sexta-feira, 28 de maio de 2010

Por falar em Grécia...


Nas últimas semanas, a Grécia voltou a ser assunto e a chamar a atenção do mundo. Manifestações de trabalhadores tomaram conta do país, contra a política econômica do governo de George Papandreou, e o FMI. Por trás das câmeras da mídia sedenta de más notícias, divisamos o azul profundo daquele país cercado de mar, de história e de Arte.

Então falemos de Arte.

Há mais de 2.700 anos atrás, na ilha de Creta, entre Atenas e o norte da África, começou a ser desenvolvida uma arte tão refinada e bela, que causou profunda impressão na corte do faraó do Egito e influenciou todo o continente grego. Até então, a arte que se produzia no mundo antigo concentrava-se no Egito, nos oásis dos grandes desertos, onde o sol queima de forma implacável. Os artistas – escultores e pintores – aprendiam as regras de sua arte desde muito cedo. As estátuas sentadas deviam ter as mãos pousadas sobre os joelhos; o corpo dos homens era pintado com um tom de cor mais escuro que o das mulheres; o rosto estava sempre de perfil, mas o olho é visto de frente, assim como o tronco. Ninguém queria e fazia nada diferente disso, e por milhares de anos essas regras foram repetidas.

Mais ao norte, no meio do imenso mar, os cretenses, que não estavam submetidos à vontade do faraó, desenvolveram sua arte de forma mais independente. Nessa ilha, como em outras, habitavam marinheiros aventureiros, que percorriam aqueles mares de canto a canto, trazendo para seus reis piratas a riqueza conquistada em outras plagas. Esses reis, ricos e poderosos, enviavam emissários ao Egito e, com eles, sua arte que impressionou o país dos faraós. Mas quase nada restou da beleza que se produziu naqueles tempos. Mais ou menos por volta do ano 1.000 a.C., tribos bárbaras que vinham da Europa combateram e derrotaram os antigos cretenses. Edward Grombrich, autor do célebre livro “História da Arte”, diz que “somente nas canções que narram essas batalhas sobrevive algo do esplendor e da beleza da arte” que era produzida em meio ao azul profundo dos mares gregos.

Mas a influência já tinha se espalhado, e a arte grega evoluiu, ao longo de sua história, de forma tão densa que simplesmente tem sido, por milhares de anos, a referência e a inspiração para toda a arte que se produziu no ocidente desde então. Por volta do ano 600 a.C., os arquitetos gregos que até então faziam suas construções em madeira, começaram a fazer uso da pedra para erguer seus templos. Mas eles não se satisfaziam em simplesmente erguer pilares quadrados. Eles modelavam cada coluna, e o resultado ainda hoje é visto na Acrópole, cujas colunas dóricas, que se afunilam em direção ao topo, dão uma visão de leveza ao conjunto gigantesco do Partenon.

Mas a grande diferença da arte grega está em outro lugar. Os primeiros artistas ainda pintavam as figuras humanas seguindo algo da regra egípcia antiga. Mas os gregos descobriram o escorço, que é a representação em perspectiva da figura humana, ou de qualquer objeto, pois até então, desenhos e pinturas eram bidimensionais. Foi nesse tempo que o povo grego começou a contestar as antigas tradições e as estórias sobre os deuses. Foi o início da ciência, como forma de observação da natureza do mundo e das coisas, sem preconceitos religiosos.

Os artistas de então trabalhavam para viver, em suas oficinas de escultura e pintura, fazendo seu trabalho com as mãos. Passavam os dias, diz Gombrich, labutando em suas forjas, sujos de fuligem, suados, como os operários das pedreiras e canteiros de obras. Por isso eram tidos como seres de categoria inferior. Mas tinham vida ativa na política de suas cidades, pois a Grécia vivia uma democracia onde até mesmo os humildes trabalhadores tinham direito à participação. No mais alto nível da democracia ateniense, foi onde as artes atingiram seu apogeu. Nessa época, o grande escultor Fídias se destaca com suas estátuas esculpidas no mais refinado mármore, plenas de suavidade e beleza. Já estava longe a crença de que demônios horríveis habitavam nas estátuas, e Fídias esculpia seguindo o modelo humano. Sócrates, o grande filósofo ateniense, que também se aventurara como escultor, dizia que se devia também incluir nas artes pictóricas e escultóricas a representação da vida interior do ser humano, ou seja, que ele não fosse representado na forma antiga, fria e vazia. Desta vez, se incluíam os sentimentos humanos.

Além do profundo estudo de Anatomia. Livres das superstições e caminhando lado a lado com a ciência que então se desenvolvia (teorias sobre a matéria, a matemática, a medicina, etc) os artistas se puseram a explorar a anatomia dos ossos e músculos da figura humana, uma vez que conhecer a forma das coisas era de muita importância para eles. Já se faziam estudos com modelo vivo, e não mais de memória, como era feito no Egito. Além disso, os retratados já não eram quase-deuses, mas pessoas comuns também começaram a ter seus próprios retratos. Escavações feitas na cidade de Olímpia, por exemplo, descobriram inúmeros pedestais sem suas estátuas, que como a maioria era feita de bronze, tudo deve ter sido derretido quando começou a faltar bronze na Idade Média.

Outra grande descoberta do artista grego foi o movimento. Olhando-se para a estátua “Discóbolo” (cerca de 450 a.C) do escultor ateniense Míron, percebe-se o estudo minucioso que ele fez não só da anatomia, mas desta em função do movimento. No final do século V a.C, os artistas gregos já eram mestres, e a arte tinha tomado um tal desenvolvimento que um número crescente de pessoas começou a se interessar por obras de artes. Os gregos discutiam arte, como liam poemas e iam ao teatro. Praxíteles, maior artista desse período, tinha aperfeiçoado de tal modo o seu estudo de anatomia que suas estátuas mostram músculos e ossos sob a pele macia. As estátuas desse período demonstravam como o artista grego tinha atingido a perfeição escultórica baseado no conhecimento adquirido por longos estudos. A arte caminhando junto com a ciência.

Uns dois séculos depois, mais uma novidade. Além da perfeição atingida com a figura humana, os artistas se aventuraram desta vez em retratar guerras, possivelmente inspirando-se em cenas do teatro para obter fortes efeitos no espectador, com cenas de violência, de sofrimento, de agonia. A arte já tinha perdido seus antigos laços com a religião e a magia. A preocupação do artista agora era se desenvolver, vencendo todas as dificuldades de representação. Sabe-se que os mestres mais famosos da arte grega eram pintores, e não escultores. Mas quase nada sobrou da pintura dessa época, a não ser por registros que chegaram até nós, e que testemunham também que os pintores representavam cenas da vida cotidiana, de peças teatrais, de ofícios da época. Na cidade de Pompéia, por exemplo, lá na Itália, que foi sepultada pelas cinzas do monte Vesúvio em 70 d.C, foram descobertos vestígios de que praticamente todas as casas tinham pinturas, colunatas, esculturas e quadros emoldurados.

Também quase nada sobrou das maravilhosas esculturas gregas, a não ser pelas cópias em mármore feitas por artistas romanos, que dão uma ideia do que era a riqueza cultural daquele povo. Quando o cristianismo começou a se alastrar, era ordenado que se destruíssem todas as estátuas e figuras que se encontrassem pela frente, nas guerras de conquista e de pilhagem. Era sagrado dever destruir figuras dos “deuses pagãos”, e as esculturas que podemos ver hoje em alguns museus do mundo são simples reprodução das originais, que foram todas destruídas.

