o que trouxerem de bom, como bons antropófagos que somos.

Mas o Macunaima de Mário de Andrade, publicado em 1928, é a síntese do povo brasileiro. Nessa história, Mário revoluciona a escrita literária, trazendo palavras e expressões tiradas diretamente da fala do povo que ele pesquisou de norte a sul. Em Macunaíma, Mário reúne as várias regiões do Brasil, e também une, num só personagem, as três raças brasileiras: negro, índio e branco. Macunaíma nasceu no meio da floresta amazônica, “preto retinto, filho do medo da noite”.

O herói sem nenhum caráter, como diz o subtítulo do livro, vem para São Paulo atrás de sua pedra (um talismã conhecido da cultura indígena), sua Muiraquitã, que foi roubada pelo gigante comedor de gente Venceslau Pietro Pietra que morava aonde? “No fim da Rua Maranhão olhando para a Noruega do Pacaembu”, ou melhor, em Higienópolis, mesma rua, mesmo bairro de um certo FHC pessedebista. Coincidência?

Como o gigante-ladrão morava em São Paulo, “cidade macota do igarapé Tietê”, Macunaíma e seus irmãos descem o rio Araguaia e vão para a metrópole na tentativa de recuperar sua Muiraquitã. A maior parte do romance se passa em São Paulo, onde acontecem diversos embates entre Macunaíma e Venceslau Pietro Pietra. O autor, nessas refregas entre os dois, satiriza alguns aspectos da vida paulistana provinciana. Ao final, Macunaíma mata o gigante e recupera seu amuleto, partindo de volta para o Uraricoera, seu lugar de origem. O defunto Venceslau é um dos únicos do romance que não se transforma numa estrela cadente no céu...

Macunaíma é a síntese do que é ser brasileiro, essa mistura de raças, essa heterogeneidade cultural que é nossa riqueza. É o negro, o índio e o branco convivendo em paz e gerando essa linda gente bronzeada e plena de valor, lembrando o samba de Assis Valente.

Pois bem. Macunaíma – o povo brasileiro – também mora em São Paulo. Mas há uma certa categoria de gente que também mora em São Paulo que não suporta o diferente, que prefere a monotonia da monocromia cultural e racial. Essa gente não suporta sentar-se ao lado de Macunaíma em seus restaurantes e em suas viagens aéreas. Eles querem que Macunaíma volte definitivamente para o Uraricoera, lá no fim do mundo, onde vivem outros macunaímas pobres, mulatos, injustiçados pelo sistema durante séculos, que não lhes tem dado direitos básicos fundamentais.

Só que a elite de Venceslau Pietro Pietra, o gigante comedor de gente e ladrão do que há de mais essencial na cultura brasileira, essa gente que mora nos Jardins e em Higienópolis não consegue admitir que um Macunaíma-Lula-Operário tenha sido por oito anos Presidente de todos os Macunaímas do Brasil! E até da elite! Elite essa muito mal-agradecida que ganhou ainda mais dinheiro nesses últimos oito anos! Esse gigante-anão, que é essa minoria de paulistas com um olho sempre voltado para 1932, também não admite que uma cunhã (mulher, na língua de Macunaíma) tenha sido eleita para ser a Presidenta de todas as cunhãs brasileiras, pobres e ricas, e de todos os Macunaímas e Venceslau Pietros Pietras do Brasil! Sim, porque Dilma Rousseff disse que vai governar para TODOS os brasileiros!

E querem – eles, essa minoria de retrógrados – expulsar Macunaíma de São Paulo!

Esta semana, pós-eleição de Dilma, os filhotes dessa elite vomitaram em seus twits e posts seu ódio de classe e sua repugnante xenofobia: querem que os nordestinos saiam de São Paulo, querem São Paulo higienizada (né, Higienópolis?) de todos os “forasteiros”. Só que forasteiros são exatamente eles! Essa gente que odeia nordestinos, é ela que está fora de lugar, porque aqui em São Paulo, a imensa maioria dos paulistas são, como todos, brasileiros acolhedores, solidários, fraternos. São pessoas de todas as origens, cores, sotaques, culturas. São Macunaíma, a síntese da nossa cultura, a nossa heterogeneidade, a nossa riqueza!

Mas a mente mesquinha dessa gente medíocre que quer São Paulo para si, não faz ideia do que seria esta imensa cidade sem a mistura encantadora dos mil sotaques que se ouvem nas avenidas. São Paulo, a imensa realidade que cai sobre cada migrante que aqui chega, parece amedrontar quando se mostra do “avesso do avesso do avesso do avesso”.

Mas é aqui que se esconde a Muiraquitã de todos os Macunaímas, brasileiros ou estrangeiros. Nesta Babel de línguas e culturas, São Paulo é mais luz, é mais cor, é mais vida. Sem os nordestinos, as tonalidades de cinza dos céus deste lugar pesariam ainda mais sobre a alma dos que aqui habitam. Tudo seria mais triste sem o canto, a dança, a poesia, o trejeito, o molejo, a fala mansa, o coração quente, o trabalho e o abraço imenso do povo do nordeste que por aqui se aventura e que só deixou seu “cariri no último pau de arara”!

Para as gralhas xenófobas que estrilam seus gritos de morte, faço um convite nordestino:

“Batucada, reuni vossos valores
Pastorinhas e cantores
Expressão que não tem par, ó meu Brasil!
Esquentai vossos pandeiros,
Iluminai os terreiros que nós queremos sambar!”

Xilogravura de J. Borges


sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Carlos Drummond: O presente é tão grande!

Em momentos de sentimentos sombrios aflorando na esteira da mediocridade conservadora, um mineiro poeta nos convida: "NÃO NOS AFASTEMOS MUITO, VAMOS DE MÃOS DADAS! Poesia e Arte é sempre o melhor antídoto para maus sentimentos.




Mãos dadas
Carlos Drumond de Andrade

Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.


Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela.
Não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.


O tempo é a minha matéria. O tempo presente, os homens presentes, a vida presente.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Poema de Maiakóvski

Por do sol, pintura de Monet
Algum dia você poderia?
poema de Maiakóvski

Manchei o mapa cotidiano
jogando-lhe a tinta de um frasco
e mostrei oblíquas num prato
as maçãs do rosto do oceano.


Nas escamas de um peixe de estanho
li lábios novos chamando.


E você? Poderia
algum dia
por seu turno tocar um noturno
louco na flauta dos esgotos?


(Maiakóvski - 1913 - tradução de Haroldo de Campos)