Mas... isso me faz terminar este texto com uma pergunta: não é uma espécie de repetição de ataque à arte figurativa, a atitude tomada pelo sistema de arte contemporâneo que endeusa a abstração conceitual, e deplora a figuração? Não seriam esses os novos modos fundamentalistas?

domingo, 16 de maio de 2010

Maurício Takiguthi - um pintor realista contemporâneo em São Paulo

A pintura figurativa data de milhares de anos, desde que os primeiros artistas pintaram nas paredes das cavernas, como em Altamira, na Espanha, ou em Lascaux, na França. Mais de 15 mil anos depois, continuamos transformando o que vemos em obras de arte, uma atividade permanente e necessária à alma humana. A arte figurativa, apesar de viver nos tempos atuais certo ostracismo, mantém-se silenciosamente consistente e ativa, como sempre esteve. Afinal, apesar de alguns teóricos do neoliberalismo pós-moderno, a Arte não morreu!
Um exemplo muito concreto é o artista plástico paulistano Maurício Takiguthi, pintor realista. Maurício concedeu-me a entrevista abaixo em seu atelier na Rua Frei Caneca, em São Paulo, onde sou uma entre seus 70 alunos. Vale à pena a leitura atenta até o final, uma vez que ele aborda temas muito importantes no que diz respeito às artes plásticas atuais, assim como ao pensamento contemporâneo. Filosofando sobre a arte realista, ressalta o humanismo presente na pintura figurativa, em contraposição à arte conceitual, fria, discursiva e abstrata, longe do humano e da realidade de seu tempo.

Maurício, conte um pouco da sua trajetória artística.


Maurício – Na minha infância e adolescência, gostava muito de quadrinhos e de desenhar super-heróis, mas sempre com “cara” de ilustração, não de pintura. Até que um dia meu irmão gêmeo me convidou a fazer um curso de pintura que, apesar da minha resistência inicial, acabei indo. Por sorte, tinha um professor de pintura que morava a três quadras de casa. Ele tinha estudado pintura acadêmica na Europa. A partir daí, com o tempo e com a prática, fui descobrindo que minha grande paixão era tentar representar a figura com ilusão de profundidade. Para mim aquilo era uma coisa mágica, conseguir representar uma figura com volume, e foi isso que me fez pegar gosto pela pintura. Só que ainda não era figura realista, mas acadêmica, seguindo a formação do meu professor daquela época.
Depois meu irmão acabou tomando o caminho da arquitetura, e eu fiquei na pintura. Com o passar do tempo, percebi que estava chegando num limite, pois compreendi que a simples representação objetiva do modelo era uma coisa muito pobre. Foi quando comecei a investigar mais a parte conceitual-técnica da pintura, por conta própria. Um dia me deparei com o livro da Betty Edwards, “Desenhando com o lado direito do cérebro”, e, junto com livros de pintores realistas norte-americanos, comecei a estudar com mais profundidade as bases do desenho e da pintura.


Como foi seu caminho em direção à pintura realista?


Maurício – Com esses estudos, fui descobrindo que o campo da pintura era muito maior, que existem conceitos técnicos que expandem e orientam a ação, assim como existe uma relação especial que se estabelece entre o artista e a pintura. Nos livros que fui lendo, percebi que o Realismo – para o qual existem várias definições – foi muito menos um movimento unificado e muito mais uma linha de pensamento localizada historicamente no tempo e no espaço, o que faz do realismo alemão, por exemplo, ser diferente do russo, que é diferente do francês, que é diferente do norte-americano. O Realismo é muito difícil de definir porque ultrapassa aquela visão que muitos têm de que se trata apenas de uma mera representação objetiva do real (a tão chamada “cópia” da natureza), que é uma definição, do ponto de vista técnico, mais genérica. Burton Silverman, pintor realista contemporâneo dos EUA, com quem tive um workshop no ano passado, por sua vez, chama de realismo esse registro emocional das relações que ele mantém com as pessoas na vida cotidiana.

Para mim, o realismo é a representação desse modo como eu encaro, percebo e me relaciono com o mundo real. Mas, por exemplo, (aponta uma de suas telas, onde surgem rostos humanos no tronco de uma árvore), alguém poderia dizer, olhando para essa pintura, que ela é uma pintura simbólica, ou mesmo expressionista, ou surrealista. É engraçado, pois para mim ela é uma pintura realista. Às vezes, para eu poder traduzir o modo como vejo ou sinto a realidade, eu preciso distorcê-la por ser a melhor maneira de expressá-la. A coisa se passa mais ou menos assim: ao estabelecer relações com o mundo real, através da minha percepção e concepção, impressões e sensações são geradas e são elas os elementos a serem impressos na minha pintura.


Aqui em seu atelier você pretende que ele seja uma escola de pintura realista?


Maurício – Pretendo que seja uma Escola enquanto pensamento realista e não escola de formato institucional como uma academia. Isso por dois motivos: pela diferença que existe na natureza do enfoque como treinamento e também pela concepção. O primeiro diz respeito à correlação entre nível de institucionalização e grau de liberdade. Numa escola de pintura acadêmica, por exemplo, de certa forma, impõe-se o pensamento na forma de regras e a tendência é massificar o ensino. Apesar de a formação basear-se num bom esquema para desenhar de observação, o aluno adquire habilidade prática, mas que tende a ser mecânica. No sistema de atelier, o aprendizado não se dá de forma tão rígida ou fechada, o pensamento se torna mais individualizado, possibilitando maior flexibilidade e maior grau de independência. O aluno age mais livremente. Trabalha-se mais com o conhecimento a partir da existência de critérios, não tanto de regras.


Conceitualmente, no sistema acadêmico, o pintor está mais preocupado em representar o mundo de maneira estritamente objetiva. Tem como intenção “copiá-lo” tal qual ele se apresenta, por mais que isso seja impossível (já que a subjetividade sempre vai estar presente), através da linha. Essa ênfase da representação do tema pela linha tem como característica o limite e contraste das formas. O claro e escuro estão subordinados à forma. A ordem nasce da linha como ponto de partida e o caos, longe de ser administrado, é eliminado. Não há qualidades voltadas para o ordenamento mental ou seleção do mais significativo.


O modelo realista do tipo pictórico, neste ponto, oferece muito mais possibilidades. Este último se apropria dos elementos do real, para impor simultaneamente a sua personalidade, visão, concepção e emoção, numa tarefa difícil que combina objetividade e subjetividade. Para tal intento, o realista, por outro lado, deve necessariamente buscar o essencial na imagem, por critérios que auxiliam a elaboração mental. Outro traço distintivo em relação aos acadêmicos lineares é que, a partir do momento em que você busca representar a luz nas coisas (e não as coisas com luz), a massa ultrapassa a forma e o limite da linha é eliminado. E com isso o mundo se abre! O artista pictórico é incumbido de administrar o caos durante todo o processo e de buscar um trabalho mental mais consistente. Neste ponto, a pintura realista cria a combinação interessante entre pensamento e sensação (situada mais no campo intuitivo). Isso me atraiu muito!


A pintura realista, como eu vejo, é esse campo de ação infinito, complexo e muitas vezes indefinido, onde o conceito serve de referência que orienta a ação intuitiva. Não para estabelecer regras que ensinem etapas e modos de fazer determinado tema, que acabam engessando a visão de mundo. Muito pelo contrário, o pintor realista é uma espécie de observador que registra suas impressões do mundo, traduzindo-o em pinceladas, cores, valores, bordas, etc. É nesse processo de ordenamento desse mundo caótico que forma e conteúdo emergem como síntese que o artista expressa e a pintura adquire, por conseqüência, o status de pensamento e de expressão.


Qual a diferença entre essa visão da arte realista e a arte abstrata?


Maurício – Eu vejo da seguinte forma: o pintor abstrato nega, por princípio, a representação dos objetos da realidade e a ilusão tridimensional de profundidade e tem sob enfoque estritamente os elementos visuais inerentes à imagem bidimensional. O pintor realista, por sua vez, pode também focar os mesmos elementos visuais, pela descolagem da imagem de seu objeto, mas sem negar a realidade. Para ele, a ilusão de profundidade pelo uso seletivo da luz é fundamental.
É neste sentido que a abstração, entendida como processo de organização mental da imagem, não faz parte do monopólio da arte abstrata. Muitos dos pintores pictóricos no passado o fizeram, em alto nível de complexidade, por meio de conceitos técnicos de construção, como Velásquez, Vermeer, Whistler, Rembrandt, Sargent, entre outros (mas para entender como isso se dá, seriam necessários estudo e visão em profundidade, coisa que não dá para exigir de quem nega o conhecimento dos fundamentos do desenho e pintura...).
Outra diferença entre a arte realista e a abstrata é o nível de preconceito que o pintor realista tem de enfrentar, que a é o da valoração de cunho ideológico. Toda representação figurativa tradicional recebe o rótulo de conservador, retrógrado ou acadêmico e é julgada sumariamente como fria, mecânica, inexpressiva ou desprovida, a priori, de criatividade ou conceito.
Portanto, a diferença, em última instância, entre um pintor abstrato e um realista não recai tanto no nível de abstração, mas sim na recusa da representação dos objetos da realidade com ilusão de profundidade e também no grau de preconceito. Vivemos um momento esquizofrênico e contraditório na arte, no qual, a liberdade consiste em poder fazer o que quiser, desde que não seja figurativo.


Em 2009, você foi a Nova Iorque participar de uma oficina com o pintor realista Burton Silverman. Fale um pouco do seu aprendizado com ele.


Maurício – Uma das questões que ele deixou claro: no mundo existem milhões de pintores, mas a partir do momento em que você se lança a desenhar ou a pintar, você deve ter um bom motivo para fazê-lo, que pode ser subentendido como você tem que fazer a diferença! O artista precisa saber qual é o seu papel no mundo. Burton tem um viés de esquerda, é um intelectual preocupado com o que acontece à sua volta. Ele estava discutindo o estado atual da arte nos EUA, que é hoje o centro da pintura realista. Na visão dele, existe hoje um excesso de pintura representacional pasteurizada, em que os pintores até podem executar bem, mas fazem de um modo impessoal, descritivo, frio. Para ele, o Realismo deve ir além adquirindo tanto função social como estética. Função social no sentido de representar a sociedade em que vivemos, desde a cultura até o ponto de vista mais subjetivo, onde está inserida a relação que ele, como pintor, estabelece com o mundo de hoje. Aliás, foi essa critica que ele me fez. Ele me perguntou por que eu pinto como os barrocos? Porque eu não pinto a cultura japonesa ou a sociedade brasileira? Ele tem esse lado político.



E o que você achou dessa provocação dele?


Maurício – Eu busquei até agora, ao invés de me localizar no tempo e no espaço atual, me situar em algo mais universal. Há uma crítica social ou olhar contemplativo em meu trabalho, mas reconheço que é uma abordagem mais universal, dissociada do tempo e do espaço.
Mas Silverman me fez algumas sugestões: se quero pintar uma figura, que tem a solidão como tema, que isso se faça dentro de um contexto. O contexto de Silverman é a sociedade norte-americana atual, do século XX e agora XXI, que ele demarca no seu contexto histórico. Eu penso em começar a trabalhar mais dessa forma. Acho que é um desafio bom.


Em seus quadros, dá para ver que seu foco é mesmo na figura humana. Isso é uma escolha?


Maurício – Sim, porque é claro que dá para o artista se expressar através de uma natureza-morta ou mesmo de uma paisagem. Mas, para mim, a figura humana é muito mais desafiadora, pelo duplo desafio de representá-la no mais alto nível de exigência e de conseguir colocar na tela o meu olhar sobre elas. Gosto desse lugar de observador da condição humana e evidenciar o meu estranhamento diante das coisas. É seguramente tema mais difícil. É o que me atrai.
Na abordagem realista, com intuito de ordenar e expressar a relação com o mundo visível, é necessária a união de elementos como conceito (diretriz de ação), técnica (meios de expressão) e sensibilidade (intuição). Isso nos faz encarar o processo como algo inteiro e é isso o que nos faz humanos: essa capacidade de perceber o real, de interagir com ele, de estabelecer uma relação emocional mas também de entendimento. Um entendimento que se dá de uma forma racional e também intuitiva.
O grande problema é que, na sociedade de massas, com a fonte infinita de informação, ausência de critérios (claros e definidos) e, portanto, incapacidade de seleção ou mesmo de julgamento consciencioso, as pessoas perdem a capacidade discernir e acabam agindo pela aparência mais superficial das coisas. A própria exigência de tomar decisões rápidas com base em poucas informações, em função do ritmo acelerado de vida, dificultou a contemplação e a busca da compreensão, substituídas pela dedução. O que se cultiva, por tabela, coletivamente, é o uso dos olhos racionais e não da visão em profundidade.


Por falar em sociedade de massas, e a chamada arte contemporânea?


Maurício – Essa arte atual sofre desse mesmo mal falado anteriormente. Os processos de arte são superficiais e estereotipados, as pessoas navegam social e culturalmente dentro da arte por uma linguagem que se dá por chavões. Um bom exemplo disso é essa ideia corrente de que jogar no papel ou na tela qualquer coisa sem critério ou técnica tem nome de liberdade ou espontaneidade. Qualquer coisa espontânea, preferencialmente sem sentido, adquire o status de expressivo, através de convenção. Certa vez, li num jornal um artista dizendo que passou 12 horas seguidas fazendo desenho compulsivamente sem parar, com uma pausa apenas para comer um pedaço de pizza. Não foram 12 horas de treino ou de trabalho orientado por algum tipo de conceito (critério) e sim 12 horas em que ele foi tomado ou “possuído” pelo desenho. É engraçado, para não dizer triste, o esforço existente de tentar propagar esta imagem de que a compulsão confere ao artista uma qualidade ou virtude estética.
O mais comum é tentar achar racionalmente um significado mais profundo usando recursos verborrágicos. Isso se propaga facilmente, principalmente, neste ambiente propício onde o público não entende nada (pela ausência de critérios de validação estética) e se sente perdido.
Essa confusão decorrente da “instalação” do vazio na arte, contudo, é bastante útil, pois na ausência de qualquer regulação, nesta sociedade movida por aparências, é que a arte contemporânea consegue preencher com o conteúdo que lhe convier. Apesar de convertida em mercadoria no sistema atual como investimento financeiro, representa simbolicamente fonte de prestígio, de poder e até de certo nível intelectual, que nem sempre o comprador, o novo rico, tem, mas pode insinuar.


E para quem não reza na cartilha da arte contemporânea, como sobreviver?


Maurício – o caminho alternativo é criar seu próprio nicho, buscar circuitos alternativos ou mesmo viver com atividade paralela. O que foi possível perceber há alguns anos é que, sendo um artista de base tradicional, dificilmente conseguiria ter acesso a instituições de arte de ponta. Parece que a partir de certo nível os espaços têm dono. A única possibilidade se você quiser expor é entrar “no esquema”.
No começo eu era bem ingênuo, achava que o bom trabalho era suficiente para se sustentar, mas com o tempo percebi que o buraco é bem mais embaixo: primeiro tem que ter bons contatos (como produtores culturais que vejam no seu trabalho uma alternativa rentável no sentido financeiro e também como ideia facilmente assimilável neste processo de propagação em massa), um trabalho que se adapte “ao gosto do freguês”, uma boa estratégia de apresentação à elite econômica, uma assessoria de imprensa forte, bem paga; depois, conseguir aprovar seus projetos, captar recursos, procurar críticos e curadores que estejam interessados nisso, etc. Precisaria ter toda uma estrutura por trás que estivesse a fim de investir nisso.
O sistema de arte virou mais um ramo do mercado, virou comércio. Atualmente, impera o conceito, muito falada nos bastidores mas nunca assumido publicamente, de que boa obra é obra vendida. A maior preocupação não é com o que o artista tem a dizer, mas com quanto dá para faturar em cima dele. E nesse esquema ultra concorrido, o artista procura enquadrar-se para ser aceito, mesmo que seja para usar artifícios que o identifiquem como transgressor, excêntrico, “afetado”, louco, entre outros adjetivos esdrúxulos. Nessa sociedade de massas, quem grita mais alto é que pode chamar a atenção do mercado, da mídia e assim obter mais espaço...


Sociedade do espetáculo...


Maurício – É necessário entender que tudo isso é sintoma de uma época contra o qual talvez não haja solução no campo da ação individual. No livro Oil Painting Techniques and Materials, livro de Harold Speed, é possível entender essa correlação entre classe social que detém o poder político e o tipo de arte desenvolvida. Se no século XVIII, a arte destinava-se para a aristocracia; no século XIX, para a classe média; no século XX a arte seria moldada à lógica da sociedade de massas. Diante disso, é possível entender a necessidade hoje de buscar o escândalo como modo de vida artístico.
Sabendo disso, a solução que vislumbro para os artistas realistas é a de encontrar os seus pares. Conseguir dialogar com pessoas que tenham os mesmos interesses, os mesmos desejos e ambições, mas sem a preocupação de que isso repercuta em escala social.
O Silverman, por exemplo, na década de 60 criou um movimento realista com seus colegas de faculdade e escreveu um Manifesto Realista. Ponderou que aquela iniciativa e luta não valeram a pena. O jornalista de Nova Iorque na ocasião disse que aquilo não era notícia. Com essa experiência, Silverman chegou à conclusão de que o que derradeiramente importa é dar exemplo. Acho que também é o máximo que posso fazer. Minha intenção é mais pessoal: eu quero atingir um nível alto na pintura!


A arte realista hoje se concentra mais nos EUA? Por que?


Maurício – Um dos principais motivos é que, onde se concentra o dinheiro, há maior concentração de artistas também. Isso explica em parte, mas não porque há um número tão grande de realistas. Outra explicação possível é de que o americano nunca deixou de lado, talvez por uma questão cultural e de valor, a representação das coisas, mesmo no pós-guerra, com a campanha governamental intensa contra a pintura realista, identificada simbolicamente com o regime socialista soviético.

Outro fator fundamental e decisivo foi o alto nível de institucionalização da arte realista ou acadêmica nos vários setores sociais, na forma de ateliês, academias, faculdades, museus, sociedades artísticas (do pastel, do retrato, etc), mídia impressa, e a grande comunicação entre eles.
No Brasil, não há cultura técnica e culturalmente ainda é muito forte a difusão da concepção de que a criatividade ou improvisação nascem da falta (de formação e de conhecimento) ou da carência. A grande dificuldade nossa é que o nosso padrão cultural ainda é de país colonizado. Então a preocupação continua sendo: o que está acontecendo lá fora? O que é de “bom tom” fazer para ser considerado “descolado”? Isso ajuda a explicar em parte esse fenômeno de repetir velhas fórmulas do século passado consideradas ainda de vanguarda...


É o que se observa hoje. Repetições excessivas das velhas fórmulas... A transgressão se institucionalizou.


Maurício – Chega a ser antagônico, porque hoje em dia transgredir a transgressão ou mesmo o estado vigente é restabelecer a ordem nesse mundo caótico sem regras ou critérios. O grande imbróglio insolúvel reside na convenção inquestionável de que a transgressão é libertária.
Vigora um tipo de ignorância que é o orgulho de ser esse tipo de analfabeto visual, a pessoa que se recusa a adquirir conhecimento técnico, justo ela que permite ler a imagem, saber como ela funciona, compreendê-la, para poder manipulá-la. A técnica é tida como algo mecânico, duro, e não como meio ou instrumento de expressão.
Parece que, para ser artista o pré-requisito, é ter atitude “afetada” ou compulsiva voltada para o entretenimento da grande platéia, que por sua vez, na maioria esmagadora das vezes também não entende nada do que vê e precisa ser avisada de se trata de uma obra artística. O público o vê como um excêntrico despirocado.
O realista como observador do seu tempo cultiva outra postura. O domínio das várias técnicas lhe dá um vasto repertório, como espécie de “vocabulário” visual, para poder se expressar. O processo é uma construção que lapida, desbasta e exige a tomada de várias decisões. A soltura longe de ser essa liberdade de jogar qualquer coisa vaga na tela, compensada depois por palavras, é aquela de poder ordenar mentalmente cada etapa do processo, escolher várias ferramentas à disposição para saber conduzir o trabalho expressivo.


E o que ensinam as escolas de arte atuais?


Maurício – As escolas de arte e as faculdades de arte tornaram-se as atuais academias. Mas com uma diferença gritante: antigamente, eles sabiam executar e dominavam as várias fases do fazer. Hoje, transforma-se objetos prontos em arte pelo “dom da palavra” e a repetição é ensinada como ato inovador a ser reproduzido infinitamente.
Há algo de contraditório e estranho no ar: há um ambiente opressivo em nome do monopólio da verdade artística. Se no passado, o aluno que soubesse desenhar era visto com bons olhos por revelar certa aptidão para as artes, atualmente isso não é só condenado pelos professores, como também pelos colegas. Tenho alunos que contam como os colegas olham feio para ele pelo fato de saber desenhar ou querer trabalhar com desenhos figurativos tradicionais. Uma vez eu perguntei a uma professora da ECA/USP por que eles não ensinavam pintura figurativa? Ela respondeu: “olha, você tem que entender que a pintura acadêmica morreu”. Mas as faculdades de artes inventaram uma nova arte acadêmica que impõem regras inusitadas: numa sessão de modelo vivo, por exemplo, você não deve desenhar o que vê ou interpretá-lo. O discurso sempre é daquele tipo: solte-se! Liberte-se da figura! Qualquer um de bom senso poderia pensar: se é para me livrar da figura, então por que há uma posando na minha frente? O fato é que esse tipo de contradição ou falta de coerência é ensinado na faculdade enquanto valor. Logicamente, você não é obrigado a representá-lo sob o modo realista ou acadêmico, mas qualquer indício de representação fidedigna é castrado por ser considerado algo retrógrado ou uma má influência. Alguns alunos que questionaram a proibição da abordagem representacional acabaram sendo reprovados. São pequenos exemplos que evidenciam o caráter opressivo, ininteligível e “nonsense” desta nova ordem acadêmica.
As escolas de arte, ao adotarem uma postura mística e ideológica a partir da década de 60, em defesa da falta de formação, treino e conhecimento prático e conceitual dos instrumentos de expressão, como pré-requisitos para a criação, estabeleceram como valor, paradoxalmente, a aversão ao aprendizado e a qualquer tentativa de entender o processo prático.


A nova Academia, como você diz, impõe a arte conceitual. Se tudo fica no reino da subjetividade, como fica a obra de arte? Por isso se diz que nas melhores galerias de arte contemporânea há sempre muito papel para se ler?


Maurício – Sim, a partir do momento em que se convencionou que o conceito é mais importante que a obra e esta é mera ilustração dele, fragmentou-se o processo. O que parece reino da subjetividade é na verdade a instituição da arbitrariedade, instituição de um tipo de verdade que tem a transgressão como centro e também a instalação de um grande vazio, preenchido pelo discurso. O processo tornou-se exclusivamente racional. Daí a importância da existência de critérios de validação mais coerentes como peças fundamentais para eliminar essa falta de correspondência entre obra e legenda de que falou e eliminar esse abismo entre o espectador e as obras de arte.
Neste ponto é que podemos pensar que a boa obra de arte se sustenta sem o recurso da “arte verbal”. A diferença básica entre os mestres do passado e muito da arte de hoje, é que as obras dos primeiros sobrevivem sem a “muleta” das palavras – invariavelmente as palavras ilustram a obra e não o contrário. O que de certa forma contribuiu para isso, principalmente no caso dos grandes mestres do passado, foi o domínio técnico de todo o processo. Michelângelo, por exemplo, pessoalmente escolhia o mármore, verificando qual era o melhor tamanho e forma para suas peças em que ia trabalhar, desenhava os esboços, fazia estudos e projetos para visualizar a obra e aí sim esculpia, sempre com a ideia total de todo o processo. Isso sem falar do seu conhecimento técnico da função da linha, da massa, anatomia e perspectiva linear. Os grandes pintores, assim como ele, escolhem o modelo, a incidência da luz, a tela, a tinta, o pincel, escolhe o enquadramento, que tipo de informação ele vai salientar ou eliminar a partir do modelo, ou que tipo de distorção vai ser necessária para representar aquilo que ele quer. Isso é técnica e é esse contato íntimo com o processo que possibilita o artista mais sensível se expressar melhor. Aquilo que permite ao artista manipular a imagem, ter controle sobre a imagem, é a técnica. A técnica é este conjunto de meios que viabilizam a expressão e a ferramenta de que dispomos para poder melhor representar o que queremos, seja uma ideia, uma imagem ou uma sensação. É, por isso, que neste sentido, a boa técnica está sempre a serviço da expressão.
Na arte da transgressão, ao contrário, basta você dizer um clichê qualquer que remeta à ideia de sensibilidade para você ser considerado sensível. É só adotar uma frase pronta, repetir o que um outro disse para que todos deduzam ou elogiem sua inteligência. Você pode fazer qualquer coisa e buscar boas justificativas depois, contratar uma boa assessoria de imprensa ou crítico, que tá tudo certo.


Mas é o que impera hoje nas artes plásticas, em qualquer exposição de arte contemporânea.


Maurício –. A arte se desumanizou quando a sua lógica passou a ter como base de sustentação a ideia de que é arte tudo aquilo que fosse definido como tal. O que poderia resgatar ou traduzir o que há de mais humano, universal e perene em nós mesmos deu lugar à busca neurótica e alienada da novidade, do espetáculo, da transgressão, do escândalo.
Vale a pena citar Ferreira Gullar. Para ele, essa postura racional, influenciada pelo discurso científico, “impôs que a emoção e a intuição passassem a ser velharias. Só que ao fazer isso, a arte caminhou para a auto-destruição, pois a imaginação é a matéria-prima da arte. Por isso, a arte plástica acabou, pela exclusão desses elementos.”
Como pintor realista, gostaria que a arte fosse esse campo de respiro e sensibilidade, do conhecimento e da visão em profundidade, mas não sei se dá para ser tão otimista, uma vez que a própria sociedade, público para o qual é feita a arte não tem voz ativa, qualquer poder de decisão, dentro do atual sistema.
É suficiente lembrar uma entrevista, para ilustrar, na qual um professor da ECA-USP, discutindo os rumos da Bienal em São Paulo, afirmou "que não dá para resolver o eterno divórcio entre o público e as obras quando nunca houve casamento".
A questão fundamental que toca a natureza da relação entre o público e obra artística, é saber, em última instância, para quem a arte deve ser dirigida: se para o todo da sociedade, numa visão mais democrática e sem preconceitos, ou para meia dúzia de intelectuais que se comprazem em discutir o futuro da arte sem que a grande maioria participe.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Vanguarda Russa - as raízes de um novo tempo

A arte deve ligar-se estreitamente com a vida.
Fundir-se com ela ou perecer.” (Maiakóvski
)

Neste segundo semestre de 2009, precisamente entre 15 de setembro e 15 de novembro, o Centro Cultural Banco do Brasil trouxe para São Paulo uma Exposição com mais de cem obras de arte pertencentes ao Museu Estatal Russo de São Petersburgo, a maior e mais importante mostra de arte russa já exibida em nosso país. A exposição já tinha passado anteriormente por Brasília e Rio de Janeiro, organizada pelos curadores cubanos Rodolfo de Athayde e Ania Rodríguez.


Mais de cem obras de 52 artistas russos estão expostas no centro de São Paulo, numa boa amostra das diversas tendências nas artes plásticas russas dos finais do século XIX e início do século XX. Entre as obras se encontram telas, cartazes, esculturas, peças de vestuário, desenhos gráficos e louças do Museu de São Petersburgo, além de dois filmes, um sobre a vanguarda russa e o outro sobre a obra de Kazimir Maliévitch.

No final do século XIX, os movimentos artísticos que ficaram conhecidos pelo nome de vanguarda russa, mudaram os rumos da história da arte naquele país em todos os setores: nas artes plásticas, na música, no teatro, na poesia, na arquitetura e no cinema que começava a nascer. Até por volta dos anos 1930, a Rússia assistiu a um fervilhar de movimentos artísticos de diversos matizes plenamente integrados às transformações que a sociedade russa ia tomando.

Programas e manifestos iam surgindo a partir de grupos e associações de artistas, nesse momento onde havia um fértil debate de ideias em meio à nascente intelligentsia russa. Esse espírito, que norteava intelectuais e artistas da virada do século XIX para o século XX, estava em perfeita harmonia com o cenário histórico em que mudanças urgentes se faziam necessárias em todos os aspectos da vida social daquele povo. Aquela efervescência de idéias e aquele momento de alta criatividade e produtividade artística “puseram em circulação idéias destinadas a exercer efeitos cataclísmicos não só na própria Rússia, mas muito além de suas fronteiras”.i Como disse em entrevista exclusiva à revista Princípios (leia abaixo), o curador da mostra, Rodolfo Athayde, pode-se mesmo dizer que aqueles foram os tempos onde se gestou a revolução bolchevique de 1917.

Mas voltemos um pouco atrás na história russa, para compreender um pouco melhor o surgimento dessa vanguarda de artistas e intelectuais.

A partir de 1697, Pedro I, mais conhecido como Pedro o Grande, iniciou um processo muito intenso de europeização da Rússia. Tendo enviado expedições à Europa, das quais ele mesmo participou, trouxe para aquele país várias centenas de mestres, técnicos, médicos e homens letrados, que foi recrutando pelos países por onde passou. Além disso, trouxe cartas topográficas, livros e invenções. Em relação aos costumes e à moda, introduziu a forma de vestir à francesa e ordenou que todos os homens russos que insistissem em usar barba longa (costume tradicional) pagariam um imposto. Pedro o Grande também manda traduzir para o russo diversas obras em francês, alemão e inglês. Em 1703 manda edificar São Petersburgo, a nova capital, num projeto urbanístico inspirado nos padrões ocidentais. Ainda no mesmo ano, manda construir Peterhof, cidadezinha próxima a São Petersburgo, conhecida por um impressionante complexo de palácios, que foi concluído em 1725, último ano do seu reinado.

Ora, toda essa ocidentalização trouxe modificações estruturais à vida social e cultural do povo russo. Nas artes plásticas, por exemplo, estava no auge a arte da pintura de ícones, de longa tradição, cujo apogeu se estendeu dos séculos XIV ao XVIII. Mas após o aculturamento produzido por Pedro o Grande, os artistas plásticos começaram a se voltar para temas laicos, como paisagens e figuras, fugindo da temática religiosa anterior. Até Pedro o Grande, as representações bidimensionais da figura humana era combatida pela igreja ortodoxa. Mas com este czar, muitos artistas foram enviados a escolas de arte da Europa, especialmente da França, onde aprendiam noções de pintura como de gama cromática e de valor pictórico, ausentes nos pintores de ícones. O cavalete e a tela surgiram pela primeira vez, impondo um processo de pintura diferente. Os pintores de ícones, até então, como o famoso Andrei Rubliev, usavam “tábuas de madeira 'viva', trabalhada por dias e meses, antes que se inscrevam os primeiros contornos ou se apliquem as cores à base de ovo e de água”ii.

Defesa da cultura russa

Na contramão dessa europeização cultural e em meio à efervescência política e ideológica do século XIX, os artistas se rebelaram e passaram a criar movimentos de defesa da cultura russa, que antes era descartada como bárbara e rude. Os artistas rejeitaram o padrão ocidental e buscaram criar uma cultura nacional nova que fosse baseada no camponês e nas tradições artísticas nacionais, de há muito esquecidas. Voltaram-se para a busca das raízes culturais do povo. Mesmo artistas mais abstratos, como Vassili Kandínski, mostra um colorido de formas que ele mesmo admite ter descoberto nas izbás, as casas dos camponeses que tanto o tinham encantado em seus tempos de jovem estudante de arte. Mikhail Lariónov, um dos precursores da vanguarda russa, se inspirou na arte popular urbana, onde o atraíam os painéis e letreiros de lojas e oficinas feitos por artesãos, assim como os lubok – xilogravuras camponesas – que também inspiraram muitos outros pintores. Lariónov e Gontchárova organizaram exposições de ícones, luboks e peças do artesanato popular.

Era uma época de experimentações, de busca de novos conteúdos, de novas formas, de novas cores e de um novo mundo. O espírito da épocazeitgeist, como se diz em alemão – atravessava o clima intelectual e cultural desse período: espírito de rebeldia, de contestação, de revolução social, política e cultural. Grupos se formavam, movimentos novos nasciam a cada dia, enquanto jovens artistas produziam, como Natalia Gontchárova, uma das mais importantes artistas da época. Ela se preocupava em evocar as tradições populares em suas obras, reproduzindo cenas da vida camponesa e trazendo inovações baseadas na tradição dos ícones. Uma de suas obras, “Os Evangelistas”, presente na mostra, causou escândalo em Moscou quando exibida em 1912 numa exposição denominada “O Rabo do Burro”. Por sua semelhança aos ícones e porque uma obra de tema sacro não poderia estar presente numa mostra profana como aquela – de uma arte de ruptura – ela foi censurada.

Outro pintor presente na mostra, Vladimir Tátlin, inicialmente um pintor de ícones, começou a criar seus quadros em relevo nos meados da década de 1910. Sua ideia básica era fazer com que os objetos de sua obra saltassem da tela para fora, reconstruindo novas formas tridimensionais. Seu trabalho “Contra-Relevo de Esquina”, complexo em aço, alumínio, zinco e madeira, presente na mostra, traduz o mundo industrial que ele via surgindo e passava a adotar formas e materiais da moderna tecnologia. Era o artista-engenheiro engajado na construção de objetos concretos. Tátlin criou também duas maquetes de obras que ele intitulou de “Homenagem à III Internacional” e “Projeto para a Tribuna de Lênin”. Ele foi o precursor do movimento que depois ficou conhecido como Construtivista, juntamente com o pintor e fotógrafo Alexandr Rodtchenko.

Kuzma Petrov-Vodkin apresenta trabalhos em óleo de caráter realista. Era pintor, artista gráfico e cenógrafo, tendo estudado em diversas escolas de arte, na Rússia, Alemanha e França. Tornou-se o primeiro presidente da Associação dos Pintores de Leningrado, em 1932, e foi representante no Conselho de Deputados de Operários, Camponeses e Soldados do Exército Vermelho. Seu entusiasmo pelas obras do pintor francês Matisse e pelos cubistas não foi menor do que sua admiração pela arte tradicional dos ícones, cujo resultado foi uma série de pinturas de caráter narrativo pronunciado, figurativo.

Pavel Filónov, um dos organizadores do grupo futurista “União da Juventude”, foi o criador do cenário para a primeira peça teatral de Maiakóvski, “Vladimir Maiakóvski”, e assim como os outros artistas, estava envolvido diretamente com a revolução de 1917, que ele saudou ardorosamente. O trabalho de Filónov apresenta uma delicadeza e sensibilidade de toque incrível. Suas telas em óleo dão a impressão de aquarelas, com finas e leves pinceladas. Sabe-se que ele trabalhava meticulosamente em suas pinturas, dezoito horas por dia, cujos detalhes eram rigorosamente planejados.

Nessa exposição também encontramos obras de Marc Chagall, Vassili Kandínski, Kasimir Maliévitch, Mikhail Matiútchin, Maria e Boris Énder, que seguiram caminhos diversos na arte plástica. Mais voltados para o abstracionismo, suas obras também significavam uma linguagem de ruptura, e mesmo que se voltassem mais à valorização da cor e da forma, eram coerentes com o sonho de construção social de um novo mundo. Participavam desses diversos movimentos de artistas que buscavam formatar visualmente a nova sociedade. Nenhum deles foi insensível às guerras, por exemplo, e organizaram várias exposições em ajuda aos feridos.

Arte e vida

Esta é uma característica muito marcante daquele rico período em que se desenvolveram as artes de vanguarda. Nos pintores mais realistas até nos mais radicalmente abstratos como Maliévitch, notava-se um profundo envolvimento entre vida e arte. “A Revolução deu um senso de realidade às suas atividades e uma direção, longamente aguardada (...) – uma vez que não havia, em suas mentes, nenhuma dúvida que os impedisse de identificar suas descobertas revolucionárias no campo artístico com essa revolução econômica e política”iii diz a pesquisadora inglesa Camilla Grey, no começo dos anos 1960. O próprio Maliévitch que defendia a arte abstrata como uma forma rebelde dentro das artes plásticas afirmava que “o cubismo e o futurismo foram as formas revolucionárias da arte que prenunciaram a revolução na vida política e econômica de 1917”iv.

Yevgenia Petrova, que é hoje uma das curadoras do Museu Estatal de São Petersburgo, reconhece, em seu texto publicado no catálogo da mostra brasileira, que a vanguarda russa representou um rico momento de florescimento de diversas tendências artísticas numa conjuntura social e política onde se preconizava o surgimento de um mundo novo e onde se preparavam, sob o comando de Vladimir Lênin, os passos para uma mudança estrutural na sociedade russa, trazida pela revolução bolchevique. Até mesmo o famoso – e louvado no mundo ocidental – “Quadrado Negro” de Maliévitch “e outras obras-primas da vanguarda não surgiram nem no lugar vazio e nem de repente. Eles nasceram graças aos processos notadamente criativos da cultura russa do final do século XIX-início do século XX”.v

Rodolfo de Athayde afirmou que essa vanguarda promoveu “uma mudança extraordinária na História” exatamente por causa do vigor artístico e intelectual que caracterizaram aqueles anos. Essas “obras evidenciam a inquietude cultural dos anos que precederam o Outubro Vermelho, período em que o desejo de renovação resultou num contexto de transgressões onde os artistas passaram a buscar o seu próprio caminho na arte”, diz o curador cubano.

Virada Russa” apresenta, então, a força viva presente na cultura russa, cujos reflexos podem se notar naqueles quadros ricos em pesquisa e experimentação de cores, desenhos, formas e temáticas, que testemunham a profundidade da alma do povo russo. É uma grande demonstração de que arte e vida caminham lado a lado, e que deve ser assim, mesmo a contragosto dos que hoje preconizam uma arte abstratamente vazia. Arte sem vida é arte sem alma.
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Entrevista com Rodolfo de Athayde:

O curador da mostra Virada Russa, o cubano Rodolfo Athayde, radicado no Rio de Janeiro, concedeu uma entrevista exclusiva à revista Princípios, sobre a exposição.

Mazé – Rodolfo, qual foi o seu objetivo ao idealizar esta exposição sobre os artistas russos no Brasil?
Rodolfo – Nossa intenção, minha e de Anya Rodrigues, é chamar a atenção do público brasileiro para a qualidade da arte plástica russa do final do século XIX até por volta de 1935. Mostrar para o público as fontes e as raízes da arte contemporânea mundial. Trouxemos artistas como Kandínksi, Chagall, Maliévitch, que são mais conhecidos, mas trouxemos dezenas de outros como Rodchenko, Gonchárova e Pavel Filónov, que ainda eram desconhecidos do público brasileiro. Em especial Filónov tem uma pintura de alta qualidade plástica, que não deixa nada a desejar aos pintores ocidentais, como Paul Klee, por exemplo.
A arte russa, assim como a arte cubana, mostram as diferenças e a riqueza da arte que é feita fora da Europa. Ano passado trouxemos também, eu e a Anya, uma exposição de artes plásticas cubanas, trazendo para o Brasil uma amostra da criatividade dos artistas cubanos. Desta vez, a exposição sobre arte russa possibilita um maior conhecimento sobre a vanguarda russa, um movimento que foi tão fundamental para as artes no mundo todo.
Mazé – O que era a vanguarda russa?
Rodolfo – Esses grupos de artistas que ficaram conhecidos como a Vanguarda Russa representavam um conjunto de tendências artísticas que foram vitais para o desenvolvimento das artes no mundo dos séculos XX e XXI. Aqueles artistas foram os primeiros a fazer experiências com novos materiais, com cores, com texturas, com objetos e até com a geometria. Eles faziam experimentos realmente radicais para os padrões da época, como se pode ver na exposição, e influenciaram direta ou indiretamente o desenho contemporâneo. Eles foram os responsáveis por fixar uma estética da modernidade que aqui no Brasil foi representada pelos Neoconcretistas da década de 50, artistas brasileiros que se basearam nos princípios da vanguarda russa.
Eles também, sem dúvida, influenciaram o design moderno, especialmente o design gráfico, uma vez que foram os primeiros a criar uma estética visual gráfica, como podemos ver através dos famosos cartazes russos. Com esses artistas, as artes gráficas foram enriquecidas com cartazes grandes, de cores chapadas, traços geométricos novos e com jogos e alterações de perspectiva. Eles revolucionaram mesmo as artes visuais!
Mazé – E o realismo socialista?
Rodolfo – O realismo socialista foi uma experiência negativa. Com a imposição do decreto da arte do realismo socialista em 1935 o Estado impediu o desenvolvimento desses movimentos artísticos, e alguns artistas deixaram a URSS. O Estado queria que a arte representasse, através do retorno ao realismo figurativo radical, as idéias de um homem novo e uma sociedade nova. Mas aquelas figuras hercúleas, descaracterizadas, fictícias, sem base na realidade, figuras de um mundo sem drama, irreal. Isso foi muito negativo porque cortou o movimento artístico natural que nascia do meio daqueles artistas de vanguarda.
Mazé – Qual é sua opinião sobre a arte contemporânea?
Rodolfo – Muito repetitiva. Os artistas atuais batem sempre sobre a mesma tecla, usando a mesma linguagem que há mais de cem anos foi inaugurada por aqueles artistas. Naquele momento, há cem anos, a arte tinha uma conexão com o mundo a seu redor e com tudo o que havia. Na Rússia do começo do século XX, os artistas produziam uma arte nova como um movimento radical mesmo e em perfeita consonância e harmonia com a revolução bolchevique. Esses movimentos geraram o movimento social mais importante na história do mundo no século XX que foi a revolução bolchevique de 1917. E hoje a arte contemporânea pretende repetir os padrões artísticos dos princípios do modernismo e da vanguarda russa, mas vemos que essa forma foi se esvaziando, com o tempo, e hoje é vazia de conteúdo. A arte contemporânea se liga puramente na questão formal, sem peso algum na atual circunstância, sem conexão com nada, sem sentido.
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Bibliografia:
BERLIN, Isaiah. O Nascimento da Intelligentsia russa. p. 241 In Pensadores Russos. São Paulo: Companhia das Letras.
MAIAKÓVSKI, Vladimir. Resumo da palestra Abaixo a Arte, Viva a Vida. In Maiakóvski – Prosa e Poesia.
MARCADÉ, Jean-Claude. Ícone e Vanguarda na Rússia, duas faces maiores da arte universal. In 500 Anos de Arte Russa. Rio de Janeiro: Brasil Connects, 2002 .
GRAY, Camilla. O Grande Experimento. Arte Russa 1863-1922. São Paulo: Worldwhitewall Editora Ltda. 2004.
PETROVA, Yefgenia e outros. Virada Russa. São Paulo: Editora Palace Editions. 2009.
i BERLIN, Isaiah. O Nascimento da Intelligentsia russa. p. 241 In Pensadores Russos.
ii MARCADÉ, Jean-Claude. Ícone e Vanguarda na Rússia, duas faces maiores da arte universal. In 500 Anos de Arte Russa.
iii GRAY, Camilla. O Grande Experimento. Arte Russa 1863-1922.
iv idem
vPETROVA, Yefgenia. Arte Russa nos Anos de Vanguarda. In Virada Russa.
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Artigo publicado inicialmente na REVISTA PRINCÍPIOS, novembro de 2009

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Portinari de todos os tempos

Estivador, óleo sobre madeira, coleção particular, Rio de Janeiro.
“E o homem de Brodósqui
não se esqueceu de Brodósqui”(Manuel Bandeira)

Cândido Portinari, o artista plástico filho de camponeses de Brodósqui, interior de São Paulo, nunca sai de cena. No Carnaval de 2010, a Escola de Samba União da Ilha do Governador estampou 24 desenhos do pintor em um de seus carros alegóricos, representações de Dom Quixote. Neste ano, os famosos paineis “Guerra” e “Paz”, instalados no edifício da ONU, em Nova Iorque, serão vistos finalmente no Brasil, em exposições que estão sendo preparadas. A Pinacoteca de São Paulo, além disso, apresenta uma exposição intitulada “Portinari na Coleção Castro Maya”.


Não fosse suficiente, hoje encontrei cinco quadros do pintor de Brodósqui no prédio da Bienal do Ibirapuera, São Paulo. Estavam em uma das galerias que participa da sexta edição da hiper-feira SP Arte, que reune neste ano 79 galerias. Portinari estava em meio ao cansativo carnaval de repetições de padrões atual: borrões, manchas, formas geométricas, objetos (como facas, serras, copos de vidro – o que você imaginar, ou não, estava lá...), quadriculados, reticulados, objetos kitsch, objetos multimidia, lembranças toscas de Andy Warhol, quadrados negros, barbantes trançados, acrílicos, cadeiras assinadas por designers da moda, muito plástico, peças decorativas estilo vintage, um bar onde se servia wiskies e champagnes finos (claro!), um café da grife starbucks com fila sempre grande, marchands, galeristas, negociantes, artistas, curiosos da mais pura elite, se cruzavam, trançavam entre os corredores das galerias desse mercado que se intitula “a maior feira de arte Moderna e Contemporânea do Brasil”... ufa! Foi duro caminhar para encontrar algumas pinturas dos modernistas brasileiros perdidos nessa selva minimalista.

Mas vamos a Portinari.

Cândido Portinari nasceu em 1903, numa fazenda de café aonde seus pais – camponeses italianos imigrantes – trabalhavam। Desde muito cedo, seu talento para o desenho sobressaiu e, incentivado por sua família, com apenas quinze anos de idade viaja para o Rio de Janeiro para estudar desenho e pintura. Iniciou no Liceu de Artes e Ofícios, passando depois para a Escola Nacional de Belas Artes.

Quatro anos depois, começa a inscrever seus trabalhos em eventos de artes, até que conquista, em 1928, um prêmio que lhe daria uma bolsa de estudos em Paris, para onde viajou e permaneceu de 1928 a 1930. Foi fora do Brasil que Portinari descobriu o povo brasileiro, assim como uma nova expressão plástica, tão característica deste pintor, o efeito da deformação em seus quadros. Feita a escolha estética, ele também fez a escolha social, optando por pintar o povo e o trabalhador brasileiro.

Em 1945, Cândido Portinari se filia ao Partido Comunista, e participa de uma exposição de artes para arrecadação de fundos para o PCdoB. Lança-se candidato a deputado federal por São Paulo e, em 1947, tendo perdido a eleição, lança-se candidato novamente, desta vez a senador. Não foi eleito por uma margem muito pequena de votos, o que poderia significar que sua não-eleição foi garantida através de fraude. Ainda em 1947, com as ameaças sofridas por seu Partido e por ele próprio, por parte do governo de Gaspar Dutra, passa uma temporada no Uruguai. Ele fora intimado a depor várias vezes na polícia, por causa de um inquérito aberto contra os intelectuais que lecionavam na Escola do Povo, do PcdoB, fundada em 1946.

Portinari trabalhou intensamente até o fim da sua vida. Inúmeras exposições dentro e fora do Brasil, requisitavam sua participação. Pintou inúmeros retratos, telas, painéis e murais, como o faziam os muralistas mexicanos, como Diego Rivera. O personagem principal de seu trabalho é o negro, a mulher, o mulato, o índio, a criança, os retirantes, os trabalhadores, os camponeses, pintados como gigantes que guardam uma força que é muito maior do que eles e que poderá ser usada (no dizer de Annateresa Fabris, estudiosa do pintor) “em seu proveito, quando o homem alienado tomar consciência de sua escravidão”. Suas obras eram vistas e admiradas até mesmo pelas camadas mais populares, que se viam retratadas em seus quadros, cuja temática era declaradamente social e enraizada na realidade brasileira.

Respeitado internacionalmente, foi convidado a pintar dois paineis gigantes que decoram o prédio das Nações Unidas, em Nova Iorque, cuja inauguração se deu em setembro de 1957. Ele também teve duas mostras individuais nos EUA, uma em 1947 (“Portinari of Brazil”) e uma outra em 1959, na Galeria Wildestein, também em Nova Iorque. Mas sua militância comunista foi a desculpa que o macartismo, já então predominante naquele país, deu para que ele tivesse seu visto de entrada nos EUA negado, em todas essas ocasiões. A inauguração dos dois grandes paineis “Guerra” e “Paz”, inclusive, deu-se sem a presença de seu criador.

Portinari era profundamente ligado a seu tempo. Tendo participado ativamente do processo de modernização do seu país, era um artista que buscava um papel para a sua arte, acima de tudo em termos humanistas. Em 1953, numa conversa com o poeta Vinícius de Moraes, ele explica: “Não pretendo entender de política. Minhas convicções, que são fundas, cheguei a elas por força da minha infância pobre, de minha vida de trabalho e luta, e porque sou um artista. Tenho pena dos que sofrem, e gostaria de ajudar a remediar a injustiça social existente. Qualquer artista consciente sente o mesmo”.

É a carência desse sentido humano da arte que pude ver nas obras expostas pelas 79 galerias de arte da SP Arte 2010, neste fim de semana. Enquanto observava por um momento o público que transitava no prédio da Bienal, pensei que alguma coisa de muito grave está ocorrendo hoje quando essa arte aí expressa de fato o que o poeta Ferreira Gullar previu ainda nos primeiros anos da década de 60: “A arte pela arte coincide sempre com a crise dos valores de uma civilização. (…) é a idealização da impotência”. Uma arte de uma sociedade esquisitamente narcísica: tem medo da própria imagem!

Cândido Portinari morreu em fevereiro de 1962, após realizar mais de cinco mil trabalhos entre desenhos, pinturas, murais, painéis, esboços e até ilustrações. Morreu intoxicado por suas próprias tintas. Considerado o maior entre os maiores pintores brasileiros, sua obra permanecerá falando através dos tempos, de um Brasil que se forma através das mãos de seu povo e de seus artistas.